quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Ser e as Palavras em Órfãos do Eldorado


Último livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado está entre a fronteira do romance e da novela. Em suas cento e sete páginas, Arminto conta sua história. História e vida que, aliás, insolúveis. E nisto que consiste sua semelhança, como veremos adiante, com Machado de Assis, em Dom Carsmurro.

Arminto, já velho e considerado como louco, começa narrando sua infância. Dentro desta narração existem outras histórias. Estas ele escutava dos índios. São lendas, a qual se destaca a de Eldorado. O próprio autor vai explicar no posfácio que essa lenda foi trazida pelos europeus e se consolida, com algumas mudanças, nos nativos da Amazônia, pois “era uma das versões ou variações possíveis da Cidade Encantada[...]” (HATOUM, 1998, p. 106). Ou seja, era uma variação do mito europeu da descoberta do paraíso e, indo mais distante, da Atlântida, dos gregos. Deste modo, as lendas já se cristalizaram em arquétipos. Mas Eldorado tem, por outro lado, uma significação histórica e concreta dentro do livro, uma vez que este presencia a época da ascensão econômica do Amazonas, através do extrativismo, nos seringais, da matéria prima para a produção da borracha. Esse período (primeira e segunda década do séc. XX) foi de extrema riqueza no Amazonas. Entretanto, durou pouco, pois seringueiras foram plantados na Ásia e, além disso, a primeira guerra mundial atravancou o comércio mundial. Neste sentido, Eldorado, ou melhor, o Amazonas soçobrou, desapareceu e voltou a ser “inalcançável”. Para concluir, Eldorado é a busca do inatingível. E essa busca é a busca, também, de Arminto a sua amada, Dinaura. Com ela sua felicidade poderia se consumada. Mas ela, tal como a riqueza, some, desaparece e se torna tão misteriosa quanto Atlântida o era.

É no romance de Arminto com Dinaura que encontramos comparação com o livro de Machado, Dom Casmurro; pois Dinaura é tão misteriosa quanto Capitu. Se em Machado Bentinho não conseguiu desvendar a possível traição de Capitu, aqui Arminto não consegue saber a origem e o paradeiro de Dinaura. O que se sabe é que Dinaura foi acolhida por Amando em sua casa. Mas se era tida como amante ou filha do pai de Arminto, permanece uma incógnita, pois como o próprio narrador a define como se parecesse “uma mulher de duas idades.” (HATOUM, 2008, p.28). Assim, se Dinaura fosse filha de Amando o amor era proibido e se fosse amante também o era. Hatoum somente sugere essas possibilidades, mas não dá a chave da resposta. Ora, não é difícil descobrir que Machado fazia o mesmo com Capitu. Não só, pois, a traição de Capitu é uma incógnita como também Bentinho recorda a sua vida. E essas existências estão sempre buscando o que é impossível, pois as palavras revelam, mas, ao mesmo tempo, velam. Neste sentido, as palavras passam a ter um valor ficcional, ou seja, as palavras estão a serviço de inúmeras interpretações. Elas não estão aí para dizer a verdade, mas para sugeri-la, transformando-se, assim, num verdadeiro caleidoscópio.

São as palavras que tentam dar um sentido à vida. Consequentemente, qual o sentido que há nesta, se a sua tutora não consegue guia-la? Assim vai definir Luiz Costa Lima os personagens de Machado e, a nosso ver, de Milton Hatoum: “Na esterilidade dos personagens, lemos a ruína dos heróis.” (1981, p. 73). Nesses romancistas, portanto, os heróis sofrem e têm seus defeitos e não conseguem superar o destino de suas vidas.

Destinos trágicos, aliás, que fazem lembrar Édipo. Em Órfãos do Eldorado vemos constantemente o pai lutando contra Arminto e vice e versa, já que, além de Dinaura, Arminto também teve um flerte com Florita, mulher que o criou, a pedido de Amando, depois que sua mãe morreu quando o pariu. Arminto foi expulso de casa quando Amando flagrou os dois juntos. Ao que parece ela também era mulher de Amando. Deste modo, Arminto está, inconscientemente sempre a desafiar o pai. Este, por sua vez, o repudia e o afasta de sua casa. O trágico, portanto, está sempre se anunciando e se consuma com a ruína e uma possível loucura de nosso herói. Para tirarmos uma conclusão disso, nada melhor do que essas palavras de Manuel Antônio de Castro, que compara Dom Casmurro com Édipo Rei e vem de encontro ao nosso livro: “Ora, a estória e a narração da estória buscam a verdade, o verdadeiro conhecimento, que é a procura humana fundamental. Seu fracasso é o fracasso humano.” (1977, p. 43). Eldorado, então, é a busca da verdade. Esta o narrador tenta encontrar quando narra sua história, da mesma forma que as pessoas contam as suas num consultório psicanalista. Esta regressão é tentar achar o elo perdido. É tentar achar o Eldorado da infância mas, ao se referir de uma ama que o amamentava, Arminto não se lembra “do rosto dessa ama, de nenhum. Tempo de escuridão, sem memória”. (HATOUM, 2008, p.16). O protagonista, portanto, está sempre tentando, como Bentinho, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. (ASSIS, 1999, p.14). Narrar a história para ele serve como uma catarse. Ao representar sua vida com palavras está representando a si próprio e descobrindo seu ser, e com isso sendo trágico. No final do livro o próprio Arminto desabafa: “Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga a nossa dor?”(HATOUM, 2008,p. 103). Mas há gente que é cética e nas últimas palavras diz: “Pensas que passaste horas nesta tapera ouvindo lenda?” (Idem). Com essas palavras, Arminto esfumaça a fronteira entre o real de sua vida e o fictício. E assim, talvez, nem nós dizemos o que acreditamos ser verdadeiro, pois o próprio Drummond vai dizer em seus versos:


Lutar com palavras
é a luta mais vã.
entanto lutamos
mal rompe a manhã
[...]
(1966,p. 156)


Com o que vimos, percebe-se que Eldorado no livro de Milton Hatoum tem inúmeras significações. É a riqueza perdida do Amazonas, é a busca por Dinaura, é a tentativa de encontro com o passado e, enfim, é tentar encontrar a possibilidade da verdade nas palavras. Tal como uma lenda que vai passando e se modificando de gerações em gerações, o mesmo se dá com a história de Arminto, a qual se embaça num horizonte indefinível. Como aqui, neste ensaio, tentamos dar uma significação para o livro analisado, usando outros livros; o mesmo fez Milton Hatoum, utilizando-se de lendas que percorrem os anos. As palavras, as histórias, neste sentido, vão se criando e criando outras histórias, numa intertextualidade infinita. O encontro com elas pode ser trágico como o foi para Édipo, que arrancou seus olhos com medo de se deparar com a verdade; ou para Bentinho, que perdeu o sentido da vida e nas palavras, a verdade. Mas Arminto, louco ou não, ainda acredita no que fala e perpetua suas histórias.










BIBLIOGRAFIA:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo, Ática, 1999.
CASTRO, Manuel Antônio de. Travessia Poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro Editora do Autor, 1966.
LIMA, Luís Costa. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
ordem de grandeza


o mar era tão grande
e eu o via, lá longe
meu pai, quase nada
na arrebentação daquele horizonte

eu era grande
e as pessoas ao meu redor maiores ainda
como maior do que esses maiores ainda
era a terra
com seus minúsculos grãos de areia

minúsculo era o sol
tão minúsculo
que o segurava na palma da mão
e ao longe seus músculos sustinham-no
minúsculo na arrebentação

e eu tinha medo
medo de ficar sozinho
medo do que desconhecia
medo de tudo que era muito grande
sendo eu grande também
tinha medo
medo por mim e medo por meu pai
que lutava com as ondas gigantes

e aí? e se as ondas o levarem?
o que farei no meio das pernas dessas pessoas?
seguirei elas?
atravessarei sozinho com elas os sinais de trânsito?
subirei o mais grande edifício do mundo e de lá acharei meu
Pai?
ou o encontrarei nos orfanatos dos meninos crescidos?

há pernas há rodas há prédios
e qual seria o meu?
era um que tinha um muro cinza na frente
isso eu me lembrava
mas não me lembrava da rua do bairro do número
me lembro do muro e de um cinzeiro
pesado cinzeiro, feito de cristal
e polido todos os dias por minha mãe

e minha mão que cabia no sol
não cabia espalmada nele
no cinzeiro que era maior do que eu
e menor do que minha casa
isso sim eu me lembrava

aí me convenço porém me conformava
não
meu pai, lá pequeno nas ondas
que era grande era
era muito muito grande
era maior que tudo que é muito grande
era grandiosíssimo
(palavra que aprendera agora)

só não era maior que o mar
e seu curto
mas eterno horizonte


Ivo de Souza
O espetáculo e a grade


Foi naquele final de tarde, sentado no banco daquela praça, com um livro de Kafka caindo nas minhas pernas e tomando uma latinha de cerveja, que encarei obstinadamente o coreto. Ele erguia-se inútil, bem na minha frente. Mas nem tanto... Umas plantas, que nasciam no seu teto, caiam-lhe, como um caramanchão, pelas colunas que o sustentava. Vazio. Apenas uma leve brisa trazia movimento àquela solidão. O resto era desamparo, era um pequeno coliseu abandonado em seu silêncio secular. Ou não? Tomei um gole, olhei o quanto já tinha lido do livro, que nunca terminava. Na praça, um barulho de roda de bicicleta, um cachorro latindo, uma criança sorria, outra chorava, e outra não fazia nada, era apenas mais uma. De repente, uma brisa mais forte, uma ventania, e voltei ao coreto. Desafiei-o. Ele continuava lá, me olhando, mas não estava sozinho. Vi alguém no seu centro, parecia contar uma história, uma história cantada. Foram, aos poucos, surgindo outras pessoas. E, repentinamente, se transformou num coral. E instrumentos surgiram: tambores, violas, harpas, pianos, teclados, guitarras, sintetizadores e outros que ainda não havia sido inventado. E cada vez mais instrumentos. E pessoas aproximaram-se para assistir. No começo eram poucos; alguns curiosos transeuntes. Mas estes chamaram a atenção de outros, que quiseram saber o que tinha de bom neste espetáculo que os fizeram parar. E também pararam. E eu via tudo isso de camarote, juro que via. Ou não? Surgiram luzes no palco. No começo eram insignificantes e foscas, mas depois se transformaram em holofotes, canhões de luz. Soltaram fogos de artifício. Dos mais belos. E, como a praça estava cada vez mais cheia, puseram grades para proteger os Astros. Mas não adiantava, pois eventualmente alguém a pulava e se atirava no palco. Mais fogos de artifício, os canhões rasgavam o céu. E eu, no banco, com a cerveja, assistia, calmo, sem nenhum empurrão: ninguém me encostava, ninguém me olhava: ali era nada. Mas o povo estava atento ao espetáculo. Eram muitas pessoas, por isso resolveram isolar toda a praça com uma grade bem mais resistente. Agora só assistia quem tivesse a Permissão. Homens fortes, vestidos com uns ternos pretos e baratos, controlavam a entrada. E eles diziam, graves: só com a Permissão, só com a Permissão! E as pessoas imploravam, choravam, rastejavam. E os homens de ternos balançavam negativamente a cabeça: só com a Permissão, só com a Permissão! Mais fogos. Mais de artifício. Mais instrumentos. Luzes, canhões de todas as cores, feixes de raio lazer, de ultra-violeta. E o som... o som era alto, mas ninguém escutava. Quanto mais confuso, melhor: aumentavam-se os pulos, os gritos, arrancavam-se os cabelos, jogava-se, delirava-se. Aos poucos, transformou-se num delírio histérico, barulho que não era barulho: era nada. Quem estava do lado de fora empurrava a grade para entrar. E a grade parecia que não ia resistir: ela ia e vinha, como se um milhão de pessoas se pendurassem num pêndulo de um relógio. A insatisfação, porém, não era só de quem não tinha entrado: quem estava dentro, queria estar mais dentro, queria invadir, subir no o palco, entrar no corpo dos Astros. Todavia, quem conseguia romper esse pequeno cerco, o da grade menor, era banido logo pelos mesmos homens fortes de ternos pretos e vagabundos. Teve um que chegou três vezes. Na terceira, ele foi arremessado na platéia, como se acerta, numa lata de lixo distante, um papel amassado. Seu corpo, caindo na cabeça dos outros, sumiu, engolido pela multidão. As horas passavam-se. A madrugada chegou e a multidão extrapolava os espaços da praça. Apertou-se pelas ruas das redondezas, subiu pelas escadas dos edifícios que circundavam o local. Espremeu-se nos parapeitos das janelas. Suicidou-se nos terraços. Helicópteros no céu disputavam, num confronto aéreo, espaços. Cinegrafistas, fotógrafos, repórteres: nada podia ser perdido! A grade de fora cedeu. Todos atropelaram-se para frente. E os que estavam na frente sufocaram mais ainda a outra grade. Por fim, a do palco também desmoronou. Mas, antes que conseguissem chegar aos Astros, os homens fortes de terno preto e vagabundo, os cercaram e os levaram para lugar seguro. O espetáculo foi cancelado. E eu, incrivelmente, assisti a tudo, sem nenhum arranhão. Ou não? Foi num susto, enfim, que escutei o barulho de um metal se arrastando. Veio o medo: a grade cairia em cima de mim. Um pouco de concentração e alívio: era a loja ao lado que se abria, pontualmente, às seis da manhã. O sol já havia ofuscado as estrelas da noite. Olhei para frente e um mendigo catava uma lata de cerveja vazia. O livro estava caído no chão. Ainda faltavam algumas páginas, pensei.
Ruínas

Veja os ratos
nos ralos dos homens,
nos porões, nos buracos.
Roendo um noticiário,
um diário, um retrato.

Ratos ligeiros,
tudo vão destruindo:
papéis, paredes, casas,
cidades.
Os ratos infestaram as cidades,
agem rápidos. No escuro da rua,
correm de um lado ao outro.
tudo lhes serve, seja lixo ou tesouro.

Os ratos vão roendo sonhos.
Roem o sorriso que um dia ficou;
roem a dor que um dia gritou;
roem o silêncio que um dia falou.

O beijo vai ficando em escombros,
suor lágrima lástima saudade,
o cheiro vai ficando em escombros.
O pior de todos os tempos
vai ficando em escombros.
E o melhor sol, com ventos amenos,
vai ficando em escombros.

Em escombros vai ficando o ombro pesado,
o passo cansado, a pele esfolada,
a carne estragada,
que já tragou todo ar nicotinaminado da vida.
E que agora dá vida
aos ratos.
Letras e artérias

Escrevo este poema com tintas vermelhas
e as finas linhas que percorrem meu corpo
percorrem sem dor estas brancas telhas
que dão moradia e de descanso, um pouco.

Escrevo este poema com tintas vermelhas.
Essas vermelhas tintas que se afinam
mais longe que as últimas estrelas.
Mas por onde ainda em mim passam, brincam.

Com tintas vermelhas inscrevo-me neste poema
e perco-me em outras moradias
e encontro-me outra vez no mesmo lexema
que se desfaz, amorfo, mas no fim se cria.

Se cria neste espasmo só e vermelho
de esperma, de fruto, de cor que se ia
para a terra fértil e branca do ermo,
do termo eterno do que escrevia.
João Guimarães Rosa e o conto A hora e a verdade Augusto Matraga


O Autor

Nascido em Minas Gerais em 1908 e falecido em 1967, João Guimarães Rosa será um dos percussores da litertarua regionalista que se inicia em 1945. Era médico e diplomata, mas foi na literatura que ele se consagrou como um dos melhores escritores que o Brasil já presenciou. Sua obra, além de revolucionar a linguagem , é marcada por questões metafísicas, ou seja, questiona freqüentemente a existência ou não de Deus. As obras escritas são: Grande Sertão: veredas (1956); Sagarana (1946), Primeiras estórias (1962), Tutaméia (1967), Estas estórias (1969), Corpo de Baile (1956) e, postumamente, Ave, palavra (1970).

A hora e a vez de Augusto Matraga

Em carta publicada no prefácio do livro de contos Sagarana, Guimarães Rosa vai revelar a João Condé sobre seu último conto: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.”
E, além de descobrir, Guimarães implementará esse achado nos seus livros posteriores, proporcionando um êxito peculiar na literatura brasileira. Mas o qual é a sua forma? Que estilo próprio é esse?
Primeiramente, vamos falar da história e assim poderemos responder qual o estilo e, posteriormente, o conteúdo do conto. A história fala de Augusto Esteves, descendente de uma família que está em declínio político e financeiro no interior de Minas. Augusto, também chamado de Matraga, descobre por intermédio de seu capanga, Quim Recadeiro, que sua mulher e filha fugiram com Ovídio. Augusto, então, chama seus comparsas para recupera-las, mas aí vem a segunda decepção, pois eles se rebelaram com Augusto, devido à falta de pagamento, e passaram a servir O Major Consilva. O protagonista procura então o Major para recuperar seus capangas, mas é espancado e, para evitar a morte, joga-se num barranco. Acreditaram que ele tinha morrido, mas sobrevive e um casal de pretos cuida dele. A partir de então Augusto, que era mulherengo e violento, ao receber conselhos de um padre, resolve sair da vida promíscua e bandida e ruma com o casal de pretos – o qual apadrinhou – para um lugar mais sossegado e levar uma vida digna, ou seja, trabalhar, parar de beber, fumar e, por fim, esquecer a vingança que teria com as pessoas que lhe fizeram mal. Entretanto, ao passar um tempo nessa vida tranqüila, ele recebe visita de uns jagunços - entre eles o líder Joãozinho Bem-Bem - que o estimulam a voltar para a vida anterior. Mas isso não se dá imediatamente, os jagunços vão embora e, com o decorrer do tempo, essas idéias vão se amadurecendo na cabeça de Augusto. Até que certo dia se despede de todos e vai em busca dos jagunços. Acha-os numa cidade onde todos estavam apavorados, pois eles queriam vingar a morte de um de seu grupo. Mas Augusto intervem dizendo que não era justo matar outros por causa de vingança. Então, há um duelo final entre Augusto e Joãozinho Bem-Bem e ambos morrem. Essa é a narrativa e ela segue esta mesma ordem linear em discurso livre indireto. Mas o que mais surpreende é a sintaxe e os léxicos utilizados por Guimarães. Talvez esteja aí a forma citada por Guimarães. Os assíndetismos costuram o texto e conferem um ritmo veloz à sua narrativa. Orações curtas e repetitivas conferem vigor às suas frases. Por outro lado, utiliza-se de palavras inovadoras (composições como: “nomopadrofilhospritossantamêin”) ou arcaísmos de linguagem. Essa tendência de Guimarães se manterá até os seus últimos livros pois o manejo com que ele cria as palavras é que faz com que seu texto vire arte. E a arte é uma linguagem que foge do convencionalismo, foge do que já foi instaurado pelo comum. É o estranhamento que faz com que a literatura de Guimarães seja criadora e instauradora de novos valores. Seu texto é poético, porque se prende na mensagem, ou seja, valoriza-a intensamente, pois como nos diz Franklin Oliveira : “Tem o verdadeiro artista,como dever fundamental, fundar uma nova ordem de valores. É com a fundação dessa ordem que a arte literária enriquece a língua (...)”. E Por isso, continua ele, “o artista sente, com imperatividade inelutável, a necessidade de estar constantemente elaborando novas falas, novos tipos de comunicação, ‘dialetos’que, pela sua inusitada carga expressiva, vençam a carapaça da língua de uso social e cheguem ao leitor com a força de um impacto”.
Paradoxalmente, é através da linguagem moderna (assemelhando-se a Joyce) que Guimarães Rosa vai escavar o mundo rústico e medieval do interior de Minas. Mundo onde Augusto Matraga encara as tenções medievais entre religiosidade e paganismo, como se vê nessa passagem, onde o personagem começa a voltar para o cangaço: “Nem pensou mais em morte, nem em ir para o céu (...). Bastava-lhe rezar e agüentar firme, com diabo ali perto, subjugado e apanhado de rijo, que era um prazer”. Assim, a tensão entre o bem e o mal é constante na obra de Guimarães. Mais ainda: o bem e o mal não conseguem ter uma definição clara, pois, se lembrarmos, Augusto Matraga, ao voltar para o cangaço, voltou fazendo o bem que era matar, mas matar por uma causa que julgava nobre. Afinal, qual causa que é nobre? Essas questões atormentariam também Riobaldo, personagem de O Grande Sertão: veredas. Nesse sentido podemos confirmar em Guimarães que o certo e o errado, o bem ou o mal atormentam seus personagens.
Além disso, a descrição do ambiente também ajuda na composição do personagem, pois quando Augusto Matraga começa a quationar-se se realmente seria aquele homem simples e pacato a natureza se funde em seus pensamentos. Ele passa a observa-la mais e a vida ao redor fica mais intensa: “E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais”.
Enfim, Guimarães Rosa revela um mundo onde ele consegue com a linguagem - arcaica ou inventada - instaurar um mundo de ficção onde o moderno e medieval, o bem e o mal, o mítico e o real, o épico e o lírico se imbricam constantemente, pois como nos diz Alfredo Bosi: “as suas estórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global da existência, próxima de um materialismo religioso, porque panteísta (...)”. E tudo isso já é notado em A hora e a vez de Augusto Matraga.
Quincas Borba: a autoconsciência da denúncia ou a autodenúncia da consciência


Publicado em 1891, Quincas Borba é considerado como o segundo livro da fase realista de Machado de Assis. Nesta obra Machado denúncia uma burguesia interesseira que, para conseguir ascensão social, utiliza-se de artifícios inescrupulosos e falsos. Apesar de o tema ser sério, Machado pontua sua escrita com um humor fino e sarcástico. Aliás, tal humor é frisante neste livro, o qual o próprio título tanto se refere ao personagem, que logo no inicio morre, ou ao seu cão, que passa a ter seu legado (por isso, talvez, seja mais naturalista que realista). Assim, o que Machado problematiza é a validade do cientificismo, tão divulgado na época da publicação do livro.

Mas como ele faz isso? Como pode ser realista ou naturalista, e criticar o próprio status quo? Bem, se passarmos os olhos pela trama da história, veremos que o livro se trata realmente de um realismo beirando o naturalismo. A história fala de um humilde professor de português de Barbacena, Rubião, que herdou de Quincas Borba – filósofo que morreu maluco – uma fortuna. Rubião – repare no nome, pejorativo de rubi – resolve ir para o Rio de Janeiro e se envolve com pessoas que o cercam e prometem-lhe amizade e fidelidade. Cristiano Almeida propõe-lhe uma sociedade numa casa de importação, mas para isso precisava de capital. Rubião entra com capital e Cristiano passa a administrar todos os negócios. Sofia, sua mulher, conta-lhe que Rubião a assediara. Mas Cristiano não faz nada, pois, como ele diz, “nada me abala relativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações.”Por outro lado Rubião também é procurado por Camacho, político que precisava de dinheiro para seu jornal. Rubião empresta-lhe e Camacho promete-lhe lançá-lo como deputado. Já Sofia, apesar de ser fiel ao marido, não o repudia totalmente. Nosso protagonista vai alimentando desejos de grandeza e cada vez gasta mais o que não pode. Cristiano percebendo que o dinheiro de Rubião estava acabando e seus negócios melhoravam, resolveu abrir a sociedade. Camacho não conseguiu elegê-lo. Mas, a essa altura, Rubião já começava apresentar sinais de loucura, dava jóias para Sofia, doava quantias vultuosas para uma organização de caridade que ela fundara, fazia grandes jantares, e pensava que era Napoleão. Enfim, à medida que nosso protagonista enlouquecia, as pessoas aproveitavam-se, mas, ao mesmo tempo, se afastavam dele. Rubião ao final do livro já estava pobre, sem amigos e louco, enquanto os outros que o cercaram durante toda trama tinham crescido socialmente às suas custas. Rubião termina sua jornada em Barbacena com o Quincas Borba, repetindo, já sem entender, a frase proferida pelo filósofo: “Ao vencedor as batatas”.

Como se vê a trama é naturalista. Estamos num mundo, semelhante aos livros de Zola, ou para citar um dos nossos, Aluísio de Azevedo, onde só os melhores vencem. A luta pela sobrevivência, o aperfeiçoamento humano, a evolução da espécie, preconizada por Darwin, são os atributos do homem, que aí se iguala a qualquer outro animal. Rubião, nesse sentido foi vencido pelas forças naturais, não foi apto o suficiente para subir no Rio de Janeiro, pois tinha uma alma provinciana. A concorrência numa cidade grande colocaria-o de fora. Vê-se isso até na sua inabilidade para dizer palavras bonitas à Sofia. Faltava-lhe naturalidade, as palavras eram-lhe artificiais. Tal não acontecia com José Maria, que se tornou seu inimigo por causa de Sofia. Mas José Maria casou-se com uma prima dela e teve filhos. E Rubião não se casou com ninguém e morreu sem perpetuar a espécie. Por esses motivos, Machado se encaixa numa narrativa naturalista. Mas é um naturalismo permeado de autoconsciência. Em Quincas Borba, o naturalismo fala dele mesmo, é reflexivo, metapoético.

Tal afirmação pode parecer paradoxal. Mas não o é. Em literatura, não se deve demarcar rigorosamente os estilos. O que se pode ver é ora a predominância de um, ora a predominância de outro. A sociedade molda de certa forma as características do escritor. Todavia, a genialidade deste pode superar, ou melhor, ver com mais profundidade, e aí sim superar a contemporaneidade. Machado era um desses. Em Quincas Borba, o naturalismo se desdobra, vira ao avesso e mostra, com toda ironia, a sua alma. Percebe-se isso com a filosofia do “humanitas” de Quincas Borba em que diz: “- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de umas delas, mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra.” E depois cita o exemplo de duas tribos, que têm poucas batatas para comer, e então elas necessitam guerrear para atingir outro campo, onde as encontram em abundância. Assim, segundo Quincas, a “paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é conservação”. Destruição porque não daria para as duas tribos sobreviverem só com o primeiro campo de batatas, que é insuficiente. Nesse sentido, o filósofo defende a guerra. Ela é a condição de sobrevivência dos mais fortes, e de perpetuação destes. E arremata categoricamente: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Depreende-se disso que Machado não só retratava fielmente a condição humana, como Aluísio faz em O Cortiço, mas, sobretudo, analisava-a, investigava profundamente as proposições do cientificismo vigente, relacionando-o com os labirintos da psique humana. É assim, portanto, que Machado se aproxima de Proust, cuja investigação psicológica chega a um ponto culminante. O naturalismo de nosso escritor já não é superficial, ele se desdobra, ele atinge camadas mais profundas do ser.

Pode-se dizer, então, que Quincas Borba antecipa o final de Rubião, que, por sua vez, alimenta a vida e a riqueza daqueles que estiveram ao seu lado no Rio de Janeiro. Mas esse movimento de “supressão” de umas das partes para “a condição de sobrevivência da outra” não acontece mecanicamente, de maneira fugaz e inevitável, pois Rubião num dado momento pensa em voltar para Barbacena, isola-se, não procura Sofia, e, como nos diz o próprio autor: “Se a alma dele foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era simples alma de um homem arrependido do gozo, e mal acomodado na própria riqueza.” Mas era necessário que Palha e Camacho impedissem a sua saída (a trama tinha que se desenrolar até o final), por isso, quando comunicou sua saída, “olharam um para o outro” como “um bilhete de cartão de visita trocado entre as duas consciências”, o segredo foi guardado mas “era preciso impedir que o Rubião saísse”. Deste modo o desenlace da história não acontece de maneira abrupta. Ora Rubião resiste, ora Rubião cede. Os personagens de Machado são sinuosos, redondos. Eles não vão a um destino final e inexorável. Esta característica se vê bem em Bentinho e Capitu, Dom Casmurro, onde o jogo arma-se e desarma-se no decorrer da história. Se aqui Rubião chegou a um fim trágico, este fim serviu para alimentar a vida de outros, como a morte de Quincas Borba alimentou a vida de seu cachorro (animal aqui que se humaniza) e Rubião. Coloca-se, assim, a vida como se fosse uma máquina movimentando outras. A diferença é que essas máquinas têm consciência das suas próprias condições de movimento.

Na época em que Machado escreveu seu romance, a sociedade brasileira ficava mais complexa. Já havia aparelhos burocráticos, começa a surgir uma classe média que busca ascensão social. Alguns são remanescentes de oligarquias agrícolas falidas, outros se fortalecem nas forças armadas, devido à Guerra do Paraguai, outros são comerciantes. Os filhos de fazendeiros vão estudar nas faculdades, elaboram suas teorias nacionalistas, e vão buscar empregos públicos. A vida urbana toma importância Enfim, a sociedade não se baseia somente na relação entre escravo e senhores de fazenda. Essa complexidade emergente influiu na maneira de pensar de Machado, pois ele vai denunciar a luta que as pessoas mantém para conseguirem um espaço. É essa disputa que se vê em Quincas Borba. Entretanto, essa luta não acontece somente do mundo exterior para a superficialidade do romance, ou melhor, as contradições da sociedade interferem diretamente nas contradições internas e psicológicas dos personagens, criando um grande amálgama, como vemos no capítulo LX, quando, numa cena de verdadeiro romantismo, Rubião salva um garoto que iria ser atropelado e perde seu chapéu, que lhe é restituído por outro garoto; Rubião dá-lhe então alguns níqueis, e Machado revela-nos os pensamentos: “Não o apanhou senão para ter uma parte na glória e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobres, com prazer; foi talvez a primeira idéia que lhe deram da venalidade das ações”. Como se observa, portanto, a estrutura da sociedade, cada vez mais complexa, influi diretamente na personalidade dos seus atores. Não há mais em Machado, como havia em Macedo e em Alencar, a dicotomia entre bem e o mal. Como não há mais somente duas classes distantes entre si. Seus personagens oscilam, como a estrutura social, entre um pólo e outro.

Como se depreende do que foi dito, há na literatura de Machado uma rede intricada de relações, onde as mazela do capitalismo insurgente no Brasil influi na psicologia de seus personagens, os quais lutam por uma posição segura na sociedade, mas, ao mesmo tempo tem plena autocrítica disso. Autocrítica que não foge à Rubião que, logo no primeiro capítulo, pensa que, se Quincas Borba tivesse casado com sua irmã, não teria todo aquele luxo, mas já no segundo capítulo repudiou, “vexado daquele pensamento”, e tentou se concentrar, inutilmente, numa canoa; inutilmente, porque logo adiante “o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria”. E o mesmo coração “vai dizendo que, uma vez que mana Piedade tinha que morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha...” Essa trema diz tudo, pois se viesse os filhos, Rubião perderia a herança. Ele volta à divagação da canoa e arremata com toda carga de ironia: “- O certo é que eles estão no céu!”. Rubião, nesse sentido, sofre o conflito entre agir pelos seus interesses ou pela ética. Conflito que ele não consegue resolver e acaba sucumbindo à loucura, ao desejo de grandeza incoerente. Tal desejo se vê, daí a contemporaneidade do romance, hoje em dia, quando pessoas, para manter um falso status, se endividam comprando coisas que estão fora do alcance. Machado vai demonstrar isso com Rubião, que por hora tem consciência plena, que por outras age inconscientemente, através de atos falhos. Já Quincas Borba morrerá rico, mas de nada adiantará sua riqueza, pois a riqueza segundo a filosofia de “humanitas” deverá ser transferida para a sobrevivência de outros. E tal acontece no percurso de todo romance. Quincas Borba tem autoconsciência da sociedade, mas ele é filosofo, e por isso sua verdade será explícita e irá patentear o livro. Por outro lado, em Rubião esse processo de reconhecimento se dará hora de maneira velada, hora de maneira explícita. Hora dita, hora não-dita.

Conclui-se, então, que Quincas Borba é um livro que retrata uma sociedade cada vez mais complexa, onde surge uma classe média incipiente que buscará espaços na sociedade, que buscará estabilidade e ascensão. Mas Machado não fica só no retrato de costumes, atinge assim uma profundidade maior, foge à superficialidade. Nele, não interessa somente o cientificismo do meio refletindo sobre as pessoas. O autor é dotado de uma consciência autocrítica. Esta se vê no filósofo Quincas Borba, que, com o discurso de autoridade, prevê o destino dos homens e do seu amigo, Rubião. Já este oscila entre o ser oportunista ou ético. Não tem habilidade, é provinciano, não se adapta à vida na corte, e acaba sucumbindo. A sua consciência às vezes é clara, às vezes é velada. Pendula entre a loucura e a realidade. A primeira toma-lhe por completo, pois tem sonho de grandeza mas morre pobre. Por outro lado, sua riqueza é transferida para seus “amigos” que tanto o bajularam, quando ainda rico. O naturalismo de Machado atinge o interior da realidade, atinge o âmago das pessoas, relaciona-se com a complexidade da sociedade que surgia e a complexidade da alma humana, criando assim uma rede, uma estrutura intrínseca e interna.
Por fim, é um livro ainda atual, porque todos nós passamos por isso. Estamos sempre entre o agir por altruísmo ou o agir por interesse. E quantas pessoas não se deparam um dia pensando sobre isso? E quantas pessoas não agem, como Rubião, gastando, por puro exibicionismo, o que não podem? Serve então o livro para que se tenha uma maior autoconsciência da vida e, sobretudo, dos atos.
LIVRO-ME


“(...) quando, estando a atenção de dois amigos ocupada no papel que há de cada qual desempenhar, a fim de enganar o outro, nem vê os artifícios praticados contra si, nem deles suspeita; e, destarte, a estocada de ambos (para usarmos de uma metáfora não imprópria da ocasião) é simultaneamente desferida”

Henri Fielding, Tom Jones

“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”

Machado de Assis, Dom Casmurro



Um dia me disseram que a minha livre vida
é um livro, cujas páginas estão abertas.
Mas faltou-me uma quando me vi a folheá-las.
Páginas mais páginas; mas e aquela?... perdida.

Andaria pelo espelho e beco que ias tu?
Nua e suja se a via comentada na esquina
e no fim se fundia com outra alma ou outra sina?
Ou, por aleivosia, tê-la-ia arrancado Capitu?

Vasculho baús, porões de antigamente.
Acho cartas, fotos, memórias indigentes.
Mas capturá-la, insana arte, não consigo.

Talvez a tenha num cofre perdido de chave.
Ou não. Não se faz oculta e sorri com classe
nesta página que se finge aqui, de livro.