quarta-feira, 27 de maio de 2009

ROLETA-RUSSA OU O LIVRO DE AUTOAJUDA


1.

A vida não é resolvida.
A vida se resolve todos os dias.
Pegue um revólver,
gire o tambor,
dê uma despedida ao seu amor
e tente a sorte.

A vida não é resolvida.
A vida se resolve todos os dias.
Pegue o que te envolve,
segure com calor,
dê uma alegria ao seu amor
e sinta-se mais forte.

A vida não é revolvida.
A vida te envolve todos os dias.
Como te envolve a morte.
Segure-a com pavor,
dê uma poesia à sua dor,
cujos versos você escolhe.

A vida não é envolvida.
A vida se desenvolve todos os dias.
Como se dissolve a sorte.
Atente-a no tambor,
dê um suspiro ao seu amor
e engatilhe-a forte.

A vida não se resolve
A vida é resolvida todos os dias.
Pegue o revólver,
dê um despedida à sua dor
e atente a sorte.


2.

De tambor é feita a vida.
De vida é feito o revólver.
De revólver é feita a sorte.
De sorte gira a morte.

Mas a morte não só gira,
a morte resolve a vida.
A vida que se resolve morte.
A morte que explode e não gira.

A morte que explode e gera vida.
O esperma que explode e gera morte.
A morte que espera numa agulha.
A unha que arranha uma ruga.

A ruga que tem sorte de ser ruga.
Tem sorte de ser ruga e não ser morte.
A morte é que não tem sorte de ser sorte,
nem unha nem ruga,
mas terra que se revolve.

Pra terra que se revolve
tem norte a vida.
Pra terra que te envolve
tem vida a morte.

Tem vida a ruga
que se encaminha para morte,
mas tem sorte a unha
que demora a se resolver morte.

Da morte gira a sorte.
Da sorte é feito o revólver.
Do revólver é feita a vida.
Da vida é feito o tambor.


3.

O tambor que gira gira
mas cala.

O tambor que fala fala
mas para.

O tambor que é do cão
e é do chão.

O tambor que não ladra
mas é ladrão.

O tambor que é só dele só
e do cão.

O tambor que é só dele só
no coração.

O tambor que é só dele só
e se marca.

O tambor que é só deleite
mas de bala.

O tambor que exprime
o que não se fala.

O tambor que é minuto, espera.
E é explosão.

O tambor que é amor
e esperma.

O amor que é tambor
(e especulação?).


4.

Não especule sobre a bala e a agulha.
Rasa, mas que fundo cava,
vai como larva que vasculha,
fura. A ruga como que encravada.

Como unha encravada cava a bala.
Cava o corpo em todo o seu ser
que expira e quase delata
o que seria a vida se não fosse morrer.

Mas o corpo é como bala, fechado.
Se não, não seria corpo nem bala.
Seria algo: o quase, inacabado.
Igual ao sim e não quando se cala.

Mas se fala, é porque existe bala.
A bala que acaba o começado.
A bala que abre o que se cala
e cala o que foi passado.


5.

O passado arde em seu corpo,
tiro.
O passado que se rasga no corpo,
fala.
Grita. O grito da última.

Terá sorte? Será o último do jogo?
Lúdico, o brinquedo roda,
roda numa ciranda,
de mão em mão, roda
de canção em canção, roda,
roda a roda gigante,
como também roda o peão, roda,
cada qual na sua exata hora, roda,
o mundo o relógio o segundo, roda,
roda roda. O mundo roda.
Para.

Num jogo de cadeiras,
roda a bala.
Sempre de mãos dadas, imperfeita fileira,
serena e trêmula vai
rodando pelos que
conquistam e querem, apostam e vivem, sonham e
adormecem...
Como dorme o segundo no relógio
e a terra na vastidão.

Mas vá. Tente a sorte que te atenta.
Atente-a. Pegue o revólver, cante mais uma canção,
e não se descubra só,

naquela pequena hora,
na hora curta, lenta
que, longa, se estende no chão.


6.

A hora do chão. O ser-bem-vindo ao chão.
Do chão nascem balas e outros metais.
O chão é frio, arde.
O chão é posse, iniquidade.
O chão é rio, infinidade.
O chão é só e você
sem mais, sem chão.

Mas é baque e também revolve.
É tambor, é revolver, é bala.
Sem chão, o chão te envolve.
O que era bala passa a ser chão.
O que era você não passa. A não ser no chão
que é bala e é ossos,
que é duro mas se resolve,
que é mar muito profundo,
que é fluido e como bala, resvala
na vala
no virar da sorte
e do revólver-mundo.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sem rédeas

A morte vem a galope.
A morte vem a galope.
A galope vem a morte.
A morte não escolhe,
pois para morte não há sorte.

A morte não foge.
A morte não foge.
Ela vem, vem a galope.
A forte fode
num golpe, a galope.

A morte vem a galope.
A morte vem a galope.
A galope vem a morte.
A morte não morre.
A morte é forte e torta,
A morte trota torta trota.
A morte galopante bate à porta.

A morte vem a galope.
A morte vem a galope.
galope,
            galope,
                        galope...
GRAXA


Dois degraus subidos, cinqüenta centavos na mão e cafezinho pedido. Estava duro mas bem arrumado. Meu pai sempre me disse que a gente tem que andar bem arrumado. Dá boa impressão. Bem, o destino era incerto e um café talvez me despertasse para a vida. Depois, sairia para algum lugar. Qual?... Ainda não sabia. Tinha que arrumar dinheiro. Ninguém vive só com algumas moedas no bolso! Mas o desespero tem dessas coisas: achamos que a desgraça paira só sobre nós, nunca com os outros. No centro da cidade um milhão de pessoas andavam em torno de mim, mas não via ninguém. Ou se via, achava as pessoas felizes. Preferia não ver. Recalque, é assim que as coisas funcionam. Eu era o fodido, o desesperado a ponto de me jogar do Edifício Central, como que para mostrar meu estado de decadência. Aliás, acho que todo suicida é orgulhoso, eles têm orgulho de ser vítima. Na verdade, o suicida quer mesmo é viver para observar o estado de consternação dos outros diante a sua morte. Nesse dia, acordei pensando no suicídio; vinha pensando freqüentemente nisto. O café, porém, sempre me salvava. Coisa de brasileiro, um cafezinho e um trago no cigarro sempre segura a onda.

Bem, quando ia tomar meu primeiro gole, surgiu um engraxate. Até aí tudo bem, me ofereceu para engraxar o sapato e eu disse que não, mas ele não se conteve e pediu de novo. Novamente disse que não, estou duro. Ele, então, não se deu por convencido. Tem suas razões, pois um homem bem arrumado não deveria andar sem dinheiro. Dá boa impressão, me lembro do meu pai. Abaixou-se e agarrou o meu sapato. E eu repetia: - Não, não, estou duro! E ele dizia: - Não tem problema, doutor, algumas moedas. E eu: - Mas não tenho nem essas moedas. E ele já não dava mais ouvido. Agarrou meu pé e começou o serviço; e quanto mais eu tentava tirá-lo, mais ele o puxava. Desesperava-me: - Não, não, não! E ele: - É rápido, doutor, rapidinho. Parecia que queria levar meu pé, tirar meu sapato e engraxá-lo com a língua.

Nunca mais vou me esquecer desse dia. Via aquele homem descalço, agachado, se rastejando nos meus pés com as mãos grossas, olhar arregalado, as narinas pareciam que iam botar fogo para fora, como um dragão. Suava bastante, parecia que ia derreter. Ele não parava seu trabalho com a escova. Esfregava de cima para baixo, de um lado para outro. Não era mais um dragão, era uma locomotiva, e suas ventas eram a chaminé. Direita e esquerda, sobe e desce, pra frente e pra trás. Por momentos, me senti um rei e ele era o meu criado, pronto para receber as minhas ordens. Não, na verdade, não era criado, pois pessoa não era, era pedra que a gente topa e xinga “merda”, ou melhor, era a própria merda, daquelas secas, que nem cheiro tem mais. Me senti forte, corajoso, imenso como a estátua de David. Soberano. Poderoso. Rico.

Ele continuava: em cima e em baixo, esquerda e direita, pra frente e pra trás. Maquinalmente tentava desvencilhar-me. E ele maquinalmente engraxava meu sapato. Não! Não! Não tenho dinheiro! tentava dizer. Só alguns trocados, só alguns, tentava me responder. Observava aquele corpo negro colado ao chão. Mas o chão era seco de mais, ele não. Ele suava e respirava. Suava , respirava, e parecia amar alguma coisa. Sim, ele amava algo. Dava para perceber: o seu vigor, a sua dedicação... E não desistia de engraxar o meu sapato porque amava. O amante não desiste nunca. Seu corpo emitia fluídos: uma gota de suor, uma saliva, um bafo quente. Tinha ele um bafo quente e uma mão também. Seus olhos arregalados traziam lágrimas, estavam lá prontas para descer, a qualquer momento. Ele amava, sem dúvida, e um dia iria soltar aqueles orvalhos suspensos, retidos.

Comecei a me sentir incomodado. Eu não tinha dinheiro e não podia fazer nada. Eu tinha que ter dinheiro. Uma pessoa que anda com um sapato de couro e camisa social de linho tem que ter dinheiro. Um absurdo! Mas eu era esse desgraçado. Sim senhor, um desgraçado que só tinha dinheiro para pagar aquele mísero cafezinho. E nada mais! Não podia fazer nada para ajudar aquele homem. E como ele era digno. As veias estufadas, seus cenhos concentrados, sua dedicação, seu orgulho: tudo isso fazia com que ele fosse digno. Enquanto eu continuava com minha inutilidade, sem nada poder fazer. Não conseguia nem pronunciar mais palavras. O engraxate continuava seu serviço e eu já me sentia um mísero perto dele. Agora era eu quem estava aos seus pés; eu me rastejava como um escravo pedindo perdão ao seu senhor. E cada esfregão dado no sapato era como se o meu senhor estivesse me acoitando, esfolando a minha pele, fazendo escorrer meu sangue de barata. E o engraxate continuava com a sua tortura: em cima e em baixo, de um lado para o outro. E eu não conseguia mais me redimir, só a minha expressão de arrependido já me denunciava. E minha face dizia: sim, meu senhor, tens razão, eu sou o culpado por tudo, eu sou o inútil, bata-me, bata-me até devolver minha alma ao Diabo.
O engraxate passou a mão sobre a testa dizendo: - Pronto, senhor. Está novinho em folha. Poderia me arrumar um trocado? Tentei responder que não tinha, mas era tarde. Ele já tinha saído e abordava outro homem.Tomei a rua. E com os sapatos engraxados, meio sem rumo ainda, subi até o último andar do Edifício Central e olhei para os pés. Eles brilhavam.
Hoje o dia amanheceu
como amanhecia antigamente.
Mas hoje o dia é novo.

Mas hoje os homens ainda
batem os seus martelos
com força
como batiam antigamente

Mas hoje o mundo sendo construído
como sendo era
construído antigamente.

Mas hoje tinha toda essa gente
como tem antigamente.
Tinha tempo hoje
Como tempo tem
antigamente.

Mas hoje tem sol
como sol se soletrava
antigamente.

Mas hoje têm pássaros
como pássaros passarinhavam
antigamente.

Mas hoje tem martelo
como martelo marca
finca uma estaca
no meu presente.

Mas o hoje
é um novo
ausente.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O JOGO DE XADREZ






1. P4R P4R

Para se jogar xadrez há de se ter paciência. Se defender, esperar para avançar, ficar à beira de uma jogada para ganhar ou perder, pensar na frente, sem errar no cálculo. Paciência, tudo isso a exige. Mas o relógio corre rápido e ela e o tempo se esgotam.


2. CR3B CD3B

No começo tudo é fácil (qualquer manual de abertura diz isso). As jogadas possíveis ainda são reduzidas. É como se tivéssemos apenas aprendendo a falar, sem contarmos ainda com a enorme variação de linguagem que existe dentro de um único sistema. Mas já está embrionado ali o que virá a ocorrer depois. As primeiras palavras serão repetidas posteriormente em ordem direta e inversa, o nosso repertório aumentará, iremos brincar com elas, parodiá-las-emos, seremos irônicos, taxativos, parafrasearemos outros, interrogaremos, e não teremos medo do ponto de interrogação que mais se assemelha ao grave bater de uma peça na madeira quando a avançamos.


3. B4B C3B

Às vezes, é claro, que avançamos mal. Ficamos desguarnecidos, perdemos uma peça importante. Para isso, é preciso um minuto de descontrole, um lapso, uma falta de concentração, uma palavra não pensada, uma inconsequência que pode comprometer todo jogo. Aí o xadrez sai em desvantagem do pôquer, no qual você pode apostar tendo apenas uma dupla na mão. No xadrez não há blefe. Todas as jogadas estão ali, nas 64 casas; da mesma forma que um poema se encontra inteiro e imóvel na folha de papel. É tudo claro, limpo, a olhos vistos. Mas o jogador, apesar de diminuídas as possibilidades, se for esperto, deve, em certas circunstâncias, desviar o jogo para uma peça esquecida no tabuleiro, longe do conflito, como se colocasse uma palavra fora de propósito, mas consciente de sua utilidade. É quase que um afluente de um rio, que depois o comporia em toda sua força e volume, ou um galho esquecido de uma árvore que absorve, junto com os outros pequenos ramos, toda energia para sua forma secular e vigorosa. Neste pequeno desvio, essa obliquidade, a mesma que se encontra nos grandes poemas - em geral os mais sólidos e perenes -, mas que está ali, sempre esteve com todas suas variantes, neste desviar-se para o canto, aparentemente atordoado, para em seguida atacar é o que faz do jogo de xadrez um jogo de frieza, cálculo e rigidez da moral.


4. C3B B5C

Penso na moral pacífica e serena de Espinosa, na sua felicidade em saber que toda a arquitetura do Uno já está armada, e que todas as coisas são assim porque assim devem ser, e que somos parte dessa grande teia, de Deus. O mesmo acontece com o xadrez: as possibilidades estão ali, porém infinitas. E no decorrer do jogo, se tudo vai bem, elas multiplicar-se-ão, mas, se erramos, diminuem. Por isso, deve-se desenvolver logo suas peças, colocá-las no centro do jogo para aumentar seu poder de mobilidade. Aliás, lembro-me que um amigo me disse que no livro A arte de guerra, de Sum Tzu, ensina-se ao combatente ficar no ponto mais alto da colina para de lá observar, estrategicamente, seus inimigos. Assim o é no jogo que tratamos. É necessário observar todos os pontos do tabuleiro, todas as peças, mesmo o peão mais remoto, pois ele compõe o todo do jogo; essa unidade mínima tem um interdependência com as outras peças, criando, assim, o que se costumou chamar de estruturalismo . A mesma que observamos no texto: uma frase mal colocada, uma palavra a mais, uma vírgula esquecida pode ser vital para uma leitura falsa, os males-entendidos, para seu perecimento precoce.


5. P3TD B4T

Neste interessante jogo, entretanto, não jogamos sozinhos. Temos nosso adversário. E, com a excessão de quem começa primeiro o jogo, ambos têm as mesmas possibilidades. Vencerá quem enxergar mais na frente, quem tiver a visão mais ampla e dinâmica do jogo, como uma ave de rapina; quem conseguir ver o detalhe de um galho na copa de uma árvore ou - quem dera - calcular a parábola da queda de cada gota de uma cachoeira porque, como se disse, de gota em gota se faz um rio - e ele pode vir a transbordar, arrastando tudo que foi anteriormente construído. Por esses motivos, deve-se se preparar para o jogo da mesma forma que uma criança para a vida: aprender as palavras, explorar suas sonoridades, modelar um raciocínio lógico-formal e, além de tudo, incentivar seu potencial criativo. Uma pessoa não acostumada à leitura ao pegar um livro de Baudelaire certamente terá dificuldade, mas se for experimentada com certeza as interpretações que fará do livro serão maiores, ou seja, terá mais possibilidades para perceber as variantes, os sentidos escondidos, as obliquidades, a trama arquitetônica que ele traça em seus poemas. No xadrez não se dá de forma diferente. É necessário estarmos sempre mais preparado do que nosso adversário, fazermos inferências mais complexas do que ele, adiantarmo-nos no pensamento, esquadrinhando assim uma geometria infalível e precisa.


6. P3D P3D


Mas seria muito bom se tivéssemos somente nosso adversário, se ele fosse o único responsável pelo nosso sucesso ou fracasso. Se fosse só ele quem estivesse do outro lado a nos desafiar com uma rápida troca de olhar, com o bater forte e determinado das peças no tabuleiro; se fosse só ele o nosso único vilão, o nosso único carrasco, a nossa única contra-parte - a parte que se quer fazer mais forte - sentiríamos honrado em perder a partida, em perdermos e depois de apertarmos as mãos dizermos: - Foi uma grande partida, você é bom. Mas não! Não existe só ele, ele não é o único que nos derrota, que nos ameaça, como uma leão ameaça uma lebre, como uma águia caça um rato. Existe um outro jogador, mais bem camuflado, escondido, pronto para dar o bote, um jogador mais sereno, calmo, sutil... mas que o deixa de ser quando surge arrebatadoramente! Esse campeão pode nos derrotar em um só lance. Dele, não temos conhecimento, nem podemos controlá-lo. A luta que travamos com esse fantasma é desonesta porque não sabemos onde ele posiciona suas peças. Ele nos assusta, nos desespera, nos leva a cometer o erro. Esse monstro sinistro tira nossa razão, quer nossa alma, tira-nos qualquer força de reação. Aniquila-nos. Só sentimos sua presença quando somos acometidos por algum dano material grave no jogo: um cavalo, uma torre, uma dama. Esse vilão toma posse de nosso corpo e mente e nos faz agir precipitadamente, e nos leva para o abismo, pois é lá sua moradia: um abismo negro, insondável. Um abismo que não está longe de nós. Sempre o levamos conosco. E nos afogamos nele. E pedimos socorro. E que está enterrado no nosso corpo que, por sua vez, se sepulta nele.


7. B3R B3R

Tudo bem. Não vamos nos desesperar. Cientes de nossos inimigos, vamos tentar controlá-los. Se não der, vamos admitir alegremente nosso destino trágico. Como queria Nietzsche, os dados já foram lançados e nada podemos fazer diante deles. Mas, afinal, se já foram lançados, porque escrevo aqui? Porque dou dicas de como jogar xadrez, se as jogadas já foram traçadas. Será porque, num acaso (e de quantos acasos não se traça uma reta?), você teria que ler isso para continuar jogando? Para querer continuar a partida e vencer? Para aprender a decifrar as mil partes de um poema? A solidez fria mas fluida de uma palavra. Ah...de quantos encontros fortuitos é feita a nossa vida!


8. BXB PXB

Muitas vezes quando nos deparamos com algum problema no jogo é quando começamos a pensar. Ou melhor, problematizar. Até então vínhamos jogando mecânicamente e acreditávamos que era tudo fácil. Mas ao surgir algo inusitado, uma situação que nunca vimos, parece que tudo para. Há, dessa maneira, algo que aconteceu aos nossos estímulos que não estamos aptos a responder, e ficamos sem reação, paralisados, como também ficou a dona de casa G. H. ao se deparar com uma barata no quarto de empregada da sua casa na ficção de Clarice Lispector. Assim, se deparar com o estranho é pensar novas possibilidades no jogo; possibilidades que vamos ter que encontrar porque fomos forçados a isso. Evidentemente que, quando somos tomados pelo susto, pela intensidade, parece que caímos num vácuo e tudo por alguns segundos se faz em silêncio. Um silêncio oco e sem forma. Um silêncio aniquilante e sem tempo. Sem começo e fim.


9. 0-0 0-0

Que bom se todas as partidas de xadrez fossem assim, se não tivéssemos tempo para contar, se pudéssemos ficar infinitamente pensando nas próximas jogadas, traçando milimetricamente os novos caminhos. Mas não. Temos que ser rápidos e certeiros como uma flecha. Aliás, Parmênides queria que ela não saísse do lugar, que tudo fosse imóvel e eterno devido a uma paradoxal divisão de espaço e tempo. Infelizmente, isso não acontece. O xadrez está mais para o rio de Heráclito do que para o mundo imóvel desse filósofo. A flecha é rápida e certeira. E, se não formos mais velozes do que ela, nosso destino será fatal e imediato. Só poderemos ser mais rápidos do que ela se treinarmos bastante. A repetição vai nos condicionar a ter reflexos rápidos para qualquer eventualidade, como em qualquer outro esporte. O treino, a repetição, o estudo, a prática, o suor: só assim obteremos capacidade para darmos respostas rápidas e perfeitas. Assim, a perfeição é adquirida através de muitos erros, de muitas falsas ideias, de muitos caminhos errados, de muitas topadas. A repetição, além disso, nos fará ver que num dado momento do jogo, quando sempre tomávamos o mesmo caminho, poderíamos tomar outro. Ela apura-nos mais os sentidos, faz-nos ver algo de diferente em algo que foi sempre igual e aparentemente monótono. É como se encontrássemos um segredo novo na famosa Mona Lisa de Leonardo da Vinci; como se descobríssemos alguma intenção a mais no olhar dela, um desvio que fosse, um pequeno pestanejar, um levantar a mais no seu sorriso. Tudo isso exige treino, pois com ele seremos mais rápido que nosso adversário e dele saberemos a intenção.


10. P4CD B3C

Sim, seria muito bom se estivéssemos a jogar xadrez num lindo parque com alguém que não se incomodasse com a nossa demora e durante o jogo pudéssemos parar para contemplar a brisa brincando com os galhos das árvores, que fazem um chiar de peneira, que vai selecionando grãos, folhas que já passaram pelo crivo do tempo. E os raios do sol penetrando-lhes numa indefinida perpendicular, pedindo-lhes licença para caprichosamente beijar calorosamente o chão, criando, nesta sonata amorosa, uma composição que se movimenta - entre a luz e a sombra - num lânguido embalar que retorna sempre novo, como o eterno movimento das ondas ao banhar a pele alva e fina da areia, da terra. E que bom seria se tivéssemos tempo para alongar nossos olhos por essa planície multiforme e vermos ao longe uma cascata sem a preocupação de saber a velocidade ou o ângulo da queda das águas, pois para senti-las não precisamos de tanta engenharia. Basta a gente escutar a limpidez de seu escorregar e beber a fluidez de seu marmulhar. É o mesmo que marmulha em nós quando escutamos uma música antiga e depois - tal dedinho de criança quando frágil nos faz carinho - delineia uma lágrima, brincando nos sulcos de nossos rostos. Mas aí olhamos, esperançosamente, para cima, para onde termina a montanha e começa o vasto infinito do céu. E vamos planar serenamente com uma águia no céu. Nós flutuamos magicamente no azul, como se não tivéssemos destino algum, giramos como se estivéssemos somente querendo escrever algo no céu, cujo significado é inútil encontrar, já que qualquer termo é infinito nele mesmo. Todavia, lá vamos traçando nossas linhas, invisíveis, insondáveis. Deus? Amor? Esperança? Precisamos saber o que está sendo escrito? E se soubéssemos não íamos, sem querer, mudar o significado? Não, contentemo-nos em apreciar somente a águia fazendo sua bela caligrafia. Tudo isso no espaço sem espaço. No tempo sem tempo. No termo que não termina e termina nele mesmo. No azul.


11. BXB PTXB

Entretanto, no xadrez a paciência esgota o tempo. E o tempo esgota a paciência. Por isso, siga com cautela, mas vá rápido. Vá em frente! Eles estão no seu encalço.


12. C5CR ...
E agora que já começamos a partida, é sua vez de mover a próxima peça. Boa Sorte!