terça-feira, 23 de março de 2010

Desapropriação

Se lá fora chovia
e não chove mais.
Se lá fora fazia frio
e não faz mais.
E se aqui dentro
chove, é frio e sem sentido,
não.
Não se arrependa da poesia que você escreveu,
não a amasse,
não a jogue fora.

Tacitamente deixo-a vagar pelas ruas da cidade.

Se você a ver por aí,
com seu mais belo vestido,
tomando um chope com outro no Lamas,
não tenha pranto,
e nem a reclame aos outros,
pois tal poesia não mais te pertence.

Você só a tinha
enquanto aquela sinuosa linha
te insinuava sem ponto final.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A Leonardo Canabrava

REVERTERE AD LOCUM TUUM


Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.
Eclesiastes, 30:20


1.

Vai à janela!
Decida-se
se tu viras ave
ou se viras carne.
A ave vai afora,
a carne cai: fruta madura.
A ave fura o ar,
e seu sentido
é sentido sem sentido;
a carne tropeça no ar,
e já sem sentido
vira matéria adormecida.

Vira matéria adormecida
nessa infinistesimal despedida
de ave que ganha a vida,
ou muda o norte a ave
da matéria estendida.

Ela estende as asas sobre a terra,
seu voo longo e curto
alcança longa vastidão.
E flertando com o céu
repousa leve sobre o chão
que a acolhe nos seus seios.
E então, vivas veias de árvores
sugam-lhes todo viscoso leite
de ave ou vícera adormecida.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa cá, voa para cá,
que aqui é teu lugar.


2.

Vai à janela!
A janela é uma corda bamba.
Se olhas para baixo,
do topo deste penhasco,
fina linha que se estica,
pêndulo pronto pra partir,
tudo roda.
Roda como tambor de bala,
que roda para e dispara.
Roda como tambor de hora,
que roda para e dispara
que roda para e dispara
que roda, para, e dispara,
que roda... para... e diz... para...
que roda... para... e diz:
Para quê?
Para que, amor, para quê?
Para que, homem, para quê?
Para que dor, para quê?
Para que se consome, para quê?
Para que, Shakeaspeare, para quê?
Para que, espelho, para quê?
Para que ser, para quê?

O seu peito não para só,
só no parapeito não
(Cruz e Souza bem o sabia).
Pode parar num mármore
ou, num vislumbre, vasar na vasta vastidão.
O parapeito da janela
é o estreito orifício da ampulheta.
O edifício
é a ampulheta inteira.
É o chão empurrando o céu
que, como torre de babel,
é feito de pedra, mito e razão.
Porém, seus pilares de vidro
(quem sabe não os colaremos de novo?)
estilhaçaram-se. Agora, cortantes letras
espinhos de rosas
papéis rasgados
jogados pela janela.
As estrelas brotam no céu,
lentamente caem,
e brilham na terra.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa lá, voa para lá,
que lá é teu lugar.


3.

Vai à janela!
A janela é o limite.
Como a faixa amarela é o limite,
como a pele, o corpo é o limite.
Mas da poesia ela não o é.
Nela, penetra-lhe o sol e a brisa,
e ela em seus poros
secreta a secreta voz do suor.
A janela são nossos olhos.
É o primeiro romper do óvulo.
É o que vemos pra dentro e pra fora.
É o que vemos sem podermos ver.
É o primeiro romper da crisálida.
É o hímen que se parte.
É o Homem que se parte.
É ave que se parte.
É carne que se parte.
É fruto maduro, arremessado pelo ar.
É um rasgo no ar, na carne do céu.
É um corte, uma ferida.
É o retalho da vida
sempre a se costurar.

A janela é o limite.
Medida de desmedida,
é lapso de tempo,
esquecimento de si.
É o confundir o aqui
com o fora daqui.
É a hora que o relógio se esquece,
que você se esquece,
que o mundo se esquece.
É a hora da roptura, fissura
nuclear: explosão!!!
É a hora do ar.
É a hora do chão.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa cá, voa para cá,
que aqui é teu lugar.


4.

Vai à janela!
Bem ali, ela te espera.
Sair por ela é evolar-se,
e por aí ir... mar azul sem fim...
É conferir o que de ti está além,
onde ainda, vivente, não podes chegar.
Sair por ela é romper a placenta,
é saltitar no novo mundo que há.
E voltarás ao seio que te alimenta, homem,
e haverás de amar.
E voltarás ao seio que te acalenta, nenem,
e haverás de amar.
E voltarias ao meio que te sustenta, ser,
e haveria de ser
se tal-vez... alguém.

Tal como a Palavra,
arte que tropeça na janela,
que se equilibra pelo ar
e retorna, sim, à carne, à terra;
até, enfim, se (des)integrar.


Numa árvore uma ave assim cantava:
- Voa voa que já não podes parar...