sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Porto do Rio


1.

Lá no cais do porto tudo é grande
e lento.

Os containers ocultam misteriosamente uma vastidão
contida em pequenas partes
milimetricamente calculadas,
simetricamente dispostas na logística irrefutável do mundo
que é maior que o porto e lentamente redondo
 cabe entre a menor distância
velocíssima de dois pontos.

O sol paralisante
aquece as arestas desses úteros metálicos
que se encaixam verticalmente
um sobre o outro, num medido espaço.
E deles nascem minúsculos chips
ou talvez mundos programados
para a monótona geometria da repetição.


2.

Lá no cais do porto tudo é descomunalmente
vertical.

Os guindastes são aberrantes unhas de aço que emergem da terra
e  cravam no bafo úmido do ar.
São antiquíssimos dinossauros que resistem
(já fossilizados)
à ferrugem do tempo.
São lentos...
São gigantes...

E disputam
como oblíquos alfinetes nos gráficos
quem será o mais alto,
o mais óbvio,
o mais sólido.

Mas os enormes guindastes...
Os grandiosos guindastes
não se sustentam a si próprios.

Corroem.


3.

Lá no cais do porto tudo é horizontalmente
sonolento.

Navios gordos e preguiçosos dormem
em colchões de plástico e água.

Navios gordos...
Navios sonolentos...

São como uma manada de hipopótamos que bocejam na lama
e cujos cus
são suas poderosas chaminés.

Seus passageiros ilustres?...
Pequenos moluscos
vindo de todas as partes do mundo
que se fundem na procriação erosiva
(e impermeável)
de seus belos cascos.


Lá no cais tudo é assim:
grande e pequeno.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Melão no escuro


Como ponto de luz adormecido no breu,
como vaga-lume iludindo-nos em seu rumo,
ou um excesso de luz que se instala no escuro,
uma fruta há. Sim, lembrança que não se perdeu.

Ou - quem sabe? - ela se esqueça de se lembrar
- devido... ao nosso devir da vida, fugaz
elixir; logo nos preenche se liquefaz -
que cristalizada no útero semente ainda há.

Há, porém, a doce lembrança que não se esquece
do silencioso melão servido no escuro;
sim, quieto e molhado melão, quase que mudo...

Quase um mundo que aparece e desvanesce.
Só dormem as cores, a um passo de despertar
e bailarem no mundo e deixarem-se vagar.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

íntimo


te teria nos braços
não só um só dia

mas como íntimo verso
que se carrega durante a vida

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Leonardo Canabrava

Da Teoria e Da Prática



Ele, Leonardo, andava, naqueles tempos, com um caderninho e uma caneta no bolso. Era escritor. A qualquer hora poderia surgir uma ideia fantástica e, para que não esquecesse seus sórdidos detalhes, escrever em tempo real era necessário. E muitas vezes ficava perplexo, pois não sabia se o que vivia era ficção ou se a ficção se transformava em realidade.
           Estava sentado na escadaria da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, mendigando pensamentos, mas estes se comportam como uma dama, que, ao esquivar do seu pretendente, o seduz ainda mais. A igreja é grande, com imponentes pilares romanos na frente, fazendo um estilo neoclássico. A rua, nessa seis horas da tarde de um dia de semana, estava bastante movimentada. Pessoas fluíam com passos frenéticos a todos sentidos; carros impacientes buzinavam no trânsito que não transitava; um homem vendia churros na esquina numa tentativa de adocicar a amargura de uma cidade grande; e uma velha solitária enganava a solidão alimentando pombos.
Leonardo parecia ser a única pessoa parada, numa contemplação poética e preguiçosa. Entretanto não estava tão parado assim, pois cada acontecimento instigava um pensamento reflexivo nele: seu cérebro atingia a velocidade da luz na vasta escuridão do universo. Tentava tirar nos gestos maquinais dos urbanos alguma inspiração para sua obra. Até então, nenhum fato e nenhum pensamento excepcional sucedia-se. Mas olhou para seu lado e viu uma pessoa, ou coisa parecida, que se arrastava na calçada. Se um astrônomo corre ao telescópio para observar um eclipse, aqui ele faria o mesmo, pois logo pegou seu material de trabalho: papel e caneta na mão. A pessoa, que não se sabia se era homem ou mulher, arrastava-se no chão em direção à autopista. Chegou ao meio-fio e não parou; continuou sua migração ao asfalto. Ele anotava tudo: a não identificação do sexo; o aspecto imundo; o arrastar-se desesperado, como se fosse uma barata que tivessem pisado só pela metade. Quando já estava na rua, os carros que passavam se desviavam e alguns transeuntes pararam para observar. Um homem puxou o individuo para a calçada e, depois, limpou as mãos, como quem dissesse "lavo minhas mãos". Mas não adiantava. Novamente, com muito sacrifício, buscava um excedente de energia para se movimentar em sentido ao trânsito. Desta vez, chegou bem mais à frente. O escritor registrava tudo como um repórter de jornal sensacionalista. Mas, se antes era apenas um observador imparcial, agora já começava a se comover e se preocupar com aquela coisa, barata alquebrada, que, mesmo parecendo como nós, não podemos sequer  definir como ser semelhante; isso é claro, pelo menos no aspecto. Os automóveis tangenciavam o corpo e a qualquer hora seria atropelado. Mais pessoas pararam para observar. Todos falavam, falavam; aliás, faziam um estardalhaço de oh! ih! coitado! que pena! meu Deus e etc... Mas ninguém fazia nada! O espanto era geral. Um outro, talvez por querer aliviar algumas de suas aleivosias perante ao Onipresente, puxou o homem ou mulher para trás. Pegou pela camisa com certa repugnância. Deus com certeza veria esse altruísmo e, quem sabe, daria alguns créditos. Não havia nenhum policial por perto. Nada se podia fazer. Todos olhavam atônitos. “Talvez queira se matar”, surgiu entre os comentários. O fato é que aquela coisa queria meter-se entre os carros e, ao que está claro, não era para atravessar a rua em sinal verde porque estava atrasado para o trabalho. E puxava-se e arrastava-se e esfolava-se... Misturava-se com as rodas, com o gás carbônico; fundia-se alquimicamente no asfalto frio e duro e, exceto pelo o seu movimento intencional, parecia ser matéria inanimada, ou então, para não ser tão injusto, uma lesma que inutilmente foge de um predador.
Eu tenho que fazer algo, ficar aqui escrevendo não adiantará em nada, estes escritos (depois cortados) saíram inusitados na história contada por ele. Levantou-se da escada; foi até o mendigo, indigente, homem ou mulher, barata macho ou barata fêmea, e o pegou nos braços. Olhou bem nos olhos. Eram como se fossem um poço de gosma. E num analfabetismo de espírito parecia dizer: deixe-me, deixe-me no chão, deixe-me ir para o lugar de onde eu vim, do esgoto. O corpo exalava um cheiro fétido de suor, urina e cachaça que, misturados, fazia-se crer que em vida já era animal em putrefação e, melhor mesmo, seria que se secasse, se endurecesse como esqueleto indesejado até por cão. Leonardo subiu a escada da igreja, com ele no colo, e o pôs lá em cima, em frente ao portal, à entrada da casa de Deus. Sim, ali seria um lugar bem mais seguro! Quis falar com o padre mas - meu Deus! - a igreja estava fechada. Falou energicamente com o indivíduo para ficar ali e não descer para a rua. Mas provavelmente aquele corpo já era surdo. Deu as costas e desceu. Os curiosos que contemplavam (sim, contemplavam, talvez essa palavra seja mais digna, Platão bem o sabe) o acontecimento cumprimentaram-no pela atitude bela e boa que praticou. Mas não diziam - ou pela formalidade que o contato do dia a dia com pessoas estranhas nos impõe, ou pela vergonha de dizer certos pensamento que se tem - que ele era muito corajoso por ter pego naquele ser nauseabundo, em ter colocado a mão na privada entupida e esmiuçado a merda para ela descer mais fácil. Entretanto, fora uma atitude verdadeiramente nobre. Enquanto recebia elogios de pessoas limpinhas, cheirosas, elegantes e, sobre tudo, distintas olhou para cima e, subitamente, a coisa levantou-se cambaleante e deu um grito (um grito que se metamorfoseava entre voz e zumbido, entre zumbido e voz), levantou seus braços cascudos e se lançou num voo cego na escada, como inseto que estala suas asas no vidro da janela, rolando assim seu último instante de vida. A gosma escorreu pelo meio-fio. Os outros fizeram caretas. Os olhos ficaram abertos, mas agora brilhava uma lágrima que não teve tempo de escorrer. A camisa rasgou-se e podia-se ver o seu sexo. A noite caiu. E como tudo é muito lento e burocrático, ela provavelmente fosse passar mais uma noite - como as outras - na rua. Só que dessa vez não iria sentir frio; menos mau.
 
Bem, essa foi a história que eu, Leonardo C, escrevi. E agora, condecorado, conto com honras e glórias.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nudez


Quando chega o inverno
e vemos as árvores
despidas das suas folhas e flores
elas parecem tremer de frio
quando qualquer leve
(e talvez leviana)
brisa
vem acariciá-las.

sábado, 9 de julho de 2011

Dra. H


A matéria do poema, paradoxo.
Como o tempo o é, síntese dissidente.
O objeto que frio se faz quente.
Censura e corte logo se faz lógico.

Seu inglês... esperei como aprendiz óbvio.
Cascalhos, jardins e passos à frente;
talvez surdas palmeiras indiferentes.
Mas o inglês?... Sim, aprenderia-o sólido!

Não fostes, porém fui lá e aprendi.
Senti em sua alcova o que falou.
E então descobri esse objeto que sou.

Mas há algo ainda que não entendi:
Pode o silêncio da lua o sol cobrir?
O resto já sei. How to say Hello.

terça-feira, 28 de junho de 2011

A Maria Angélica, por velar meu sono

Vida íntima


Que ponham um cobertor
no meu corpo.
Mas não aquele cobertor
metalizado
acidentado de trânsito.
Mas um cobertor
aconchegante, quente
e quieto...

Que esse cobertor me cubra
e lá dentro descubra
os ventos mais secretos
(longos uivos inquietantes
porém quietos).

Que sob ele, manto de calor e pudor
tenha orgasmos incessantes.
E que ele vele e desvele
toda discreta orgiástica orgia da flor.

E depois de suar meu rosto.
E depois de delirar como louco.
E depois de retesar meu corpo.
Que derrame-lhe a suavidade plena e branca
da poesia

Que ponha um cobertor
no meu corpo.
E que ele seja seu corpo no meu:
um corpo nesses corpos corpóreos de veias e vida.
E transcendamos nessa imanência visceral.
E deixemos a assepsia fria da lâmina para outra ocasião.
- Afinal aqui, amor, não pensamos.
Apenas dormimos no amarrotado leito
que nos enlaça no lapso (íntimo) da razão.

Que ponham um cobertor
no meu amor.
E não deixeis esfriá-lo depois!

terça-feira, 31 de maio de 2011

Mãe e filha


Uma linda menina, de brilhantes cabelos negros e ondulados, brincava com a água do mar. Sua pele tinha o frescor da manhã e era leve e rosada, como a blusa que vestia, emoldurado na gola e nas mangas um bordado branco que poderíamos chamar de pequeninos flocos de nuvens, destacando-se no fino tecido de aurora que a compunha, ela, Marina, de uns nove anos de idade. Na cintura, carregava uma saia estampada que lhe cobria até os joelhos com flores. Flores de todas as cores: amarelas, azuis, verdes, vermelhas... Poder-se-ia dizer que logo abaixo do seu umbigo, na cintura, a junção das duas peças de roupa era o amoroso encontro entre a terra e o céu, entre o corpo e o espírito, formando-lhe assim um longínquo e promissor horizonte.

Brincava  com a água. Dava uns pulinhos pra frente e quando a espuma vinha, fazendo barulho de  refrigerante que acabamos  despejar no copo, voltava com uns pulinhos pra trás. E logo retornava a água, saltitava pra frente, mas os dedos d'água avançavam de novo e de novo ela fugia. E sorria e cantava e gritava gritos de alegria. E ia pra frente e ia pra trás, e ia pra frente e ia pra trás, pra frente pra trás pra frente pra trás... num eterno pique e pega. Pique e pega que não tinha vencedor nem vencido, nem desavenças, nem horas, nem preocupação, nem cansaço... Era um pique e pega livre como duas borboletas que se entrecruzam e bailam no ar.

Foi então que, naquele ínfimo instante, sobreveio uma onda maior, uma onda que ela não conseguiu fugir, uma onda que não era igual as outras, mas era igual ao mesmo tempo, uma onda que a deixou confusa, como se Marina estivesse à deriva no mar; mas soubesse que pisava em chão já conhecido e seguro, uma onda em que a afogava, e ela voltava desnorteada, como se estivesse retornado em sonho num tempo remoto. Uma onda de - quem sabe? - uma relativa curvatura no tempo,  de inebriante lucidez, que refletia raios de luz na sua memória, no seu instante. Sim! Ela teve certeza! Já tinha vivido aquele vago, mas nítido instante.

Droga! A estúpida onda lambera as flores da sua saia. Porém, aos poucos, toda essa confusão ia se passando e, ao poucos também, ela não se importava mais com o que tinha ocorrido. Lembrou-se de que sua mãe tinha dito que nem tudo no mundo dá pra saber. Sua mãe sim sabia tudo! Desistiu de sua brincadeira, contemplou o céu. Duas aves, fraternalmente, seguiam convictas para algum lugar. Depois, mergulhou seu olhar no oceano. Puxa! Como é grande! E estava ele agora calmo e tranquilo.

- Marina, vamos meu amor! Está atrasada para o colégio.

Era sua mãe que a chamava lá longe. Marina deu adeus e seguiu seu rumo correndo.

...


Pôs-se a caminhar na areia. Queria chegar ao mar. Talvez se afogar nele. Ou talvez o mar significasse para ela a plena liberdade. Mas a areia era densa e ela estava cansada. Muito cansada. E seus pés deslizavam, pior, escorregavam nos pequenos montes. Ela se afundava cada vez mais. Tornava-se difícil dar o próximo passo. As pernas agora muito pesadas. Quem sabe um regime? Entretanto, não era essa sua verdadeira preocupação.

Sim. Quarenta anos e o que tinha resolvido na vida? E esse peso todo sobre ela? Essa fadiga? Só tinha pedido um momento de atenção dele. Um momento de lazer, ao ar livre. Mas ele sempre atrasado, sempre extremamente compromissado. Era só um momento. Não precisava ter feito aquele escândalo todo. Não custava nada! Sim, talvez tivesse outra... Por isso tanto trabalho. Por isso as reuniões! Seria por isso?... Não! Não quis ver esses pensamentos. Queria o mar, era só isso naquele momento.

Mas olhou pra trás, e lá estava ele. Um homem de terno e gravata na pista da orla. Um homem de terno e gravata. Se assustou e teve medo. Um homem de terno e gravata na praia!!! Riu. Mas logo depois do riso, o choro. O riso diluiu-se no choro. Era como se um grão de areia penetrasse, arranhasse-lhe a vista no momento de maior alegria. E a água que dela, Marina, escorria tentasse repudiá-lo.

Viu-se como uma cadela, que indo à frente do seu dono, dá uma olhadela pra trás e não sabe se volta ou segue, pronta para receber um comando. Mas ela foi audaciosa. Instintivamente farejava a brisa do mar. A liberdade. Logo que soltou a mão do marido, os passos foram mais leves. Não tão quanto os da sua filha, que já brincava na beira do mar, mas eram de uma leveza inusitada, como se andasse pela primeira vez. Percebeu, entretanto, que isso era um engano, pois na equidistância da pista e do mar sentiu-se pesada. Pesada e só. Num deserto. E o que valia ali era sua sobrevivência. Pensou em voltar, mas já estava longe da segurança urbana. Então olhou pra frente. Mas ainda faltava muito. Quase desistiu e imaginou que ficaria ali para o resto de sua vida. A meio caminho! Amputada na cintura, pela metade! Suas pernas iriam se putrefar na areia e a parte superior evolar-se-ia no infinito. Enfim, seus espírito não daria mais movimento ao corpo e seu corpo não daria mais movimento ao espírito. Ambos amputados! Um do outro...

Mas nesse tormento todo, nesse tormento em que a areia não estava mais sob os pés. E sim sobre sua cabeça, como um caminhão carregado de toneladas  houvesse despejado-a em cima de si. E, Marina, com movimentos limitados, não pudesse mais respirar. E a terra não mais penetrava somente seus olhos, mas sua boca, suas narinas, seu coração...

Mas nesse cimento todo, nesse acúmulo cheio e vazio, ela, por sob o monte de areia, percebeu um orifício, de onde vinha brisa e alimento. Brisa e alimento para crescer e sair dali. Esse canal, essa ponte era um verdadeiro cordão umbilical. Uma esperança que ela não aguentava mais esperar. E viu uma ave solitária indo em direção ao mar. E suas asas eram grandes e fortes, sustentando-a naquela vastidão. Se ela pode... por que não Marina? E percebeu que, apesar de muitos, eram apenas grãos de areia. Pequenos e insignificantes. E chorou com mais vigor, com mais entusiasmo, com mais alegria. E esse acúmulo de lágrimas arrebentou aquelas paredes de dique ou talvez  placenta, e inundou a vida de vida. E deu um firme passo na areia. E depois desse passo outro, e depois desse outro outro, e depois outro, e depois outro e outro e outro... E já não podia parar mais. E os passos agora eram leves como antigamente, eram saltos que saltitavam já na areia intumescida pelo mar, onde as onda iam e vinham, deslizantemente, como se brincassem de escorrega.

Então, sobreveio uma onda um pouco mais forte que lavou seus os pés. Engraçado... Já tinha vivido aquilo, pensou. A onda, o cheiro de maresia... Era tudo igual!

Porém tratou de se esquecer dessas sensações (presentes ou remotas), quando sua filha, um pouco afastada e ao lado, chamou-a.

- Mamãe, mamãe! Olha que eu encontrei!

Ela foi rapidamente ao seu encontro.

- Que concha bonita, Marina! Ponha no ouvido que você vai ouvir o eco do mar.

Marina fez o que a mãe lhe ensinou e achou engraçado. A mãe também achou engraçado aquilo que tinha dito. Estranho e engraçado. Ela ajeitou depois a blusa da menina que já estava ficando pequena para seu corpo e deixava-lhe o umbigo aparecer. Foi quando, de súbito, uma voz as chamou de longe.

- Queridas, vamos embora! Está na hora - disse o  homem de terno e gravata, Pedro, apontando para o relógio que se orgulhava de nunca ter atrasado.

As Marinas se entreolharam e se abraçaram sorrindo. Deram adeus ao mar. E seguiram rumo.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Paredes


Por que deverei eu
ficar andando de lado ao outro no quarto
como quem não tivesse o que fazer?
Como quem nem quisesse observar
os livros, os móveis, o lixo
de papéis mórbidos, o fisico
imóvel das coisas? As coisas
que estão em volta das minhas voltas,
que volta porque não pode ir mais.
Senão daria a volta no mundo,
buscaria um horizonte profundo,
onde o mundo não pudesse mais voltar.
Mas neste curto mundo,
de quatro passos e uma foto 3X4,
minha volta sempre voltará.
Aqui no meu quarto não vejo
o mundo rodando
o mundo redondo
o mundo roendo.
Roda somente o meu calcanhar
a cada quatro passos.
O resto?...
O resto é o resto muito estático.
O resto está a contemplar calado
o meu ser agitado,
agitado e enjaulado como um leão
que só lhe resta passos em vão.
Os objetos que me cercam
não têm utilidade nenhuma.
São grades que observam a minha impassividade,
mas não impedem a minha agressividade.
Pois a isso chamo: ter liberdade.
São grades lógicas, bem armadas
que tentam ofuscar meus dentes e minhas garras.
São regras impostas
que a elas só importa
que eu bem me comporte.

Quero ir além dessa parede geométrica,
dessa grade geométrica,
dessa laje geométrica,
dessa imagem geométrica,
dessa métrica que mede
quatro passos.
Quero me libertar.
Por isso meus passos marcham;
por isso tenho passos inquietos;
por isso passo de um lado a outro perplexo;
por isso insisto;
por isso repito:
Vivo Vivo Vivo!
Não sou a morte destes livros,
Vivo!
destes discos, destes vidros,
Vivo!
não viverei no vício dessa visão geométrica.
Grito:
- Vislumbrarei sim a vida que me espera!
Ei, vida que me espera!
além dessas paredes de pedra,
além dessa rede geométrica.
Oh! mera rede geométrica,
vastos desejos me esperam.
Me esperam, e não me esperam muito.
Não me esperam nem um segundo.
Não me esperam nem um átomo perdido no mundo,
no mundo que dá voltas no mundo,
no mundo esquecido no mundo,
no giro rítmico do mundo.

Os desejos, já os tenho.
O mundo lá fora é muito grande,
mas o mundo que aqui contém,
entre quatro passos,
é bem maior do que o que há lá fora.
Se o mundo lá fora é grande pra fora,
o mundo aqui dentro é grande pra dentro.
Se o mundo lá fora já existe,
o mundo aqui dentro invento.
Se o mundo lá fora inexiste,
o mundo aqui dentro é vento.
Vento livre para voar,
vagar... viajar... circunavegar...
Inventar os lugares nunca inventados,
por homem nenhum. Talvez, nem Deus,
que dizem que inventou o mundo.
Porque eu invento Deus da maneira que quiser.
Eu invento o mundo!
E nem meu mundo é tão pequeno quanto aparenta.
Meu mundo não é um mero 3X4
com paredes em todos os lados.
Meu mundo venta nos quatro cantos do mundo,
venta em todos os cantos e arestas do mundo.
Meu mundo é explorado,
mas também explora o mundo.
Tenho meu tempo no mundo,
como o mundo tem meu tempo no mundo.
Tenho futuro, passado e presente,
como o mundo me tem ausente,
como eu o tenho aparente,
como se o real estivesse do outro lado da parede.
Lá, porém, só há o irreal,
que se realiza aqui dentro como real,
que é um real aparente,
que não diz a verdade nem mente,
que não para nem pensa,
só sente.

domingo, 8 de maio de 2011

Si...

O esplendor
Da mais bela poesia
Não é escrita com as mais belas palavras.
(Se não nos enganamos.)

É escrito com amor.

sábado, 23 de abril de 2011

Pomba branca


"Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum"
Fernando Pessoa


Ontem eu vi uma ave
que fingia voar.
Mas só havia uma asa.

É esta a cruel indecisão:
a transcendência do ar
ou a imanência do chão.

(Já que também faltava-lhe uma perna,
quem sabe os dois?!...)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Mãe e filho


Nesse dia fazia anos. A educação não nos permite lembrar a sua idade; mas garanto-lhe que já estava na casa dos setenta, pois o cansaço das marcas no rosto não foram feitas para nos enganar - nem a nós e nem aos outros.

Nunca tinha falado sobre o tempo; sempre fora uma mulher de vigor. Entretanto, nesse dia, abandonou seu corpo na cama, como quem deixa um copo com água cair.

- Meu filho, o que será de mim dentro de alguns anos?...

Antes que lhe desse um conforto (desses trapaçeiros, mas sinceramente confortáveis), ela subitamente se levantou.

- Vou fazer um café. Quer?

- Sim, respondi difarçando o choro, já sentindo saudade do cheiroso e fresco café da minha mãe.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Plenilúnio

Nós só vemos o tempo passar
quando a lua, lá longe
se espreguiça languidamente
no horizonte do mar.

E quando atinge a pálida plenitude
a gente bem finge acreditar
em nossa vigorosa infinitude...

Até enfim dormirmos no mar.

domingo, 3 de abril de 2011

A Gustavo, indispensável nos versos e como amigo

À noite, na praia do Flamengo


As pálidas luzes de Niterói, inconsoláveis, enfraqueciam - aos poucos.
Mas a escuridão ia me trazendo (à medida
que relendo via tudo isso) um conforto,
claras lembranças e vagas...
como a impenetrável concha cheia de mar e amor.

Meu corpo, ainda morno
(ausente da assepsia indiferente),
se refrescava sem as sombras dos ventos;
e era leve nas duras e serenamente lapidadas nuvens de areia.

Atrás, os rumos dos carros traziam os rumores - antigos
rumores - da prosperidade.
Entretanto, estava já desatento a tudo aquilo;
vivia, pois, minha última saudade:

A saudade do que ainda não se passou.



terça-feira, 22 de março de 2011

Sobras

Sobrou esse quarto sombrio,
essa cama amarrotada,
vazia, desolada, sem destino.

Sobrou seu perfume esquecido no ar,
seu beijo espremido na boca
da minha louca imaginação,
que tenta acalentar-te ao escutar certa canção.

Sobrou seus cabelos levados... pelo vento.
Abandonados no cimento frio do chão,
onde fazem união com os tempos
daquela imensa paixão.

E de mim, meu amor,
o que sobrou?
Nada.
A não ser a sofreguidão deste poema
que no ar se perdeu em pena,
que sofreu,
que sobrou...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Catarina Cunha


Primeira lição


Marcelo atende desesperadamente o telefone.

- Alô?!
- Alô.

Curioso pergunta, poderia ser aquele grande negócio:

- Quem fala?
- Eu caio.
- Quem fala?...
- Eu caio.

Ficando irritado diz:

- Eu não quero saber se você cai ou não. Só quero saber quem fala!
- Eu caio.

Marcelo, convencido de um trote, não se contém.

- Olha! Na vida alguns caem, outros sobem. É melhor você se jogar mesmo do vigésimo andar, seu moleque! - desliga o telefone com raiva.

Caio, sobrinho de quatro anos que Marcelo ainda não conhecia, aprendeu nesse dia que falta muito diálogo entre os homens.