segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Leonardo Canabrava

Da Teoria e Da Prática



Ele, Leonardo, andava, naqueles tempos, com um caderninho e uma caneta no bolso. Era escritor. A qualquer hora poderia surgir uma ideia fantástica e, para que não esquecesse seus sórdidos detalhes, escrever em tempo real era necessário. E muitas vezes ficava perplexo, pois não sabia se o que vivia era ficção ou se a ficção se transformava em realidade.
           Estava sentado na escadaria da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, mendigando pensamentos, mas estes se comportam como uma dama, que, ao esquivar do seu pretendente, o seduz ainda mais. A igreja é grande, com imponentes pilares romanos na frente, fazendo um estilo neoclássico. A rua, nessa seis horas da tarde de um dia de semana, estava bastante movimentada. Pessoas fluíam com passos frenéticos a todos sentidos; carros impacientes buzinavam no trânsito que não transitava; um homem vendia churros na esquina numa tentativa de adocicar a amargura de uma cidade grande; e uma velha solitária enganava a solidão alimentando pombos.
Leonardo parecia ser a única pessoa parada, numa contemplação poética e preguiçosa. Entretanto não estava tão parado assim, pois cada acontecimento instigava um pensamento reflexivo nele: seu cérebro atingia a velocidade da luz na vasta escuridão do universo. Tentava tirar nos gestos maquinais dos urbanos alguma inspiração para sua obra. Até então, nenhum fato e nenhum pensamento excepcional sucedia-se. Mas olhou para seu lado e viu uma pessoa, ou coisa parecida, que se arrastava na calçada. Se um astrônomo corre ao telescópio para observar um eclipse, aqui ele faria o mesmo, pois logo pegou seu material de trabalho: papel e caneta na mão. A pessoa, que não se sabia se era homem ou mulher, arrastava-se no chão em direção à autopista. Chegou ao meio-fio e não parou; continuou sua migração ao asfalto. Ele anotava tudo: a não identificação do sexo; o aspecto imundo; o arrastar-se desesperado, como se fosse uma barata que tivessem pisado só pela metade. Quando já estava na rua, os carros que passavam se desviavam e alguns transeuntes pararam para observar. Um homem puxou o individuo para a calçada e, depois, limpou as mãos, como quem dissesse "lavo minhas mãos". Mas não adiantava. Novamente, com muito sacrifício, buscava um excedente de energia para se movimentar em sentido ao trânsito. Desta vez, chegou bem mais à frente. O escritor registrava tudo como um repórter de jornal sensacionalista. Mas, se antes era apenas um observador imparcial, agora já começava a se comover e se preocupar com aquela coisa, barata alquebrada, que, mesmo parecendo como nós, não podemos sequer  definir como ser semelhante; isso é claro, pelo menos no aspecto. Os automóveis tangenciavam o corpo e a qualquer hora seria atropelado. Mais pessoas pararam para observar. Todos falavam, falavam; aliás, faziam um estardalhaço de oh! ih! coitado! que pena! meu Deus e etc... Mas ninguém fazia nada! O espanto era geral. Um outro, talvez por querer aliviar algumas de suas aleivosias perante ao Onipresente, puxou o homem ou mulher para trás. Pegou pela camisa com certa repugnância. Deus com certeza veria esse altruísmo e, quem sabe, daria alguns créditos. Não havia nenhum policial por perto. Nada se podia fazer. Todos olhavam atônitos. “Talvez queira se matar”, surgiu entre os comentários. O fato é que aquela coisa queria meter-se entre os carros e, ao que está claro, não era para atravessar a rua em sinal verde porque estava atrasado para o trabalho. E puxava-se e arrastava-se e esfolava-se... Misturava-se com as rodas, com o gás carbônico; fundia-se alquimicamente no asfalto frio e duro e, exceto pelo o seu movimento intencional, parecia ser matéria inanimada, ou então, para não ser tão injusto, uma lesma que inutilmente foge de um predador.
Eu tenho que fazer algo, ficar aqui escrevendo não adiantará em nada, estes escritos (depois cortados) saíram inusitados na história contada por ele. Levantou-se da escada; foi até o mendigo, indigente, homem ou mulher, barata macho ou barata fêmea, e o pegou nos braços. Olhou bem nos olhos. Eram como se fossem um poço de gosma. E num analfabetismo de espírito parecia dizer: deixe-me, deixe-me no chão, deixe-me ir para o lugar de onde eu vim, do esgoto. O corpo exalava um cheiro fétido de suor, urina e cachaça que, misturados, fazia-se crer que em vida já era animal em putrefação e, melhor mesmo, seria que se secasse, se endurecesse como esqueleto indesejado até por cão. Leonardo subiu a escada da igreja, com ele no colo, e o pôs lá em cima, em frente ao portal, à entrada da casa de Deus. Sim, ali seria um lugar bem mais seguro! Quis falar com o padre mas - meu Deus! - a igreja estava fechada. Falou energicamente com o indivíduo para ficar ali e não descer para a rua. Mas provavelmente aquele corpo já era surdo. Deu as costas e desceu. Os curiosos que contemplavam (sim, contemplavam, talvez essa palavra seja mais digna, Platão bem o sabe) o acontecimento cumprimentaram-no pela atitude bela e boa que praticou. Mas não diziam - ou pela formalidade que o contato do dia a dia com pessoas estranhas nos impõe, ou pela vergonha de dizer certos pensamento que se tem - que ele era muito corajoso por ter pego naquele ser nauseabundo, em ter colocado a mão na privada entupida e esmiuçado a merda para ela descer mais fácil. Entretanto, fora uma atitude verdadeiramente nobre. Enquanto recebia elogios de pessoas limpinhas, cheirosas, elegantes e, sobre tudo, distintas olhou para cima e, subitamente, a coisa levantou-se cambaleante e deu um grito (um grito que se metamorfoseava entre voz e zumbido, entre zumbido e voz), levantou seus braços cascudos e se lançou num voo cego na escada, como inseto que estala suas asas no vidro da janela, rolando assim seu último instante de vida. A gosma escorreu pelo meio-fio. Os outros fizeram caretas. Os olhos ficaram abertos, mas agora brilhava uma lágrima que não teve tempo de escorrer. A camisa rasgou-se e podia-se ver o seu sexo. A noite caiu. E como tudo é muito lento e burocrático, ela provavelmente fosse passar mais uma noite - como as outras - na rua. Só que dessa vez não iria sentir frio; menos mau.
 
Bem, essa foi a história que eu, Leonardo C, escrevi. E agora, condecorado, conto com honras e glórias.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Nudez


Quando chega o inverno
e vemos as árvores
despidas das suas folhas e flores
elas parecem tremer de frio
quando qualquer leve
(e talvez leviana)
brisa
vem acariciá-las.