quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Tudo ou nada


Maria sente frio
mas falta cobertor.

José tem cobertor
e não passa frio.

Mas aí vem o sono
sem onde cair.

Décio não sente nada.
Ele come bastante.

E se farta de tédio.

sábado, 22 de outubro de 2016


Passeio perdido

Trabalhei de domingo a sexta feito um burro. Saio na rua hoje pra relaxar e me perguntam:
- Não trabalha mais não?

É. A gente nunca foge inteiramente das nossas obrigações. Pois certas perguntas dão um trabalho danado para responder.
- Não - disse já meio desanimado e bufando.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016


Pragmática

      Minha mulher pediu um dinheiro. Peguei o que tinha na carteira.
      - Vou dar minha caminhada, nos vemos mais tarde.
      A cumplicidade é o melhor que existe no amor. Não queria encontrar ninguém. Mas logo veio o Ostaldo com aquela cara de sempre. Sempre achei que as pessoas com nomes estranhos têm que se superar. Ostaldo era dono de uma construtora.
      - Oi. Você tá com uma cara boa!
      Fui cortez. Estou com uma cara boa. Sim, é verdade. Atravessei as pistas pela passarela, olhando a velocidade dos carros. Cheguei na beira-mar e andei no asfalto. Passou um adolescente ruivo, gordo e meio que envergonhado; depois uma senhora, que abria os braços como quem achasse o mistério da vida; um atleta forte, mas sem competidor; um gay se alegrava com tudo; uma frágil mulher, que só figurava o ambiente; e outra de narizinho em pé, que não era nada sem o marido.
Ultimamente tenho adquirido hábitos diurnos. Deixei os amigos da noite, a noite não leva a nada, só à reclamação da sua mulher. Acho que é por isso que dizem que ando bem. Mas mudar uma rotina não é nada fácil. São pessoas diferentes, conversas, gestos, gostos, tudo é diferente. Você tem que se adaptar rápido, antes que percebam.

     Segui pela orla, passei pela pista de aeromodelo; do outro lado minha lancha estava ancorada. Cumprimentei o idiota do vigia, que logo ficou atento quando me viu. Segui. Passei pelo monumento dos pracinhas, pelo MAM, pelo Boqueirão.
     Hoje em dia não se deixa ir até a cabeceira da pista do aeroporto. Ia quando era moleque e pobre com meu pai ver os aviões decolarem. Mas não tenho saudade disso. Passado é passado. E a gente pode encontrar coisas melhores. Bem, agora fizeram antes da cabeceira uma espécie de píer, feito pedra e terra, que se estende nas água calmas da Marina da Glória por uns 100 metros, dando uma visão privilegiada, pois se vê monumentalmente o Pão de Açúcar bem à frente e, à direita, barcos ancorados. No entanto, pela esquerda, uma imensa turbulência de águas, devido ao encontro de correntezas no périplo onde se estende o final da pista do aeroporto.

     Lá na ponta uma mulher de seus 30 anos distraía-se com as águas. Era bonita. Seus cabelos soltos e tingidos vagavam junto ao destino do vento. Quando me viu chegar, fingiu elegantemente. Ficou mais bonita ainda.
    - Belo dia!
    Virou para o lado como quem não quisesse conversa, mas disse vagamente:
    - É...
    - Sim. Um dia bonito. Até aquelas pequenas nuvens se afastaram do Pão de Açúcar para aquele belo casal, que tirou o dia para passear, ver a gente lá de cima. Tá vendo?!
    Ela riu, olhou-me nos olhos, e se encabulou.
    - Você já pescou? Disse pra dizer alguma coisa.
    - Ia sempre com meu marido, fiz tudo por ele. Fiz... mas...
    - Onde?
    - Angra.
    - Sei...
    - Mas ele vai ver!...
    - Calma, calma. A vida é assim mesmo. Você é bonita... Olha... Quando te vi lá de longe, mais longe do que aquele casal lá de cima imagina... E vi seus cabelos como ondas de mar..., e seu olhar, seu olhar lá naquele monte...
    Ela me puxou pela nuca com finos mas determinados dedos e me beijou. Beijei-a também. E peguei nas ondas dos seus cabelos, clareados artificialmente. Puxei. Ela gostou. Puxei com toda força que pude. - Ai! - ela entendeu. Arrastei seus cabelos até as pedras, onde as ondas batiam. E tudo acabou.