terça-feira, 15 de novembro de 2016

Amor ao próximo


Sempre achei que a pior crueldade que existe é ter pena dos outros. Há um ano já que ia e voltava de metrô do trabalho por causa da minha mulher. Quando podia tocava punheta. Teve um dia que comi uma. O trem tava cheio e ela vinha se encostando, se encostando sem mentira, botei o pau pra fora, e achei suas coxas, com os dedos o elástico da calcinha, e foi tudo muito natural, no meio da multidão.

E descia na estação do Flamengo. Não sei por que eu sempre dava um cigarro pro desgraçado que ficava ao lado do metrô. Desde que minha mulher falou que eu tinha que deixar de ir trabalhar de carro porque poluía, há mais ou menos um ano, eu dava cigarro pra ele. Uma coisa é certa: não era pena.

Teve um dia, depois de uma gostosa do metrô, que sentei pra conversar com minha mulher. Falei que ia comprar um carro elétrico. E ela foi logo dizendo que o primeiro anjo tocou a trombeta, e houve saraiva e fogo de mistura com sangue, e foram atirados à terra. Foi, então, queimada terça parte da terra, e das árvores, e também toda erva verde.

Não tive dúvida, no dia seguinte dei um beijo nela enquanto dormia, tomei um bom café, servido pela minha empregada, e fui trabalhar. Carregando sempre minha pasta na mão direita e com o terno mais invejável de todos executivos, pus na mesa planos, planilhas, estatísticas, prospecções, projetos. O presidente da corporação aprovou.

Liguei para um amigo meu e falei que queria trocar meu carro por um elétrico. “Qual?” , “ BMW i 3 elétrico”, disse. Ele respondeu que isso era difícil. Falei que tinha dinheiro, e que era muito importante. Meu casamento! “Tudo bem, amanhã.”

Voltei de metrô. Ao mesmo tempo que uma paraíba fazia cara arretada, enfiava o rabo no meu pau. Empinava pra trás como se nada estivesse acontecendo. Se abanava e dizia que calor. Tava com uma amiga que olhava com ar de inveja e reprovação. Continuaria até chegar a estação.

Saí já separando o cigarro do meu amigo. Tava lá, magro, parecendo um mago, cabelos gravitacionais e brancos, nariz pontiagudo, pulsos que são emaranhados de veias, costelas tão expostas que dariam inveja a Adão. Dei o cigarro, e ele nunca me pediu nada.

Descendo a calçada que dá pra Marquês de Abrantes, senti uma presença atrás de mim.
- Me dá um cigarro!
Disse que não tinha.
- Mas você deu pra ele.
- Acabou.
Parei no sinal. E o sujeito parou do meu lado dizendo que só tava pedindo. E que só pedir era um gesto de humildade e que não era ladrão.
- Acabou.

O sinal demorava a fechar. Senhoras, mães e crianças voltando da escola também esperavam. Ele se encostou em mim do lado direito. O que todos tinham em comum ali era atravessar a rua. No meio dela ele puxou meu braço direito, o da pasta. Dei uma cotovelada no rosto. Ele recuou sentindo e ameaçou algo na cintura. O idiota estava visivelmente bêbado, falando que ia me matar. Mas se aproximou e acertei com a esquerda o seu rosto, logo em seguida dei uma banda e biquei sua cara, biquei uma, duas, três, várias vezes, e pisei no rosto, até afundar meu pé. Alguém disse para parar. Aí não sei. Não me lembro mais. E pouco me importava se o tinha matado. Só me lembro que um motorista do sinal, que não sei se por impaciência ou cegueira, passou em cima de suas pernas.

Cheguei em casa dizendo para minha mulher que a vida ia mudar. Que tinha comprado um carro elétrico top de linha. Ela ficou feliz. Levei-a para um restaurante. E fizemos amor.

No dia seguinte, a empregada disse em particular que tinha achado isso no meu bolso. “Obrigado!” e dei cinquentinha: “Seus filhos são lindos!” Era o telefone da Edileusa, a paraíba do metrô, queria me encontrar. Combinei com ela na estação Central do Brasil, sentido zona sul, às seis. – Melhor ir de saia, beijos.

Anos depois fiquei sabendo que o cara do cigarro morreu de câncer e o outro pregava no Largo do Machado sem as duas pernas, mas ganhava seu dinheirinho. Minha mulher o conhece. Tinha pena.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

meia-refeição


meio punhado de arroz
meio punhado de feijão
meia cebola e alho
meio-homem

e um punhado cheio
e cerrado