quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Amiga de longa data


Ontem uma amiga minha de anos, que já deu pra metade do bairro, melhor, quase todo, se o recurso da hipérbole não for vulgar e inapropriado, e às vezes em grupo, porque ela gostava mesmo, e as pessoas que não comeram (em geral moralistas cuja a dissimulação da inveja está sempre a jogar pedras e subestimar as fraquezas da carne) recriminavam. Enfim, passou por mim, com seu namoradinho ex-um-monte-de-coisas, que não vale um parêntesis; o que não me habilito a dizer (por uma questão de ética, claro) é se é ex-corno também. Passou, de mãos dadas, indo à Igreja Evangélica dos Últimos Bem Aventurados e não me cumprimentou. Quando passou olhei sua bunda. Não sei se os moralistas ainda reclamam. Creio que não, pois o rebolado continuava o mesmo. Jesus!

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Prepúcio

O padre pediu-me para que baixasse as calças. Achei estranho, mas de uma estranheza diferente, não era medo mas também não era coragem, ninguém tem coragem do que não conhece. Era obrigação e um certo respeito.

Via, nos álbuns de fotografia, que Ambrósio era amigo da família e confiável, entendedor de latim, de Aristóteles, das Escrituras. Batizou-me, fez minha primeira comunhão, dava conselhos nos estudos bíblicos.

Uma vez, quando acordei, meu pau ficou de uma maneira diferente. Não sabia o que era pau (achava que só servia pra fazer xixi) e não sabia o que era diferente, de seus outros usos. Só sabia que me incomodava porque toda vez que ficava duro era um prazer diferente do prazer de comer um doce ou sentir as cócegas na nuca que sentia quando minha irmã mais velha chegava da faculdade me chamando de anjinho com um olhar diferente e, de corpo meio mole, levemente passava seus dedos.  Era um prazer que não sabia bem, mas que doía.

Não falei pra minha mãe nem pro meu pai, por falta de tempo e vergonha. Mas Ambrósio, acho, que percebeu. Perguntou como estava o colégio, fez algumas perguntas inúteis de gramática (que prontamente respondi), tergiversou sobre a razão e os caminhos seguros da fé em Deus. E que toda fé exige estudo, sabedoria, filosofia, que os protestantes tinham uma fé cega, falsa e irrefletida, sem o respaldo da escolástica, da razão e da lógica, já que Deus iluminara o homem para contemplar a perfeição - apesar de todos seus defeitos, claro - dizia buscando algum pensamento recluso, algum mistério da fé. Enfim, falava de muitas outras coisas que acho que só entendi depois, na mesma época que descobri o que era dinheiro e poder. Aí comecei a achar que era esse todo mistério, a revelação de todas incertezas humanas. De qualquer maneira, foi assim que, já nu, ele se aproximou.

- Não se assuste, meu filho.

Quando fazia para frente e para trás - igual a sensação que tive sem saber e sozinho no banheiro dias atrás - com a mão direita, deu aquela sensação esquisita, mas era bom, mas doía também. E assim ficamos durante algum tempo. Até ele dizer chega, buscando alguma medalha ou santo perdido na sacristia. E já  suando desabafou que a diocese precisava mandar vir os técnicos de ar-condicionado, que isso era um absurdo!

Uma semana depois,  minha mãe e meu pai me disseram que eu ia fazer uma cirurgia, que era tranquila - e muito importante, meu filho. Era uma pele que devia ser retirada - disseram sem muita explicação.

Foi quando cresci e adiquiri esse hábito constante. Mas que só confesso ao padre Ambrósio.





domingo, 8 de outubro de 2017

Variação linguística

O cara pediu:
- Dar-me-ia um ósculo?
E recebeu um tapa.

domingo, 24 de setembro de 2017

A mais bela

Foi-me apresentada a moça mais bonita.
A moça mais bonita me foi apresentada.
Foi apresentada-me a mais bonita moça.
Me apresentada a moça mais bonita foi.

E fiquei sem palavras.

sábado, 23 de setembro de 2017

No metrô


- Um homem tropeçou.
Se descuido do chão
se descuido de pé
se descuido do homem?...
- Não sei não, meu senhor.

Foi assim que caiu. No vão
da manhã e de saída.
Nem houve despedida.
E na pressa, dizia-se:
- Meu Deus! que horror!...
                  foi a todos que atrasou.

sábado, 16 de setembro de 2017


(Poesia inséria)

Um poeta
que só fala de amor
é mais trágico que a dor
de um galo na testa.

E um amante
sem justa tragédia
é  comediante
de rima geleia.




Anel de ouro


Eu entrei na casa do cara e ele disse que eu era o detalhe que só o verdadeiro homem enxergaria. Achei de muita pretenção da parte dele. Mas fingi que ri.  E acho que ele gostou mais do meu riso do que o que dissera.   E não sei se foi por causa disso ou se por que tava em plena forma, mas  teve uma hora que começei a levar as coisas a sério. Seus braços me envolvendo e segurando. A deliberada invasão que se deixa, a resistência sem forças, o esquecer-se, o corpo dele no meu como se tudo fosse uma coisa só. Sem palavras, sei lá...

Não me importa como vocês nos chamam. Mas nós, putas, prostitutas ou garotas de programas,  já estamos acostumadas a escutar histórias sem fim. Que se separou, que o melhor amigo pegou sua mulher, que tá de saco cheio, que o pau não levanta mais, que deu o cu e se arrependeu. Tem de tudo nessa vida. Esse cara que te falei,  por exemplo, era noivo. Disse que ia se casar. Era mesmo, tava com uma aliança enorme no dedo. Mas não dei bola, continuei conversando com o coroa babão que pagava minhas cervejas e tentava enfiar as mãos na minha xoxota. O garoto se encostou no balcão. E ficou quieto. Arranjei um jeito pra me livrar do coroa, chamei uma amiga minha que tava sempre na merda, empurrei ela pro velho e saí do pub. Deu certo, o menino veio atrás, mas não dei muita ideia.

Era um rapaz, bonito, de seus 25 anos, acho que devia fazer alguma academia, pois os braços eram bem definidos e fortes. Mas nada que exagerasse muito. A firmeza do rosto era atenuada por um olhar misterioso e suplicante.
Não era igênuo e soube perguntar quanto era. Acho que senti vergonha. Acho que daria de graça. Mas me valorizei. Ele falou que não tinha tudo isso. Valeu, gato, e saí andando. Tá bom! ele disse. Mas só tenho isso e um pouco de sentimento, falou me agarrando e super excitado. Dei uma chance.

No seu kitnet contou a sua vida. Que ia se casar com uma gordinha rica que amava ele. E ele só gostava dela, e nada mais. Mas que o pai da gordinha achava ele um bom partido e que ia arranjar um emprego de diretoria na empresa, que queria ver sua filha feliz e por isso já tinha até comprado as alianças - e mostrou o dedo. Eu disse que ele tinha que se casar, que era um cara bonito e inteligente, que era o escolhido.

E era mesmo. O cara era bom. Passei até da hora com ele. Enfiava o dedo na minha buceta - como poucos homens sabem fazer -, nos meus cabelos, no meu ouvido, na minha boca. (Tentou enfiar por trás, mas não deixei, não gostava e ainda bem que ele entendeu.) Aí, quando tava gozando, chupei com todo desejo seu dedo, seu anelar direito. E logo em seguida ele gozou e caiu com todo seu peso em cima de mim. Me comprimi e segurei ele como um ursinho. Mas segundos depois - como todo homem faz - se levantou, andou de um lado ao outro no quarto e disse que ia tomar um banho.

Me vesti rapidamente - tenho que confessar, tava com as pernas bambas. Mas me vesti e fui embora sem ele ver.


Cheguei em casa, tomei vodka, comi mamão e ingeri duas cápsulas de lactopurga. Uma hora depois o efeito veio. Sentei na privada e expeli tudo e me senti bem mais leve.

Botei uma luva de borracha amarela, dessas de faxina, peguei a aliança, dei a descarga. Lavei-a. Tava cansada. E acabei dormindo e sonhando com ela no meu dedo. Acho que está na hora de eu me casar - pensei antes de dormir.

domingo, 10 de setembro de 2017

Com gratidão, 

ao Liceu Literário Português.

 

LIÇÃO DE CASA 

 

Eu me lembro que, quando estudava no Liceu Literário Português -̶  um casarão do começo do século XX numa charmosa rua arborizada de classe média que termina numa comunidade humilde do bairro de Laranjeiras -̶ , isso há mais ou menos dois anos, havia um silêncio enorme na sala quando entrava o professor Evanildo Bechara (eminente filólogo e gramático). Silêncio de reverência, respeito e talvez até medo de estar diante de tal sumidade. Daqueles medos que dão calafrios no estômago.

Bem. Explicava a matéria com uma calma magistral, dando torneios que pareciam infindáveis, sem pressa, que criavam uma suspense e expectativa nos alunos — principalmente nos mais afoitos — para obter logo a bendita resposta que resolvesse todos os seus problemas, como se os solucionando teriam num passe de mágica a chave de todo sucesso, a alquimia de todo saber.

Mas Bechara conhecia bem as armadilhas de Mefistófeles e, mesmo com toda sua erudição, não almejava ser Fausto, como logo adiante veremos. Assim, quando arrematava um assunto, dizia:

― Alguém tem alguma dúvida?

E o silêncio imperava mais do que nunca. Era como um eco sem som. Oco. Um eco de incertezas, de coragem reprimida, insegura. Um eco de perguntas que se asfixiavam e engasgavam inaudivelmente, surdas em insights de luz e escuridão, em flashs efêmeros e inseguros, tão inseguros quanto as perninhas de um potro que acaba de nascer. Era um eco oco.

— Então, alguém tem alguma dúvida? — e segurava uma mão na outra, num gesto fleumo e paciente.

O silêncio permanecia, mas agora na agonia de quem tem obrigação de ter que dizer algo — não podemos decepcioná-lo. Nem que seja algo ridículo, de causar — meu Deus! — risos, reprovação, comentários aos pés de ouvidos -̶  caramba, como ele é burro! Os questionamentos, as indagações, a vontade de saber fervilhavam nas cabeças, pulavam, quicavam de cima pra baixo, de baixo pra cima, da esquerda pra direita, da direta pra esquerda, na diagonal escorregadia do pensamento, de um lado pro outro, de outro pra um e pra outro pra outro outro outro e outro... Prontas para serem propaladas, para avançar a linha de chegada ou saída das cordas vocais. Prontas para os desafios do mundo.

De novo o professor insistia. Mas, dessa vez, com outra didática:

― Amigos, se alguém tem alguma dúvida pode perguntar. Eu não sei tudo. Nem sempre um professor sabe de tudo. Ele está constantemente aprendendo também. Mas posso ajudá-los no que eu puder. Fiquem à vontade...

A barreira da timidez foi, aos poucos, superada e gaguejaram-se algumas curiosidades; as quais respondia transmitindo confiança e tranquilidade, usando sempre, quando se fazia necessário, o quadro, com seu tracejado já trêmulo devido à idade. Todavia, seguro e sóbrio. E sempre dizendo: "É muito simples, não há problema nenhum".

Todos ficaram muito felizes. E debateram, já na saída do curso, as questões da aula, suas impressões e projetos para o futuro. Com exceção de um. Que se manteve sempre calado e com um sorriso oblíquo nos lábios. Mas o lugar secreto de sua voz, de sua indagação, de sua dissimulação, trazia mais certeza irrefletida — como martelo de juiz — do que a espontaneidade da ignorância. Às vezes, caro leitor, vale mais a simplicidade de uma toupeira, que no escuro acha seu alimento, do que a luz do sol nos nossos olhos, que ofusca por excesso.

Na aula seguinte, quando todos pareciam mais à vontade, logo no início, inusitadamente, esse aluno prodigioso fez uma pergunta — se me permitem uma palavra chula para a solenidade da ocasião —, fez uma pergunta cabeluda. Escabrosa, enfim. Não a digo ao leitor. Não pretendo, pois, fazer deste texto um tratado científico — técnico, denso e maçante.  A literatura de alta costura, sabe como andar de saltos e se comportar numa festa, sabe ter pose, mas sem com isso perder a simplicidade importante e necessária  ̶  o que nem sempre é fácil. Pois bem.

— Sávio Alexandre, não sei. Mas vou pesquisar em casa e na próxima aula te trago a resposta — filtrou o olhar no jovem, que se sentava no fundo, e arrumou os óculos com a mão direita, segura.

Sávio Alexandre insinuou-se mais no sorriso, expandindo-os até as dobras das bochechas; olhou para turma com uma certa altivez. Mas não vamos julgá-lo precipitadamente para não cairmos num erro recorrente, cuja questão é difícil de responder. Fez isso porque, mesmo jubiloso, não conseguiu sustentar seus olhos diante dos do professor. E aí as coisas se inverteram: a certeza de sua suposta dúvida se transformou num erro e a dúvida da certeza do professor se transformou num acerto. A turma sentiu isso. O espírito de uma turma nunca se engana. Por isso, diante de um silêncio (diferente do anterior), que vamos respeitá-lo para não surgir ofensas, o rapaz olhou para seu caderno, onde constava a indagação artificiosa e previamente calculada para constrangê-lo. Não se sabe ao certo, talvez nesses segundos — que valem por uma vida inteira! — tenha monologado cartesianamente algo até chegar num axioma irredutível. Que cai em si.

Na aula seguinte, uma semana depois, Bechara trouxe a resposta e explicou pormenorizadamente tudo sobre a questão, que, se avizinhando da filosofia, extrapolava em certa sentido a matéria e ia cair justamente numa questão metodológica do pensador francês. O aluno disse entender. Foi assim que, no decorrer do curso, enquanto a turma, já leve e solta, questionava as coisas mais honestas porém inteligentes possíveis, ele não perguntou mais nada. Acho que passou, não me lembro bem.

 



quinta-feira, 31 de agosto de 2017

BRINQUEDO ANTIGO

se(r
        vira
a vida
na    
     poes
               ia)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O pedido

Primeiro me aparece um casal de jovens vendendo brigadeiros a 2 reais. Comprei. Depois me aparece um menor de rua me vendendo halls a 2 reais. Comprei. Depois, um velho de muletas com uma bandagem podre e de pus no pescoço. Dei dois pra ele. Quando achei que não me apareceria mais nada, me vem um rapaz com seus trinta falando que precisava ir pra Central de ônibus, que o cartão não passava, que tinha que ver a mãe no Sousa Aguiar. Falei pra ir andando, era perto. Mas por favor. Não. Podia tá roubando, tô só pedindo, doutor. Não, não tenho. Tem sim, se não não tava aí bebendo uísque. Virei o rosto. Em direção à minha pasta. Obrigado senhor, Deus vai lhe recompensar. Peguei minha pasta com muita dificuldade, estava doente também. (- Você sabe o que é ter um diagnóstico de câncer?!) Muito obrigado, doutor! Peguei meu trinta e oito e dei dois tiros nele. Bem nos buracos dos dentes onde constava um sorriso sem vergonha.

Ivo de Souza

quinta-feira, 17 de agosto de 2017


Conselhos para uma moça de 25 anos

Faça tudo de útil na sua juventude
antes que o encanto se disfarce
em farsa de "era uma vez".
(Sem talvez nem isso.)

O tempo corre.
É como nosso sol e suor diário.
Ao meio dia
não o vemos se mexer
mas quando declina na linha do
                                                  [horizonte
logo as sombras se prolongam,
tomam todo crepúsculo do nosso ser.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Amarguras de um jovem poeta na internet

Depois da exaustão de mais uma noite escrevendo (jurando que não ia fazer mais isso porque tinha outras urgências e é tanto trabalho pra nada!), no dia seguinte veio uma surpresa na rede social: "Josildo Monteiro. Artista. Patrocinado". Saiu num pinote de alegria e acordando sua mãe, com quem ainda morava, disse que ia sair de casa e ajudá-la no que pudesse, depois ligou pro seu pai e sem mágoas falou que não tava chateado não, que entendia ele, afinal, tinha outra família, e que ia organizar uma festa de reconciliação. Claro, não se esqueceu daquele amigo da escola que sempre o desafiou. Juiz! Sim, ele é bom. Mas agora Josildo Monteiro era artista! E nem precisava procurar patrocínio! Chamou-o para tomar um uísque e jogar poker - quem perdesse pagava. Por fim, confiou que a garota inatingível - daquele belo poema escrito antigamente - ia finalmente esmorecer nos seus braços.

Abriu a rede social de novo, quis saber mais do assunto.  Quem eram os patrocinadores?

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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

UM POEMA HIPOTÉTICO

é
po(s
        s)ível
o
in    vis    ível
    di      z
Visão de mundo

Certa data - nessas que quebram a monotonia do dia a dia -, vi uma ceguinha. Melhor dizendo: ela me viu. Isso mesmo! pois distava dela nem muito nem pouco e ela veio a mim: "Por favor, poderia dizer onde estou?". Fiquei surpreso por sua aguda sensibilidade ao me perceber e não me demorando fui ampará-la. Disse-me então que estava num ônibus com uns amigos indo passear em Pquetá. No entanto umas pessoas, que dizia não conhecer, dissuadiram-na a descer antes. Foi o que fez e se viu desamparada no meio da Central do Brasil. Para não dizer no mundo.

Mas não quero ater-me aqui à questão do desamparo aos deficientes físicos, não por desprezo, mas porque isso a gente já está careca de saber. O que mais me impressionou foi o fato de ela estar indo a Paquetá. Conseguiria ela contemplar a beleza lá existente? Certamente que sim. Contemplar não é tão somente ver. Rompe a barreira da visão, junta-se aos outros sentidos e segue um caminho infinito e místico. Ter uma contemplação é ter plena consciência do que nos cerca, é ter plenitude, ela é nobre apuração dos sentidos (qualquer que for), é o espírito num feitiço, brota perfeição, cria magicamente luz das trevas. Enfim, talvez a moça sendo cega consiga iluminar-se tão bem quanto um membro do Santo Daime, ou quanto algumas seitas que jejuam para ver Deus, ou ainda o nirvana budista, ou então ufólogos que contemplam discos voadores, ou os antigos entorpecidos dos rituais dionisíacos, ou os novos, que, extasiadamente, se purificam ao cheirar cola, cocaína e por aí vai...

É lógico que os dois últimos itens coloquei-os por ironia, para tornar fino o estilo e realçar que há certas coisas na vida que só o sarcasmo nos dá autoridade. Pois se havia algo que poderíamos (no plural, porque mesmo sem ver, acho que ela via tudo) contemplar ali era o céu, não só para achar Deus e reclamar que as coisas aqui estão ruins, mas também porque era o que sobrava de natural e azul. De resto, pois, até as parcas árvores eram cinzas. Do asfalto saía um vapor de gasolina; no chão restos de plásticos, guimbas de cigarros, panfletos, sujeira, muita sujeira; dos prédios caíam gotas quentes, como se a própria construção derretesse. E as pessoas? As pessoas não pareciam pessoas, assemelhavam-se a programas sofisticados, marchavam de um lado ao outro, e paravam sistematicamente quando o sinal abria aos carros, e fechando os pelotões de calçadas opostas iam-se de encontro, como se fossem guerrear. Alguns precipitavam-se na avenida ainda aberta como se tentassem suicídio; outros andavam no meio dela por sobrevivência, vendendo água biscoito, refrgerante; e outros ainda, em geral crianças, não vendiam nada, só a mão vazia, pequena e franzina (mas berrante) e a miséria, que nem precisava sorrir seu sofrimento para conseguir o trocado.

É... Melhor é nossa amiga ir a Paquetá sem demora. Lá ela vai contemplar o que os protótipos não de robôs (porque isso já somos e de geração evoluída), mas de homem (coisa que tem de ser reiventada), não conseguem ver. Aqui na metrópole só se pensa em dinheiro: a única visão possível. Não que seja desprezível, todavia se fosse bem distrbuído, todos teriam uma tardinha tranquila em Paquetá, ou em alguma praia do Nordeste, ou no Caribe, ou em qualquer lugar, pois o mundo deveria ser sem muros físicos e etnocêntricos. Deveria ser para todos!

Enfim, não é porque nem sempre a gente vê o que quer que desistiremos, pois se assim fosse nossa simpática ceguinha já haveria abandonado seu árduo projeto de ir a Paquetá. Ir a esse lugar para quê? Para não ver nada? Mas isso já foi comentado. Sua admiração na ilha será possivelmente mais clara, perfeita e serena do que essa ilusão do homem de consumo, que acaba se consumindo; desses sérios e graves, de paletós e gravatas, de negócios altos e hora marcada, de visão empresarial, mas que muitas vezes veem menos que cego.

Depois de ela me explicar tudo, deixei-a num táxi. Falou-me que iria tentar reencontrar os amigos na Praça XV e, finalmente, seguiria seu destino à ilha. Deixo um conselho: faça o mesmo, vá a Paquetá e tente não somente ver, mas contemplar uma vida bem melhor, deslumbrante!

Jornal "Arte e Política" - n° 18, 2003.


domingo, 30 de julho de 2017

Ficha

Depois de tantos anos de desrespeito, o cara olha pro espelho e diz: - Será que ninguém vê isso, meu Deus?!

O espelho elegantemente não diz nada. Só faz refletir num silêncio respeitoso, porém dramático, o que sempre viu.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Inveja

   Já atrasado pra ir trabalhar e com míseros 3 reais sobrando, parei pra comer um cachorro quente e guaravita. Um mendigo alto, branco, cabelos compridos e olhos verdes me pediu para pagar um, que tava com fome e tal. Irritado falei que não tinha. Mas logo à frente, em outra carrocinha, uma moça simpática e bonita deu pra ele. Engoli o último pedaço, olhei o relógio e bufei já com passos apressados e paradoxais: - Esse infeliz ainda é mais feliz do que minha infeliz felicidade.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Poema da dor

Os poetas não são uns fingidores.
Sentem verdadeiramente dor de verdade.
Acredite ou não,
eles têm problemas clínicos seriíssimos.
Que os fazem parar
(e as enfermeiras de plantão bem o sabem)
no Sousa Aguiar
com uma puta dor de coluna.
Ou coração.
Ou um último bilhete no bolso.
Às pressas, racunhado.
Ou sem mesmo nada. Porque
nessas horas
quem é que vai pensar escrever alguma coisa?


sábado, 24 de junho de 2017

Luta

Não é a embriaguez que derruba.
É a lucidez que reluta.

Não é o amante que engana.
É ao engano que se ama.

Não é a dor que consente.
É a aspirina que é ineficiente.

Não é escrevendo uma poesia.
( - Que aí tudo se resolve!)

É inscrevendo-a na sua vida.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

UM POEMA OU UM DIÁLOGO NA REDE

            (               ) ?
                      (               ) ...
                                 (               ) ???
                    (               ) !
                             (               ) ?...
                  (               ) ...!!!
           (               ) ?!
                                     (               ) ...?
           (               ) !!!
                                             (               ) ?
                                             (               ) .


quarta-feira, 14 de junho de 2017

Ex

Depois da alegria de umas cerjevas a mais, um amigo de anos disse que, naquela época, comia minha ex-mulher.

Fechei a cara, fingi que não tinha escutado, olhei pros lados, ignorando mesmo. Aliás, ela me ensinara isso! E me fiz de desentendido.

- Mas o jogo de ontem, hein?

E como insistia na vitória, peguei, num violento impulso, o casco de cerveja já vazio no pé sujo, que já tava pra fechar. Peguei com fome e sede. Atravessei  os olhos dele sem orientação, sem medir passado e consequências. Como quem corta um pedaço de pêssego ou carne fresca, disse:

-  Vamos pegar mais uma? Ou por essa fica?...

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Um dia de domingo

Chego em casa.
Penso nos amigos
e tenho imensa ternura.

O cara que se separou, o do câncer,
o namoradeiro  que não imaginava se casar
e o que não se casou  por levar muito à sério a vida,
a história mal contada, e o da gafe ingênua e honesta.

- Ontem nasceu a última girafa. E era anã, disseram.

E todos rimos.
Rimos, sem nomes importantes
sem profissões duras
sem carros espetaculares
e namoradas-maquiagens
sem distinção ou discussão
de riso ou classe social.
Ríamos só.

Penso nos meus amigos
com a mesma ternura
que dedicaria aos outros.
Que não viram a girafa anã.
Mas vão ver
- quando estiverem extintas.


domingo, 7 de maio de 2017

Guerra

Se você for me matar
que não me mate à distância.
Com um tomahawk.
Que me mate de perto pra ver os seus olhos.
Se você for me matar
que não troque tiros comigo no corredor de qualquer edifício já bombardeado.
Que também não ache que seja blindado em bombas distantes.
Viróticas.
Mate-me. Mas não como o covarde que não sabe quem matou.
Mate-me sem trincheiras, sem assaltos, sem snipers, sem fuzil de 400 metros de distância.
(No mínimo.)
Nenhum fuzil vai assinar a conta.
Mate-me sem uma assinatura alheia, se é capaz.
Mate-me olhando na minha cara e dando um soco.
Para ver se estou morto.
Para cuspir na sua cara.
E você sentir o meu sangue.

sábado, 6 de maio de 2017



O Filósofo e a Verdade dos Fatos

A Marcos Zarahi


Depois de anos vasculhando os quatros cantos do mundo, um informante disse onde estava o paradeiro do Dr. Theófilo.

Pesquisador e professor emérito da Sorbonne, o Prof. Theófilo Ambrósio tem ampla pesquisa na área da Filosofia, que passa pela epistemologia, gnoseologia, ontologia, hermenêutica, cosmologia e metafísica. Seu último trabalho intitulado Infinitesianimalidade do Sujeito Cognoscente e o ser deixou perplexo o mundo. Estava preparando outro livro mais denso, que diziam ser muito mais esclarecedor. Parece que ia deslindar as passagens que causavam ainda muitas dúvidas e chegar a uma conclusão mais definitiva do ser.

Mas acontece que o Dr. Theófilo Ambrósio sumiu há 12 anos. A última vez que o viram, estava de mala e cuia no aeroporto. E disse, andando apressadamente, que tinha que se ausentar porque chegara ao momento mais importante de sua pesquisa. E especula-se que, com uma certa ansiedade e olhando o relógio, exclamou: "Meu Deus!". Essas foram, então, suas últimas palavras antes do sumiço. Dr. Theófilo Ambrósio, que sempre deixou em suspense seus leitores, não por sua excentricidade - que não era afeito a isso - mas talvez por um excesso de incompreensão, resolveu sair do mapa.

Desde esse momento, especularam muito sobre sua filosofia, surgindo vários seguidores de suas doutrinas. Disseram que elas teriam a resposta para o sofrimento, para a maldade, para a ansiedade, para a dor de cabeça e de dente, uma  verdadeira filosofia do autocontrole do corpo. Apesar de ter muitos oponentes, afirmaram inclusive que ele chegaria à descoberta de Deus, já que suas últimas palavras deixavam bastantes pistas. Além de numerosas associações que o estudam, há academias que levam seu nome, espaços culturais, bibliotecas, livrarias, bares, restaurantes, boutiques, e é até reverenciado numa campanha publicitária de um conhecido banco. Enfim, todos querem homenageá-lo.

Também sua família, que conseguiu comprovar na justiça que ele tinha morrido, depois que reconheceram o corpo de um mendigo pálido, magro e barbudo como o seu. Foi um momento de pranto e lágrimas para todos, inclusive para seus entes mais próximos, que não queriam acreditar nesse fim trágico. Mas  enfim... a vida é assim mesmo! E tiveram que se consolar. Afinal, todo disparato tem seu sentido e propósito. Sim. Consolavam-se com suspiros, dizendo que o Theofilozinho sabia o que estava fazendo. Não os abandonaria e os deixaria na penúria. Com os direitos autorais e de imagem conseguiram saldar suas dívidas e cada um ainda levaria o seu bom trocado.

Bem, o fato é que o mito ficou. Tal como Dom Sebastião. E  muitos acreditavam no seu regresso. Inclusive eu. Por isso nunca desisti de investigar seu paradeiro; até aparecer esse informante. Com uma boa matéria conseguiria sair dos bastidores do jornalismo e, quem sabe, virar até âncora do jornal.


Falei entusiasmado que nosso jornal queria marcar uma entrevista com ele. O informante só trouxe a resposta quase um ano depois. Falou que aceita.

- Mas não pode dizer seu paradeiro e só deverá ser feita uma pergunta de maneira bem objetiva.
- Ótimo! Vamos marcar para essa semana?
- Não. A entrevista deverá ser feita dentro de um ano.
- Um ano!!!
- É. Um ano.
- Mas eu nem sei se de dentro de um ano estarei neste jornal... Nem sei se estarei vivo!
- Compreendo. Mas essas são suas condições.
- Tá bom.

Passado um ano. Um ano não. Dois. Dois não. Doze, se contarmos a data de seu sumiço: 1 de abril de 1997. Enfim, passado esse tempão de expectativa, fui de encontro ao seu informante. Ia de van com minha equipe de produção e suas parafernálias todas de gravação para TV. O informante me disse que só eu poderia ter contato com ele.

Assim, fomos nós dois de ônibus até uma cidadezinha no interior do Brasil: Barbacena - MG. Chegamos numa casa bem simples e pequena, com rachaduras e reboco por fazer. Era  numa chácara, onde tinha algumas galinhas, uma horta de alfaces. E até o cão tinha uma fisionomia filosófica, veio cheirando meus sapatos e sentou-se calmo e contemplativamente. O informante me deixou no portão, passei por um caminho de cascalhos e entrei no pequeno casebre.

E lá estava ele! O filósofo. Dono de todo saber e mistério: Dr. Theófilo Ambrósio. Andava de um lado ao outro no interior da sala, curvado, pensativo, preocupado... A sós com ele, não vou dizer que não me emocionei e tive calafrios no corpo, mas me contive e preparei o gravador. Não me foi permitido fazer filmagens ou fotos. Mas só a voz já me bastava como prova. Ele me olhou rapidamente e disse para me sentar. Sentei-me. E ele, concentradamente, ia de ponta a ponta na sala, depois entrava no quarto, na cozinha (e esses eram os únicos cômodos, que simplicidade!). E andava, olhava com determinação para os objetos, botava a mão no queixo, resmungava algum pensamento, concluía, mas logo se abandonava em novas elucubrações. Sim, meu caro irmão, pensar não é uma coisa tão fácil como esses manuais de revistas de banca de jornais querem nos convencer. Há de ter persistência, há de contornar labirintos, há de recuar e seguir por outro rumo, há de duvidar de sua própria certeza. Só sei que nada sei, só sei que nada sei. Veio-me essa frase de Aristóteles, melhor, Platão. Sim, me preparara para esse grande momento. Num lampejo, tirou os olhos do chão e disse:

- Han?...
- Prazer em conhecê-lo, Dr. Ambrósio. Sei que o senhor tem muitas ocupações. E que prepara um último grande trabalho e...
- Diga logo - e continuava suas investigações, olhando determinadamente para o chão, ou para o nada, vai saber.
- E...  e que você está nas sua pesquisas do seu último livro. E que... E que todos estão muito na expectativa... E que...
- Sim, sim. Fale logo.

Claro, ele era irredutível. Não poderia fazer mais que uma pergunta. Aliás, quem faz perguntas são os filósofos. Não nós. Meros jornalistas e repetidores. Então suspirei fundo e coloquei a questão que há tempos me incomodava -  não são só a mim, mas acredito que ao mundo inteiro -, pergunta essa que tinha me dado insônia para formulá-la, que rabiscara papéis, que tentava chegar na essência da vida, da existência! Mas que, por outro lado, tinha que ser formulada de uma maneira simples e direta. Para dar mais apelo popular, claro.

-  Bem. O que o senhor acha de Deus?

E ele foi sucinto:

- Eu não acho nada.

E foi de uma ponta a outra na sala, sempre curvado e olhando pro chão. Quando ia fazer o mesmo percurso novamente, parou olhou determinadamente algo, como se tivesse descoberto algum segredo. Agachou-se. Pegou um objeto. Foi à janela, onde um feixe de sol entrava numa angulosidade oblíqua, deixando-se ver partículas suspensas de poeira. Olhou o objeto contra o sol, centralizando-o em um dos olhos e fechando o outro. Aproximava e recuava, até colocá-lo em uma distância ideal, acho. E sorriu misteriosamente.

Mas que objeto tão incrível era esse, caro irmão? Era um alfinete. Sim, o mistério estava num alfinete. Desses de fraldas de bebê! Foi então que, sem que ele me visse, saquei uma pequena câmera digital, que carregava no bolso, e tirei uma foto dele. Bela foto! Não poderia ter ficado melhor. Contemplando um insignificante (mas talvez grandioso!)  objeto contra o sol. E os raios iluminando sua face magra e longa cabeleira.

Suspendeu as calças surradas. Puxou o zipper da barriguilha pra cima e prendeu-o com o alfinete. Eu, já satisfeito, despedi-me e voltei pra São Paulo.

No dia seguinte publiquei uma grande matéria, com a entrevista e a foto na capa do jornal impresso da organização em que trabalhava. Cheguei até a receber uma ligação do dono para me cumprimentar, dizendo que eu merecia um lugar de destaque na redação. "Parabéns, você é um excelente profissional!". Quase que chorei, mas na verdade eu mereço mesmo. Mamãe sempre disse. Fora isso, fui convidado para uma série de entrevistas para dizer minha experiência com o filósofo, se tinha aprendido muito, se ele já tinha terminado o livro, se ele voltaria etc...

Foi então que recebi uma ligação. Era o informante dizendo que queria algo em troco pelo favor prestado. Combinei com ele no viaduto do Chá e dei-lhe um dinheiro. Um mês depois, ele me ligou de novo dizendo que marcaria outra entrevista e que precisava para isso de mais algum. Disse que já sabia o endereço. Ele disse que o Theófilo Ambrósio tinha se mudado e que cederia uma entrevista maior. Disse que não. Que as pessoas não estavam mais se interessando tanto assim.

Foi por esse tempo também que a família de Theófilo Ambrósio me processou por calúnia e outras coisas a mais. Dizendo que aquele não era o verdadeiro, pois o Theofilozinho deles há muito tempo já havia subido para o Reino dos Céus.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Família

Já crescido, outro dia encontrei o filho da Josefina, que lava, passa e cozinha por causa do seu filho. E quando perguntei como anda a vida, ele me disse que rouba, mata e sequestra por causa da  sua mãe.

sábado, 22 de abril de 2017


Religare

- Telefone.
- Porra, o que foi dessa vez?!
- Ligação, doutor. Diz que é urgente.
- Quem é?
- Deus.
- De novo... diga que estou em reunião.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A Gabriel Combalia

Fiado

O dono do pequeno estabelecimento tirou a caneta da orelha, coçou a cabeça, suspendeu as calças e disse taxativamente, entre dois pigarros de consciência:

- Novecentos e cinquenta e dois reais. Mas com cinquenta fecha tudo.

Apesar de ter bebido bastante no decorrer do mês, detectou um erro na conta do velho empresário. Assim, dentro de suas atribuições como  professor de matemática da rede pública - afinal, era um servidor! -, se viu na obrigação de ajudá-lo com os seguintes cálculos.

- Tá bom. Vê mais uma aí.

Seu Arnesto achou estranho. Mas confiando que ia receber do freguês pegou lá no fundo a mais gelada que tinha. Voltou com um sorriso enorme nas beiras dos lábios, daqueles que envolvem um grande negócio e amizade.  O professor apreciou o primeiro gole e disse com uma calma magistral:

- Te dou a metade, e o restante vai em aulas de matemática. É pegar ou largar.

- O quê?!  Nunca mais volte aqui, seu filho da puta! E leva! -  já com o porrete na mão.

segunda-feira, 27 de março de 2017

Poema ridículo

Ri, Dículo.
sinceramente

charles bukowski
tinha uma boa prosa
quando com amigos e jack daniel`s na mão
mas a poesia do dia seguinte que vi
era ressaca braba
- e privada.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Um casal

     Você sabe quantos anos somos casados? - disse desafiadoramente.
     - Quarenta - chutando pra baixo...
     - Cinquenta! - respondeu jubiloso.
     - Não acredito! E ninguém pulou a cerca esse tempo todo?! - e olhei pra ela, que virou os olhinhos para o céu, como quem rezasse, ou pedisse perdão.
     Ele riu meio sem entender, mas orgulhoso ainda!