segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Visão de mundo

Certa data - nessas que quebram a monotonia do dia a dia -, vi uma ceguinha. Melhor dizendo: ela me viu. Isso mesmo! pois distava dela nem muito nem pouco e ela veio a mim: "Por favor, poderia dizer onde estou?". Fiquei surpreso por sua aguda sensibilidade ao me perceber e não me demorando fui ampará-la. Disse-me então que estava num ônibus com uns amigos indo passear em Pquetá. No entanto umas pessoas, que dizia não conhecer, dissuadiram-na a descer antes. Foi o que fez e se viu desamparada no meio da Central do Brasil. Para não dizer no mundo.

Mas não quero ater-me aqui à questão do desamparo aos deficientes físicos, não por desprezo, mas porque isso a gente já está careca de saber. O que mais me impressionou foi o fato de ela estar indo a Paquetá. Conseguiria ela contemplar a beleza lá existente? Certamente que sim. Contemplar não é tão somente ver. Rompe a barreira da visão, junta-se aos outros sentidos e segue um caminho infinito e místico. Ter uma contemplação é ter plena consciência do que nos cerca, é ter plenitude, ela é nobre apuração dos sentidos (qualquer que for), é o espírito num feitiço, brota perfeição, cria magicamente luz das trevas. Enfim, talvez a moça sendo cega consiga iluminar-se tão bem quanto um membro do Santo Daime, ou quanto algumas seitas que jejuam para ver Deus, ou ainda o nirvana budista, ou então ufólogos que contemplam discos voadores, ou os antigos entorpecidos dos rituais dionisíacos, ou os novos, que, extasiadamente, se purificam ao cheirar cola, cocaína e por aí vai...

É lógico que os dois últimos itens coloquei-os por ironia, para tornar fino o estilo e realçar que há certas coisas na vida que só o sarcasmo nos dá autoridade. Pois se havia algo que poderíamos (no plural, porque mesmo sem ver, acho que ela via tudo) contemplar ali era o céu, não só para achar Deus e reclamar que as coisas aqui estão ruins, mas também porque era o que sobrava de natural e azul. De resto, pois, até as parcas árvores eram cinzas. Do asfalto saía um vapor de gasolina; no chão restos de plásticos, guimbas de cigarros, panfletos, sujeira, muita sujeira; dos prédios caíam gotas quentes, como se a própria construção derretesse. E as pessoas? As pessoas não pareciam pessoas, assemelhavam-se a programas sofisticados, marchavam de um lado ao outro, e paravam sistematicamente quando o sinal abria aos carros, e fechando os pelotões de calçadas opostas iam-se de encontro, como se fossem guerrear. Alguns precipitavam-se na avenida ainda aberta como se tentassem suicídio; outros andavam no meio dela por sobrevivência, vendendo água biscoito, refrgerante; e outros ainda, em geral crianças, não vendiam nada, só a mão vazia, pequena e franzina (mas berrante) e a miséria, que nem precisava sorrir seu sofrimento para conseguir o trocado.

É... Melhor é nossa amiga ir a Paquetá sem demora. Lá ela vai contemplar o que os protótipos não de robôs (porque isso já somos e de geração evoluída), mas de homem (coisa que tem de ser reiventada), não conseguem ver. Aqui na metrópole só se pensa em dinheiro: a única visão possível. Não que seja desprezível, todavia se fosse bem distrbuído, todos teriam uma tardinha tranquila em Paquetá, ou em alguma praia do Nordeste, ou no Caribe, ou em qualquer lugar, pois o mundo deveria ser sem muros físicos e etnocêntricos. Deveria ser para todos!

Enfim, não é porque nem sempre a gente vê o que quer que desistiremos, pois se assim fosse nossa simpática ceguinha já haveria abandonado seu árduo projeto de ir a Paquetá. Ir a esse lugar para quê? Para não ver nada? Mas isso já foi comentado. Sua admiração na ilha será possivelmente mais clara, perfeita e serena do que essa ilusão do homem de consumo, que acaba se consumindo; desses sérios e graves, de paletós e gravatas, de negócios altos e hora marcada, de visão empresarial, mas que muitas vezes veem menos que cego.

Depois de ela me explicar tudo, deixei-a num táxi. Falou-me que iria tentar reencontrar os amigos na Praça XV e, finalmente, seguiria seu destino à ilha. Deixo um conselho: faça o mesmo, vá a Paquetá e tente não somente ver, mas contemplar uma vida bem melhor, deslumbrante!

Jornal "Arte e Política" - n° 18, 2003.


Um comentário:

Simone disse...

Grande filósofo por traz deste conto, adorei!!