domingo, 24 de setembro de 2017

A mais bela

Foi-me apresentada a moça mais bonita.
A moça mais bonita me foi apresentada.
Foi apresentada-me a mais bonita moça.
Me apresentada a moça mais bonita foi.

E fiquei sem palavras.

sábado, 23 de setembro de 2017

No metrô


- Um homem tropeçou.
Se descuido do chão
se descuido de pé
se descuido do homem?...
- Não sei não, meu senhor.

Foi assim que caiu. No vão
da manhã e de saída.
Nem houve despedida.
E na pressa, dizia-se:
- Meu Deus! que horror!...
                  foi a todos que atrasou.

sábado, 16 de setembro de 2017


(Poesia inséria)

Um poeta
que só fala de amor
é mais trágico que a dor
de um galo na testa.

E um amante
sem justa tragédia
é  comediante
de rima geleia.




Anel de ouro


Eu entrei na casa do cara e ele disse que eu era o detalhe que só o verdadeiro homem enxergaria. Achei de muita pretenção da parte dele. Mas fingi que ri.  E acho que ele gostou mais do meu riso do que o que dissera.   E não sei se foi por causa disso ou se por que tava em plena forma, mas  teve uma hora que começei a levar as coisas a sério. Seus braços me envolvendo e segurando. A deliberada invasão que se deixa, a resistência sem forças, o esquecer-se, o corpo dele no meu como se tudo fosse uma coisa só. Sem palavras, sei lá...

Não me importa como vocês nos chamam. Mas nós, putas, prostitutas ou garotas de programas,  já estamos acostumadas a escutar histórias sem fim. Que se separou, que o melhor amigo pegou sua mulher, que tá de saco cheio, que o pau não levanta mais, que deu o cu e se arrependeu. Tem de tudo nessa vida. Esse cara que te falei,  por exemplo, era noivo. Disse que ia se casar. Era mesmo, tava com uma aliança enorme no dedo. Mas não dei bola, continuei conversando com o coroa babão que pagava minhas cervejas e tentava enfiar as mãos na minha xoxota. O garoto se encostou no balcão. E ficou quieto. Arranjei um jeito pra me livrar do coroa, chamei uma amiga minha que tava sempre na merda, empurrei ela pro velho e saí do pub. Deu certo, o menino veio atrás, mas não dei muita ideia.

Era um rapaz, bonito, de seus 25 anos, acho que devia fazer alguma academia, pois os braços eram bem definidos e fortes. Mas nada que exagerasse muito. A firmeza do rosto era atenuada por um olhar misterioso e suplicante.
Não era igênuo e soube perguntar quanto era. Acho que senti vergonha. Acho que daria de graça. Mas me valorizei. Ele falou que não tinha tudo isso. Valeu, gato, e saí andando. Tá bom! ele disse. Mas só tenho isso e um pouco de sentimento, falou me agarrando e super excitado. Dei uma chance.

No seu kitnet contou a sua vida. Que ia se casar com uma gordinha rica que amava ele. E ele só gostava dela, e nada mais. Mas que o pai da gordinha achava ele um bom partido e que ia arranjar um emprego de diretoria na empresa, que queria ver sua filha feliz e por isso já tinha até comprado as alianças - e mostrou o dedo. Eu disse que ele tinha que se casar, que era um cara bonito e inteligente, que era o escolhido.

E era mesmo. O cara era bom. Passei até da hora com ele. Enfiava o dedo na minha buceta - como poucos homens sabem fazer -, nos meus cabelos, no meu ouvido, na minha boca. (Tentou enfiar por trás, mas não deixei, não gostava e ainda bem que ele entendeu.) Aí, quando tava gozando, chupei com todo desejo seu dedo, seu anelar direito. E logo em seguida ele gozou e caiu com todo seu peso em cima de mim. Me comprimi e segurei ele como um ursinho. Mas segundos depois - como todo homem faz - se levantou, andou de um lado ao outro no quarto e disse que ia tomar um banho.

Me vesti rapidamente - tenho que confessar, tava com as pernas bambas. Mas me vesti e fui embora sem ele ver.


Cheguei em casa, tomei vodka, comi mamão e ingeri duas cápsulas de lactopurga. Uma hora depois o efeito veio. Sentei na privada e expeli tudo e me senti bem mais leve.

Botei uma luva de borracha amarela, dessas de faxina, peguei a aliança, dei a descarga. Lavei-a. Tava cansada. E acabei dormindo e sonhando com ela no meu dedo. Acho que está na hora de eu me casar - pensei antes de dormir.

domingo, 10 de setembro de 2017

Com gratidão, 

ao Liceu Literário Português.

 

LIÇÃO DE CASA 

 

Eu me lembro que, quando estudava no Liceu Literário Português -̶  um casarão do começo do século XX numa charmosa rua arborizada de classe média que termina numa comunidade humilde do bairro de Laranjeiras -̶ , isso há mais ou menos dois anos, havia um silêncio enorme na sala quando entrava o professor Evanildo Bechara (eminente filólogo e gramático). Silêncio de reverência, respeito e talvez até medo de estar diante de tal sumidade. Daqueles medos que dão calafrios no estômago.

Bem. Explicava a matéria com uma calma magistral, dando torneios que pareciam infindáveis, sem pressa, que criavam uma suspense e expectativa nos alunos — principalmente nos mais afoitos — para obter logo a bendita resposta que resolvesse todos os seus problemas, como se os solucionando teriam num passe de mágica a chave de todo sucesso, a alquimia de todo saber.

Mas Bechara conhecia bem as armadilhas de Mefistófeles e, mesmo com toda sua erudição, não almejava ser Fausto, como logo adiante veremos. Assim, quando arrematava um assunto, dizia:

― Alguém tem alguma dúvida?

E o silêncio imperava mais do que nunca. Era como um eco sem som. Oco. Um eco de incertezas, de coragem reprimida, insegura. Um eco de perguntas que se asfixiavam e engasgavam inaudivelmente, surdas em insights de luz e escuridão, em flashs efêmeros e inseguros, tão inseguros quanto as perninhas de um potro que acaba de nascer. Era um eco oco.

— Então, alguém tem alguma dúvida? — e segurava uma mão na outra, num gesto fleumo e paciente.

O silêncio permanecia, mas agora na agonia de quem tem obrigação de ter que dizer algo — não podemos decepcioná-lo. Nem que seja algo ridículo, de causar — meu Deus! — risos, reprovação, comentários aos pés de ouvidos -̶  caramba, como ele é burro! Os questionamentos, as indagações, a vontade de saber fervilhavam nas cabeças, pulavam, quicavam de cima pra baixo, de baixo pra cima, da esquerda pra direita, da direta pra esquerda, na diagonal escorregadia do pensamento, de um lado pro outro, de outro pra um e pra outro pra outro outro outro e outro... Prontas para serem propaladas, para avançar a linha de chegada ou saída das cordas vocais. Prontas para os desafios do mundo.

De novo o professor insistia. Mas, dessa vez, com outra didática:

― Amigos, se alguém tem alguma dúvida pode perguntar. Eu não sei tudo. Nem sempre um professor sabe de tudo. Ele está constantemente aprendendo também. Mas posso ajudá-los no que eu puder. Fiquem à vontade...

A barreira da timidez foi, aos poucos, superada e gaguejaram-se algumas curiosidades; as quais respondia transmitindo confiança e tranquilidade, usando sempre, quando se fazia necessário, o quadro, com seu tracejado já trêmulo devido à idade. Todavia, seguro e sóbrio. E sempre dizendo: "É muito simples, não há problema nenhum".

Todos ficaram muito felizes. E debateram, já na saída do curso, as questões da aula, suas impressões e projetos para o futuro. Com exceção de um. Que se manteve sempre calado e com um sorriso oblíquo nos lábios. Mas o lugar secreto de sua voz, de sua indagação, de sua dissimulação, trazia mais certeza irrefletida — como martelo de juiz — do que a espontaneidade da ignorância. Às vezes, caro leitor, vale mais a simplicidade de uma toupeira, que no escuro acha seu alimento, do que a luz do sol nos nossos olhos, que ofusca por excesso.

Na aula seguinte, quando todos pareciam mais à vontade, logo no início, inusitadamente, esse aluno prodigioso fez uma pergunta — se me permitem uma palavra chula para a solenidade da ocasião —, fez uma pergunta cabeluda. Escabrosa, enfim. Não a digo ao leitor. Não pretendo, pois, fazer deste texto um tratado científico — técnico, denso e maçante.  A literatura de alta costura, sabe como andar de saltos e se comportar numa festa, sabe ter pose, mas sem com isso perder a simplicidade importante e necessária  ̶  o que nem sempre é fácil. Pois bem.

— Sávio Alexandre, não sei. Mas vou pesquisar em casa e na próxima aula te trago a resposta — filtrou o olhar no jovem, que se sentava no fundo, e arrumou os óculos com a mão direita, segura.

Sávio Alexandre insinuou-se mais no sorriso, expandindo-os até as dobras das bochechas; olhou para turma com uma certa altivez. Mas não vamos julgá-lo precipitadamente para não cairmos num erro recorrente, cuja questão é difícil de responder. Fez isso porque, mesmo jubiloso, não conseguiu sustentar seus olhos diante dos do professor. E aí as coisas se inverteram: a certeza de sua suposta dúvida se transformou num erro e a dúvida da certeza do professor se transformou num acerto. A turma sentiu isso. O espírito de uma turma nunca se engana. Por isso, diante de um silêncio (diferente do anterior), que vamos respeitá-lo para não surgir ofensas, o rapaz olhou para seu caderno, onde constava a indagação artificiosa e previamente calculada para constrangê-lo. Não se sabe ao certo, talvez nesses segundos — que valem por uma vida inteira! — tenha monologado cartesianamente algo até chegar num axioma irredutível. Que cai em si.

Na aula seguinte, uma semana depois, Bechara trouxe a resposta e explicou pormenorizadamente tudo sobre a questão, que, se avizinhando da filosofia, extrapolava em certa sentido a matéria e ia cair justamente numa questão metodológica do pensador francês. O aluno disse entender. Foi assim que, no decorrer do curso, enquanto a turma, já leve e solta, questionava as coisas mais honestas porém inteligentes possíveis, ele não perguntou mais nada. Acho que passou, não me lembro bem.