domingo, 10 de setembro de 2017

Com gratidão, 

ao Liceu Literário Português.

 

LIÇÃO DE CASA 

 

Eu me lembro que, quando estudava no Liceu Literário Português -̶  um casarão do começo do século XX numa charmosa rua arborizada de classe média que termina numa comunidade humilde do bairro de Laranjeiras -̶ , isso há mais ou menos dois anos, havia um silêncio enorme na sala quando entrava o professor Evanildo Bechara (eminente filólogo e gramático). Silêncio de reverência, respeito e talvez até medo de estar diante de tal sumidade. Daqueles medos que dão calafrios no estômago.

Bem. Explicava a matéria com uma calma magistral, dando torneios que pareciam infindáveis, sem pressa, que criavam uma suspense e expectativa nos alunos — principalmente nos mais afoitos — para obter logo a bendita resposta que resolvesse todos os seus problemas, como se os solucionando teriam num passe de mágica a chave de todo sucesso, a alquimia de todo saber.

Mas Bechara conhecia bem as armadilhas de Mefistófeles e, mesmo com toda sua erudição, não almejava ser Fausto, como logo adiante veremos. Assim, quando arrematava um assunto, dizia:

― Alguém tem alguma dúvida?

E o silêncio imperava mais do que nunca. Era como um eco sem som. Oco. Um eco de incertezas, de coragem reprimida, insegura. Um eco de perguntas que se asfixiavam e engasgavam inaudivelmente, surdas em insights de luz e escuridão, em flashs efêmeros e inseguros, tão inseguros quanto as perninhas de um potro que acaba de nascer. Era um eco oco.

— Então, alguém tem alguma dúvida? — e segurava uma mão na outra, num gesto fleumo e paciente.

O silêncio permanecia, mas agora na agonia de quem tem obrigação de ter que dizer algo — não podemos decepcioná-lo. Nem que seja algo ridículo, de causar — meu Deus! — risos, reprovação, comentários aos pés de ouvidos -̶  caramba, como ele é burro! Os questionamentos, as indagações, a vontade de saber fervilhavam nas cabeças, pulavam, quicavam de cima pra baixo, de baixo pra cima, da esquerda pra direita, da direta pra esquerda, na diagonal escorregadia do pensamento, de um lado pro outro, de outro pra um e pra outro pra outro outro outro e outro... Prontas para serem propaladas, para avançar a linha de chegada ou saída das cordas vocais. Prontas para os desafios do mundo.

De novo o professor insistia. Mas, dessa vez, com outra didática:

― Amigos, se alguém tem alguma dúvida pode perguntar. Eu não sei tudo. Nem sempre um professor sabe de tudo. Ele está constantemente aprendendo também. Mas posso ajudá-los no que eu puder. Fiquem à vontade...

A barreira da timidez foi, aos poucos, superada e gaguejaram-se algumas curiosidades; as quais respondia transmitindo confiança e tranquilidade, usando sempre, quando se fazia necessário, o quadro, com seu tracejado já trêmulo devido à idade. Todavia, seguro e sóbrio. E sempre dizendo: "É muito simples, não há problema nenhum".

Todos ficaram muito felizes. E debateram, já na saída do curso, as questões da aula, suas impressões e projetos para o futuro. Com exceção de um. Que se manteve sempre calado e com um sorriso oblíquo nos lábios. Mas o lugar secreto de sua voz, de sua indagação, de sua dissimulação, trazia mais certeza irrefletida — como martelo de juiz — do que a espontaneidade da ignorância. Às vezes, caro leitor, vale mais a simplicidade de uma toupeira, que no escuro acha seu alimento, do que a luz do sol nos nossos olhos, que ofusca por excesso.

Na aula seguinte, quando todos pareciam mais à vontade, logo no início, inusitadamente, esse aluno prodigioso fez uma pergunta — se me permitem uma palavra chula para a solenidade da ocasião —, fez uma pergunta cabeluda. Escabrosa, enfim. Não a digo ao leitor. Não pretendo, pois, fazer deste texto um tratado científico — técnico, denso e maçante.  A literatura de alta costura, sabe como andar de saltos e se comportar numa festa, sabe ter pose, mas sem com isso perder a simplicidade importante e necessária  ̶  o que nem sempre é fácil. Pois bem.

— Sávio Alexandre, não sei. Mas vou pesquisar em casa e na próxima aula te trago a resposta — filtrou o olhar no jovem, que se sentava no fundo, e arrumou os óculos com a mão direita, segura.

Sávio Alexandre insinuou-se mais no sorriso, expandindo-os até as dobras das bochechas; olhou para turma com uma certa altivez. Mas não vamos julgá-lo precipitadamente para não cairmos num erro recorrente, cuja questão é difícil de responder. Fez isso porque, mesmo jubiloso, não conseguiu sustentar seus olhos diante dos do professor. E aí as coisas se inverteram: a certeza de sua suposta dúvida se transformou num erro e a dúvida da certeza do professor se transformou num acerto. A turma sentiu isso. O espírito de uma turma nunca se engana. Por isso, diante de um silêncio (diferente do anterior), que vamos respeitá-lo para não surgir ofensas, o rapaz olhou para seu caderno, onde constava a indagação artificiosa e previamente calculada para constrangê-lo. Não se sabe ao certo, talvez nesses segundos — que valem por uma vida inteira! — tenha monologado cartesianamente algo até chegar num axioma irredutível. Que cai em si.

Na aula seguinte, uma semana depois, Bechara trouxe a resposta e explicou pormenorizadamente tudo sobre a questão, que, se avizinhando da filosofia, extrapolava em certa sentido a matéria e ia cair justamente numa questão metodológica do pensador francês. O aluno disse entender. Foi assim que, no decorrer do curso, enquanto a turma, já leve e solta, questionava as coisas mais honestas porém inteligentes possíveis, ele não perguntou mais nada. Acho que passou, não me lembro bem.

 



Um comentário:

Simone disse...

muito interessante esse tal ivanildoo!!adorei amigo como vinho seus contos estao cada vez melhores,bjuss