terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Esquecimento


Tinha ido ao orelhão na Praça São Salvador. O telefone estava ocupado. Então esperei um pouco numa mureta. Foi quando ela chegou. Mas, apesar de tudo, dessa vez veio com o semblante alegre, feliz. Melhor do que da outra, que apareceu emburrada, olhos sempre pra baixo e esquivantes. Agora não, seu rosto parecia entoar uma música, a alegria estendia-se, ponta a ponta, nos seus gestos vivos e joviais.
                - Oi, tio!
                Não que eu quisesse evitá-la. Afinal qual era o problema. Não, tinha problema nenhum. Não era que eu quisesse preservar minha imagem. Mas acontece que nesse dia não tava afim, queria ficar sozinho. Isso mesmo. Queria ficar sozinho. Se alguém me visse com ela?... Não, não era isso. Imagem? Preservar a imagem, que besteira. Sempre fui um cara desprovido de preconceitos.
                - Oi! – disse meio travado.
                Achei que ela ia me pedir alguma coisa. Mas eufórica veio me dizendo, doida para dar a grande notícia:
                - Estou grávida, tio – esboçando um sorriso sem tamanho, de tão grande.
                - De novo?!
                E riu um riso sem fim. Um riso que abraçava toda a natureza. Mas mesmo assim um riso que não media as conseqüências. Um riso prematuro e ingênuo, um riso que não sabia que era riso. Um riso cego. Ria num impulso desmedido.
                - É, tio. De novo.
                - Mas você não disse que perdeu um há pouco tempo?
                - Perdi. Mas esse não. Esse vai nascer saudável. E vai ter olhos verdes. Estou doida pra avisar pra ele.
                - E ele? Onde ele está?
                - Ah, tio... deve tá no morro. Fica lá o dia inteiro... Será que vai ser menino ou menina, tio? – e o riso já era gargalhada. – Só sei que vai ter olhos verdes. Já viu os olhos dele, tio? São verdes. Vai ser igual do pai, tio.
                - Já te disse para não me chamar de tio!
                Subitamente bateu-me um incômodo de ela me chamar de “tio”. Como pode me chamar ainda de “tio”, depois do que aconteceu. Não. Tio não. Era ultrajante. Sim, era mais velho. Você acha quarenta e dois velho? Não, não a ponto de ser tratado assim. Será que ela não se lembrava? Será que me chamava de tio só para me provocar? Claro, podia ser tudo, menos tio!
                - Olha, você já tem vinte e poucos anos de idade... não dá para chamar mais as pessoas de tio. Você quando foi no médico chamou ele de tio ou chamou de doutor?...
                - Chamei de doutor, tio.
                - Então me chame de Ricardo. Entendeu? Meu nome é Ricardo.
                Disse isso olhando para ela. Tentando ver algum sinal nos olhos dela. Se indicava alguma coisa. Algum sentimento. De ternura que fosse. Mas que esse sentimento não se resumisse na palavra tio. Algum sentimento que emergisse do passado, que a fizesse lembrar o que talvez não houvesse mais lembrança.
                - Tá. Tá bom.
                Os olhos ainda estavam roxos. Talvez da porrada que levara do seu namorado. Ou melhor, do futuro pai da criança. Ou melhor ainda, do seu amor bandido. Mas a euforia de seus gestos, nesse dia, deixava pra trás qualquer má impressão, deixava pra trás qualquer rancor ou sofrimento que tivesse ou ainda tem. Era como se em um só dia toda sua vida pregressa tivesse sido esquecida num dobrar de esquina, num atravessar de sinal, num mudar de marquise para dormir. Para dormir tranquilamente, protegida do sol e da chuva em outros lares, em outra vida. Numa vida nova para ela e para a que gerava dentro de si.
                - Tio. Foi mal.  Tio não. Como é mesmo?... Ah...Ricardo, olha só o meu cabelo. Não tá curto?
                Ia dizendo que sim, que estava bonito e tudo mais. A vaidade e exigência das mulheres – qualquer mulher! - já me acostumaram a seguir o protocolo dos bons moços e elogiar sempre seus cabelos. O dela, negro, batendo na nuca e um pouco ondulado, estava... claro, claro que sim, estava bonito, e o que havia de oleosidade se passava por creme ou coisa parecida, tirando o ressecamento que sempre danifica os cabelos. Enfim, talvez não me arriscasse a dizer uma perfeição, que perfeição não existe. Nem em modelo de capa de revista. Talvez pecasse por uma falta ou excesso. Não sei como dizer. Mas, por via das dúvidas, fiquei com a beleza, natural e espontânea...
                - Sim. Tá curto e bonito.
                - É? Não tá muito curto, tio... Ricardo?
                - Talvez – olhando sua nuca lisa e branca.
                - O cara corta quando estou dormindo.
                - Como assim?...
                - É... Corta de maldade. Olha aqui – e mostrou-me as pontas, mas não havia raiva, mostrava-me rindo.
                - E você não reclama?
                - Reclamo, tio...
                Olhei irritado.
                - Ricardo... desculpe – entre gargalhadas. – Ricardo, já viu os olhos dele, são verdes. Meu filho vai nascer de olhos verdes.
                Um pouco mais irritado disse então:
                - Olha, você tem que encontrar um cara maneiro. Sexo não é tudo, entendeu? Tem que ser um cara que trabalhe, que te dê carinho, que goste de você. Sabia que você é bonita?...
                Disse isso e procurei os olhos dela. Tentei achá-los naquele mar de euforia e insensatez, naquele oceano convulso e isolado, um turbilhão onde dois pequenos botes, dois pinguinhos pretos, chacoalhavam de lado a outro, isolados, sem rumo certo, sem porto seguro, entre o céu e a terra, entre a insolitez de uma tempestade desvairada e embriagante. E eles estavam lá, os dois pinguinhos pretos, apareciam e sumiam entre as ondas, vinham e iam, às vezes pareciam náufragos, mas outras se mostravam numa embarcação segura e resistente. Iam e vinham  numa bússola sem norte e sul, sem leste e oeste, numa bússola sem ponteiros, sem destino, sem propósito nenhum, por que o único propósito era estar só ali, viver ali entre os múltiplos e indigentes dedos das ondas, sobre a orfandade do tempo passado e futuro, mas matrimonialmente  estabelecido, numa paixão avassaladora e insaciável, com o compromisso do instante, esse fugaz instante que vem à tona e desaparece nas ondas que se adensam e morrem na beira do mar.
                - Sexo não é tudo – repeti.
                Então, pela primeira vez acho que consegui que os olhos dela parassem em mim por alguns segundos. Tive vontade de alisar-lhe os cabelos, tocar na sua nuca, levá-la para casa, tomarmos um banho e dormirmos tranquilamente. Sim, por que não? Por causa dos outros? Por que agiria diferentemente agora? Veio um silêncio e algumas reflexões. Bem, bem, as coisas já não  são as mesmas.
                - Um companheiro tem que ter de tudo um pouco. Claro que sexo é importante, mas o cara tem que ser companheiro, tem que estar junto, entendeu? Claro que dinheiro é importante, tem que ajudar... mas isso não é tudo também... Tem que ter um pouco de cada, entendeu? Como você vai fazer agora? Ele vai te ajudar a criar essa criança? Ou você vai fazer que nem a outra? O que você fez com a outra mesmo?
                - Eu dei, tio... Tem uma garota na Lapa que tá dando o filho. Ela é surda, sabia? É da rua ela. É linda a criança. Mas os meus vão ter olhos verdes. Ela tá dando...
                Expliquei que ela não poderia ficar fazendo filho assim a toda hora, que tinha que ter responsabilidade, que pra botar alguém no mundo tinha que cuidar, que era nova ainda, que podia fazer muita coisa, podia até trabalhar.
                - O que você sabe fazer?
                - Ah... eu sei passar... cozinhar... fazer faxina...
                - Então?...
                - Eu quero ter uma casa. Quero ganhar na loteria...
                - Mas, pra você ter uma casa, primeiro tem que...
                - Tio...
                Cada vez que ela me chamava de tio a repreendia com os olhos e ela ria como se pedisse desculpas.
                - Ricardo, você não quer ficar com meu filho não? Por que você não se casa com aquela tia de cabelos compridos? Se casa com ela e eu dou o meu filho. Hein? Vai ser saudável... Fica com ela – disse isso com os olhos agora vivazes e jogando seus cabelos para trás, deixando sua nuca mais desprotegida e franca. Talvez me provocasse, procurasse alguma reação minha. 
                O pensamento mais não pensado é o que, sem querer, já pensou em tudo. É aquele que a gente evita falar. Pois é uma ofensa. É grave. Até diante ao tribunal mais rígido, verdadeiro e, no entanto, cego que existe. Mas, felizmente, não há cegueira no tribunal do nosso interior. É como se todos suportassem, abraçados, um frio insuportável desde as suas origens,  embutidos, no âmago do ser, em potência, condensados numa semente para posteriormente se desenvolverem e tomarem uma forma exterior e doce, expostos numa farta mesa de café da manhã, logo no começo do dia,  vistos, degustados com algumas poucas palavras de bom dia  e por fim descartados, no anoitecer,  como uma casca podre, decadente e murcha.
                E foi assim que me vi perdido entre esses pensamentos e tentava rechaçá-los, afastá-los. Mas como? Um pensamento não se afasta assim. Um pensamento você pode fingir que não viu, dobrar a esquina, e achar que tá tudo bem, que ninguém percebeu, mesmo que contenha todos os gestos, você se apruma, com toda confiança, vai em frente, cabeça erguida.  Mas mesmo assim, um olhar pra traz, de esguelha, de desconfiança e de pergunta:
                - E os seus outros filhos? Deu também ou vendeu? – disse quase sem querer, mas num tom ríspido.
                - Nunca vendi filho meu não, tio.
                Por que não? Olhei bem nos fundos dos olhos delas. Tentei achar alguma coisa. Algo que a denunciasse. Mas eles eram simples e espontâneos; nem se assustaram com a pergunta que fiz. Não se incomodavam com nada. Nem com a roxidão. Nem como uma pergunta grave como essa. Poderiam se sentir ofendidos. Mas não. Ela e seus olhos pareciam tranquilos, calmos, surdos diante de tal diálogo.
                Por que não? Na verdade, nós nunca sabemos até que ponto existe ingenuidade nos nossos pensamentos. Até onde eles chegam sem a nossa permissão ou até onde o dirigimos, conscientemente, para onde queremos. Por que não? Na verdade lutava comigo mesmo, e eles minavam da terra, de uma fonte cristalina, pura e infantil. Aos poucos, porém, essa fonte tomava volume, crescia no percorrer sinuoso e labiríntico da selva. Crescia e, depois de um certo tempo, arrastava consigo tudo que vinha pela frente, madeiras, corpos em decomposição, barro, raízes, tudo que vinha pela frente e era esquecido atrás. Então suas margens já eram tão distantes que era impossível enxergá-los do outro lado. E você já não tinha onde se apoiar. Simplesmente era arrastado por esse turbilhão de águas, de natureza incontrolável, de desejo e lasciva.
                Por que não? Essa pergunta já marcava como um ponteiro de relógio. Por que não, por que não, por que não? Era um tic-tac na minha cabeça que soava em cada avançar dos segundos como um sim e um não. Mas como nem sempre estamos atentos a esses barulhos – e evidentemente  ao tempo – às  vezes deixava a imaginação solta, sem hora marcada, fluindo livremente. E quando menos esperava escutava novamente o barulho, o despertador que não me deixava sonhar. Por que não? Essa tentativa de afirmação era a mais repressora possível. Repressora e preconceituosa. Mas ela vinha sem que eu a quisesse. Invadia minha casa e lá estabelecia moradia. Numa orfandade delinquente e, ao mesmo tempo, humilde, carismática, de cachorrinho que nos acompanha de olhos baixos pela rua.
                A moça que ela falava era a Rita. No primeiro dia que saí com Rita foi num dia muito estranho. Já a conhecia das redondezas, mas nunca tive nenhum interesse por ela. Nesse dia porém a beijei, porque simplesmente queria fazer ciúme a uma outra mulher que não queria ficar mais comigo. Desde então começamos a sair constantemente. Não vou dizer que nosso sexo nunca foi bom, mas posso afirmar que não era a melhor coisa que existia. Comecei a enfiar por outros buracos  para ver no que dava. Mas faltava algo. Sempre compareci ao serviço, mas ela... Talvez faltava-lhe libido, faltava-lhe mais tempero, algo assim, era uma salada sem molhos. Ou melhor, não era salada, era qualquer outra comida sem sal, com abundância mas sem nada pra dizer a verdade, já que Marta excedia em alguns quilinhos.
                Comecei a evitá-la, mas era só aparecer que ela colava no meu lado e no fim sempre acabava com ela. Passei a me masturbar diariamente para não comê-la mais. E nesse sexo solitário pensava em outra, uma outra que só arriscava nos meus pensamentos; nessa outra que, quando com os amigos, me resumia só em algumas palavras e afastava-a, com medo, medo de que alguém soubesse dos meus propósitos, dos meus desejos mais íntimos, afastava-a com aquele preconceito, não o que temos dos outros mas aquele de nós mesmos, afastava-a com uma certa pena, não querendo afastá-la mas sim querendo afastar os outros, uma sociedade de fotografias de dentes bem cuidados e sorridentes, de imagens e mais nada.
                Me masturbava pensando nessa outra, sentia-a entre minhas mãos como se fosse sua buceta aconchegante, quente, envolvedora, inchada e apertada, de vinte e poucos anos; mas depois do gozo vinha o fracasso e o arrependimento. Arrependimento e uma impossibilidade forçada por circunstâncias, talvez externas,  de não tê-la de fato na minha vida. Na verdade era nosso o fracasso. Meu e dela.
                Sim. Queria um filho. Já poderia ter tido um. Um não, dois. Foram dois abortos. O primeiro natural. Ou quase. Foi da Marta, anos atrás, minha primeira mulher, que eu não aguentava mais. Um dia ela começou a dar murros na barriga. Estávamos brigando. Havíamos bebido muito. Não me lembro bem como tudo começou, acho que foi por causa de ciúmes num churrasco da vizinhança. Então num acesso de raiva ela começou a se socar.  Socou sua barriga e ficou toda vermelha, quase roxa. E repetia incansavelmente: “Toma, toma, toma seu filho”. Depois dormiu toda torta, meio que sentada no sofá. No dia seguinte, a gente ainda sem palavras,  se levantou. Foi então que vi, comendo um pão do dia anterior, uma mancha vermelha no sofá. Ela foi cambaleando, não sei se de dor ou ainda de porre, para o banheiro. Fiquei na porta perguntando o que era. Claro, muito preocupado. Uma hora depois ela saiu, me abraçou e me beijou quase que mordendo minha boca. “Já foi feito... foi pra privada... Deus quis... e é melhor assim”, disse-me apertando contra seu corpo. Não me lembro de ter ficado triste, acho que não, mas consolei-a.  Depois disso só transei mais uma vez com ela e me mudei, sem avisá-la antes, foi tudo rápido, da noite pro dia. Deus iria dar as respostas pra ela, pensei. Melhor assim, acho que não desejava esse filho. Me livrei, já sentindo uma sensação de conforto. Imagina... Deus escreve certo por linhas tortas. Tinha lido isso não sei onde, e era um grande pensamento. Claro, mais pra ela do que pra mim.
                Mas sempre quis um filho.  Sempre me disseram que para a mulher fazer um aborto é uma experiência traumatizante. E isso eu vi de perto. Ou melhor, quase de perto, afinal, não fui à clínica. Ela resolveu ir sozinha, sem me avisar. De qualquer modo já havia um consenso de que não queríamos ter um filho. Na verdade eu ainda não queria e acho que ela também não. Isso ficou claro quando ela me disse - a segunda, uma arquiteta bem sucedida chamada Marcela. Fiquei imediatamente transtornado e ela, depois disso, depois do meu transtorno e nervosismo, chorou. Até hoje não sei se chorou por causa de mim ou por causa do filho, mas só sei que chorou e chorou muito, só não chorou mais do que depois, que estava tudo concluído. Acredito que nesse dia, no dia do primeiro choro, já havia um entendimento. Nenhuma palavra, a nossa agitação já selava um acordo tácito. Se é que pode se chamar isso de tácito. Mas era um acordo, quase que mudo entre uma dama e um cavalheiro. Creio que melhor pra ela e melhor pra mim. Estava numa fase promissora de sua carreira e eu ainda sem ter me formado, desempregado. Um filho! Nessas circunstâncias! Como?! Sim, melhor assim. Além disso era mais velha, dezessete anos . Não que eu tenha dúvidas de que ela poderia gerar um bom filho. Mas, na verdade... Bem, na verdade já não estava muito satisfeito com o nosso relacionamento. Apesar das festas que me levava, da ajuda na faculdade, de me apresentar gente da alta, não tava mais afim, não tinha sexo. E foi ela quem me disse isso: “Sem sexo não dá”. Claro, não dava mais para disfarçar, tinha que arrumar um jeito. Esperei um momento oportuno, um deslize dela.  Um dia que chegou tarde, de madrugada, bêbada e querendo me amar. Foi simples. Esse era o momento do ponto final.  Foi a terceira vez que a vi chorar, mas nunca igual quando fez o aborto.
                Hoje em dia me arrependo. Estaria, acho, com uns dez anos de idade. E se tivesse tido da primeira, pelo meus cálculo, somaria uns quinze. Mas não os tive, elas não tiveram. Me arrependo, claro, principalmente do segundo. Acho que Marcela daria uma boa mãe e, mesmo quando me separasse dela, não ofereceria maiores problemas, pelo menos financeiro não. Por outro lado Marta era mais do lar. Na época em que estava com ela, trabalhava como auxiliar de escritório. Dava para tirar um trocado. E disso não posso reclamar,  chegava em casa e encontrava tudo limpinho, roupas passadas, a casa cheirando a Veja, comida na mesa e tudo mais. Víamos até novela juntos. Então me separei. Saí do Grajaú e fui morar em Laranjeiras. Perto da tal praça, onde conversava com a garota que sempre me chama de tio. Conheci Marcela na mesma semana. No primeiro dia já transamos, no segundo ela já sabia que estava namorando. Eu soube disso mais tarde. Mas voltemos ao primeiro dia. As mulheres tem uma intuição genial, um censo de investigação de botar inveja em qualquer detetive habilidoso. Digo isso porque quando me separei deixei uma carta para Marta dizendo que estava caindo fora, que todas as contas estavam pagas e que dentro de uma semana ela teria que entregar o apartamento. Não avisei para onde ia, não disse para ninguém. Então, como? Tinha acabado de transar com Marcela, quando escutei um grito do lado da rua. Não acreditei, não podia ser. Meu Deus! Aquilo parecia um encosto! Parecia uma abelha que se embrenha na sua cabeça e pra onde você vai ela vai atrás. Seria eu feito de doce. Eu ou o meu caralho! “Aparece, quero falar contigo”. No mesmo momento a outra já perguntava quem era. “Minha ex”, disse a contragosto, meio encabulado. Imediatamente Marcela foi à janela ver. “Não, não, deixa que eu resolvo isso”. E a afastei do parapeito. “Marta, acabou. Vá para sua casa. Você tem casa. Lá está tudo pago. Leve o que quiser como está no bilhete. Procure sua mãe. Agora não dá mais. Estou ocupado!”. Ela ainda insistiu mais um pouco, mas com o tempo desistiu. Ainda bem! A outra ficou impressionada.
                - Hein, tio?... Não quer ficar com ele, não? Eu te dou. De graça. Aí você se casa com aquela moça do cabelão.
                - Não! Tio não! E não quero ficar com teu filho. Não soube fazer?! – havia, talvez uma ponta de ciúme nas minhas palavras. – Agora vai ter que criá-lo, entendeu?! E ser uma boa mãe – e acho que disse ainda “porra”, já impaciente.
                Depois já a olhava com ternura, um certo arrependimento, “não deveria ter falado assim, tá bom?!” E aquela nuca, suave e lisa, de frescor da manhã, atraía-me. Desculpei-me alçando as mãos sobre seus cabelos e deslizando até o pescoço, suave, timidamente, sem ninguém perceber, sem até que eu mesmo percebesse que estava fazendo aquilo, num sigilo natural e tácito, inconsciente.
                Foi quando passou ao meu lado dois amigos: “Fala, Ricardo!!!” Imediatamente, como num susto, tirei a mão de sua nuca. Guardei-as no bolso. Um certo suor brotou na minha testa, limpei-o. Mas precisava ser assim: Faaaala, Ricardo! Mas do que eu tinha medo, dos outros? Qual era o problema? Vergonha? Por que vergonha? Olha, rapaz, vergonhoso é matar e roubar... isso sim, aí você tem que ter vergonha. E afinal, estava ali só para ajudar, dar uns bons conselhos, nada mais. Qual é o mal nisso?! Passaram e escutei uma gargalhada, quando já estavam lá na frente. O que comentavam? Pouco importa, sou homem o suficiente para assumir minhas responsabilidades. Na verdade eram dois playboyzinhos de merda. Isso mesmo, dois filhinhos da mamãe. Eles que se metessem com a vida deles. Está claro?! Veja só, você não pode dar a atenção a uma pessoa na rua que já ficam inventando coisas de você. De certo que iriam falar para as amigas do nosso grupo. Mas que grupo? Acaso eram realmente meus amigos? Há algum tipo de amizade consistente hoje em dia? Na verdade me lixei pra eles. Eu me garanto, viu?! E não fico arranjando tumulto em festa quando não pego ninguém. Me garanto mesmo. Aliás, estava com ela só pra ajudá-la. Só isso e mais nada. Mesmo que... Deixa pra lá... São uns merda. E retumbou novamente na minha mente: Faaaaaala, Ricardo...
                Deixa eu te dizer uma coisa que até agora não disse. Minha mãe era moradora de rua. Isso mesmo, mendiga. Meu pai, creio que bandido. Na verdade, não os conheci. Acho que não. Isso me disseram. “Meu filho, sua mãe era uma pessoa muito boa e te deixou no orfanato”. A verdade é que a gente nunca sabe realmente a verdade das coisas. Sim, sou filho adotivo e isso não é segredo, pode contar pra todo mundo. Não importa o que os outros vão achar. Fui adotado por uma família de classe média. Mas me lembro que minha mãe, adotiva – é engraçado isso porque a impressão que dá é que tendo duas mães,  quando enjoar de uma poderei ter a outra –, enfim, minha mãe adotiva sempre recebia uma senhora na casa dela quando eu era criança. Nunca me disseram nada. Mas sei que aquela moça me olhava de maneira diferente, e ficava alisando meus cabelos, puxando minhas bochechas, me levantava, me jogava, fazia caretas e festinhas, e sorria quase que chorando quando me via. Não por que  estava lá. Mas certa vez vi minha mãe dando um dinheiro para ela, e ela me abraçou bem forte e sumiu, pra sempre. Ainda sinto, até hoje, aquele abraço, um abraço que parecia querer abraçar o mundo, um abraço quente, aconchegante, maternal, com um aroma de reminiscência e saudade.
                Mas eu não era o único adotivo da galera. Certa vez vi Marcílio com uma faca na mão de madrugada, chorando.
                - Que isso, Marcílio?!
                - Eu vou acabar com ela, vou acabar, vou lá agora!!!
                Estava visivelmente bêbado. Ia acabar com sua namorada que tinha desmanchado o namoro.
                - Calma, Marcílio! Não é assim que se resolve as coisas. Calma! – e tirei a faca da mão dele, joguei-a na lixeira. Realmente fui muito corajoso em tirar a faca da mão de um cara bêbado, que ia matar a namorada.
                E que tinha acabado de perder a mãe.
                - Como ela pode ter feito isso comigo. Filha da puta, vagabunda. Logo agora!!! Cadê a faca? Cadê ela?! Vagabunda!!! – e chorava aos prantos...
                Marcílio era um negro, filho de uma família alemã residente no Brasil. Com ele era evidente, não dava para disfarçar. Os olhares não disfarçavam, os comentários também fingiam, mal e porcamente, não ver nada. Imagina: “Esse aqui é o Marcílio, nosso filho”. E o cumprimento frouxo, com um leve sorriso nos lábios ou talvez um “tadinho” que pestanejava e silencioso, ou talvez “que família digna, que ato de nobreza de espírito, que coragem”. Mas o fato é que Marcílio só vivia se metendo em merda. Pequenos furtos, drogas, brigas de gangue... Fingíamos ignorar até que ponto o fato de ele ser filho adotivo tinha suas causas nisso – inclusive eu. Talvez o trauma da infância, os maus tratos no orfanato, o não aleitamento materno, a carência e tudo mais que os psicólogos podem conjecturar. E todos nós nos embrenhávamos, vez por outra, nessas hipóteses, todos nós queremos ser um pouco de psicólogo fanfarrão de revista Seleções, Caras ou de Facebook, e achamos que entendemos do labirinto da mente. Muitas vezes quando, onipotentemente, vemos o exterior, a realidade dos outros, esquecemos nossa própria condição, e nos engrandecemos mais ainda, com aplausos e uivos de alegria. E era assim que via Marcílio. Era assim que todo mundo via Marcílio. Ele era o filho adotivo que sofrera, que descontava na mãe, na namorada, nos outros, no mundo, tudo aquilo que passara; que era – coitado! – um marginal. E me regozijava, e sentia-me pleno e forte. Não, nunca! Ele não era como eu. Ele tinha problemas, claro. Eu não, definitivamente, não era como ele. Coitado...
                Já freqüentei ambientes de luxo. Vários. Aprendi a nadar no Iate Clube Brasil – me orgulho disso, falo pra todo mundo. Por um lado ou outro, temos que nos orgulhar tanto das desgraças quanto das vitórias,  tudo pode ser motivo de orgulho. Papai não era rico, era um advogado ordinário. Mas trabalhava com um figurão da noite. Então pegava uma boquinha. Na adolescência ia para todas as boates sem pagar nada, camarotes no carnaval, teatros, restaurantes cheio de talheres,  festas na Vieira Souto. Até que o figurão foi pra Espanha e não pode mais voltar, lavagem de dinheiro e outras coisas, um quilômetro de processos. Papai perdeu o emprego. Ficou tão triste e deprimido que em pouco tempo morreu. Já estava separado da mamãe. Papai era, no seu auge, um grande comedor de mulheres. Putas de luxo: Cicciolina, Barbarela,  universitárias e até atrizes famosas, tudo na conta do figurão. Mamãe, acho que sempre soube. Mas nunca fez nada. Quem resolveu se separar foi ele, acho que de dó ou porque tava flácida e enrugada demais. Mas mamãe acabou dando a volta por cima. Encontrou um argentino. Cara legal. Mas até a polícia bater na casa dela dizendo que ele era foragido. “Muito perigoso, minha senhora!” Mas ele já tinha sumido e levado as jóias dela. Sim, tempos difíceis. Papai e mamãe pararam de se falar. Me virei, arranjei um emprego e fui demitido, arranjei outro e também me mandaram pro espaço, e outro e outro. Até parar no cartório. Esse foi o que mais durou. Aliás, as noitadas me deram uma capacidade enorme de não querer mais ver o dia, pálpebras pesadas, preguiça, moleza no corpo, inventava tudo que era tipo de dores. Isso quando não faltava o trabalho. Mas tava com Marta. Tinha que me virar. Até que tudo roeu. Já contei. Depois que me mudei acabei perdendo o emprego. Mas, felizmente, Marcela me segurou pelas mãos, e de novo as festas, as reuniões, os restaurantes, coquetéis, eventos, teatros, óperas, balets... até meu aluguel pagava. No começo cumpria com as minha obrigações com todo tesão, mas lá para o terceiro ano já estava difícil. Já falei isso. Não vou repetir. Não era a idade dela; era outra coisa, entende?  Além disso, ela já tinha feito tudo por mim, até um filho! Já tinha terminado a faculdade de Direito e tinha passado num concurso publico.
                Mas antes desse concurso estava totalmente fodido e Marcela tinha ido para não sei onde. Acho que um almoço que ela não podia me levar. (Por algum motivo ela não me levava para todas suas reuniões.) E queria tomar uma cerveja, sair, fazer alguma coisa. Queria sair porque ela saíra sem mim. Mas achei bom. Enfim sair só, pensei. Mas como? Sem dinheiro! Sim, sem dinheiro, ou melhor, com o pouco que estava e sem Marcela, me convenci. E o fiz. Lapa. Terra dos desgarrados, do Zé Pelintra, me alertavam.  Mas não tava nem aí pra Zé não sei das quantas, fingia que acreditava, era ateu convicto – aliás, cético, por via das dúvidas. Enfim, era só uma saída solteiro e voltaria pra casa.
                Nessa época já tinha experimentado cocaína. Não. Não era muito afeito a isso. Mas mantinha uma certa regularidade, sem ninguém saber e sem comprometimentos, claro. Só ela. Ela já tinha feito comigo. Fazia raramente, dizia. Se era sem eu saber não sei. Desconfio. Pois no dia em que terminamos – não me falou nada – só percebi. E me deu motivo. “Se lembra daquele compositor? Então... tava com ele”, foi assim sua desculpa. Mas eu sabia quem era aquele compositor, todo mundo sabia quem era ele. E todo mundo sabia que seu nome só rendia poucas palavras, um sucesso ligeiro, um samba antigo, que já caíra no esquecimento, que estava fodido, que tudo tinha virado pó, e logo a música e o assunto mudava. Por isso nesse dia não dei corda, não comentei nada. Quando se fala muito, se tem mais dúvida do que toda indagação silenciosa das estrelas. O falar se esconde; o silêncio é explícito. Fiquei calado. E até hoje fico.
                - Tio, meu filho vão ter olhos verdes. Tio, outro dia te vi lá na lapa. Você bem não me viu...
                - É?... – perguntei meio hesitante, meio confiante.
                O que ela teria visto na Lapa? Por que não falara comigo? O que acontecera? Tentava não fugir dos seus olhos. Analisava-os minuciosamente. E ela ria. Só ria. O que seria esse riso? Até que ponto conseguimos achar num riso algo que queremos saber? Até que ponto vemos, confirmamos num riso aquilo que imploramos para que fique só no riso, que não queremos saber nem escutar mas, ao mesmo tempo, que buscamos, que inventariamos todos os traços suspeitos, reveladores, inquietos, mergulhando no abismo das últimas conseqüências?
                - Ah..., Ricardo, você estava com a Loira num canto atrás de um carro... ela meio que... – E riu. -  Mas deixa isso pra lá. Que horas que o pai do meu filho vai aparecer, hein? Tenho que falar com ele. Meu filho vai ser bonito como ele, sabia?
                Loira? Quem seria essa loira? O bom de beber muito é que a gente se esquece do que aconteceu. Mas aí vem a dúvida, o desejo de saber, mesmo não querendo. Mas vem sempre uma ponta de lembrança, de sensação de algo desagradável, rumores no fundo da lembrança de algo que não poderia ter acontecido mas aconteceu. Talvez porque tenha sido desejo sem freios, sem limites, inconsequente, solto, livre como se voassem destroços numa intensa ventania, sem vergonha ou pudor. Ou talvez tudo isso seja fruto só de engano, de confusão, de vista que acredita ver uma coisa mas vê outra. Vista de bêbado desembestado e leviano, que troca as coisas, se confunde como um daltônico e troca o verde pelo azul, ou melhor, como um sádico ao trocar o simples prazer pelo o prazer da dor.
                Entretanto, alguma lembrança ainda fica. Alguma coisa, mesmo que você não queira, ainda que arranha de maneira desagradável e repugnante a sua memória. Algo como um pus que quer estourar na delicada membrana da sua pele, pra fora. Algo que força a você ver, que segura seu rosto com as mãos à força - medindo a brutalidade dos tapas - e te diz olha, olha quem é você, olha a sua natureza mais animal, mais selvagem, olha a sua víscera como é frágil diante de um soco no seu fígado pastoso e entupido de merda, pra não dizer facada – arma branca, filho da puta! -, olha e admita que você é isso que está aí dentro de você, que é pisado, chutado que nem um molambo, massacrado, jogado em qualquer canto e esquecido, que se cala e resmunga, numa tosse meio verde, enfisemática, e para todos, para todo mundo... e num canto se acomoda, sono, fadiga e sono, muito sono, e num bueiro talvez, no envelhecimento do metal mais pobre, que enferruja rápido e indigno. Mas mesmo assim sobra algo, que é forte, orgulhoso, indomável, insuperável na nua própria insuperação. Sim. Ser belo não é só ver a superfície do espelho, mas ver em profundidade, em todos os ângulos, em todos os lados, é ver como bisturi de médico. Tem que cortar para ver o que tem dentro.  Mas para isso é necessário múltiplos espelhos. Um olhando o outro, que por sua vez olha outro e outro e outro e muitos mais outros, até ao nada infinitamente. Aí sim, neste pleno nada, que chamamos de vazio, já sem espelhos que espreitam, neste pleno deserto frio e sem luz é que a beleza reflete com mais nitidez, com uma nitidez de sol de verão, com uma nitidez óbvia e refulgente.  Mas que  vezes aterroriza; até mesmo porque é mais autêntica, mais sincera, mais honesta consigo mesmo do que a que se disfarçada em vidro, frágil e inconsistente. Que se estilhaça um dia e, ao recolhermos os pedaços, cortamos nossos dedos. E vemos nosso sangue escorrendo pelas mãos. Vemos como ele pulsa, vermelho, viscoso, num movimento de dentro para fora. Vemos a vida em toda sua nudez. Sim. Se lembrar é ver de dentro pra fora. É ver o que sai, o que se esconde, o que se entranha e depois se libera.
                Me lembro do gozo, intenso e fugaz,  e ela oferecendo a lateral do seu roso, num ato de fuga e procura, de susto e espera, de ingenuidade e lasciva, com olhos que se protegem, dentes mordendo os lábios, músculos que se relaxam mas tesos, mãos que fingem afastar, e o segundo branco que escorre pela pele, anestesiando, ludibriando a vida, se esquecendo.
                Depois surgiu uma lâmina, um canivete e os olhos arregalaram. “Cadê meu dinheiro, quero agora?!”, “Mas você não disse que...”, e a faca apontou, cutuquei a carteira, sem carteira. “O dinheiro se não te furo”, “Eu não tenho, cadê minha carteira”, quem se protegia agora com as mãos era eu e tentava acalmá-la dizendo não tenho, que tinha colocado o pó, que não tínhamos combinado nada, e ela avançava numa ira infernal, brutal, rodopiando umas das mãos para cima e a outra insinuando o golpe. De repente, quando tentei afastá-la, o sangue já escorria por um dos meus dedos, mas ela vinha, avançava aos berros para cima de mim “Safado, safado, vou acabar com você” e ainda não satisfeita gritava “Ele pegou meu dinheiro, ladrão!”, e eu dizia “Mentira, mentira, você que roubou minha carteira!”, “Tá dizendo o quê, que sou ladra!”, e a faca voava rente de um lado pro outro, e eu fugia, recuava, me aterrorizava, e ela revelava a franqueza dos seus músculos nas costas, nos ombros, no pescoço, onde veias largas latejavam como se quisessem sair pra fora, e eu me apavorava, recuava, tentava impedir com minhas mãos, com o dedo cortado que já jorrava sangue mas ainda sem dor, recuava, mais um passo pra trás, mais pra trás, ia correr, sair dali, sumir apavorado, antes que descobrissem, quando tudo escureceu. E não me lembro mais de nada.
                Quando acordei acho que estava no hospital. E eu escutava o paramédico conversando, acho que com um policial. “Ah... então foi a Loira...” E alguns risinhos. “Coitado, mas ele vai ficar bom, né?”, “Vai, vai... deram uma pancada na cabeça dele, aliás, essa Loira, hein?... não é o primeiro que aparece aqui nesse estágio.”, “É... canso de falar com ela pra parar com isso, mas... ela deve ser boa mesmo, sempre tem algum idiota que cai nas suas seduções, e...  e depois dizem que não se lembram de nada...”, “Ah ah ah, é verdade, depois não adianta botar a culpa na bebida”, “É... mas não tem aquele ditado mesmo, como é que é?, “Cu de bêbado não tem dono”. E os risos agora eram mais intensos. E a maca se movimentando. Costuraram meu dedo e minha cabeça, depois enfaixaram-na. Fui para uma sala de espera com soro. Lá fiquei um tempão. Acho que ainda iam tirar radiografia, sei lá.   
                Então entrou na maca um cara com o braço todo estropiado, pendurado mesmo, dava pra ver o cotoco dos ossos no antebraço, todos os enfermeiros e médicos correram pra cima dele, “Sala de cirurgia, sala de cirurgia”.  Como ninguém reparava em mim, arranquei o soro e saí. Na portaria ninguém se importou comigo e tomei a rua. Estava ainda desorientado, mas nessas horas a gente sempre sabe voltar pra casa. O caminho do lar a gente sempre se lembra. Na frente do hospital havia um grande parque, deduzi então que era o Souza Aguiar. Peguei um ônibus, disse pro motorista que tinha sido assaltado e ele me deu carona. Em casa devo ter desabado na cama. E lá fiquei durante uns três dias.
                - Tio...
                Já tinha quase desistido de repreendê-la por causa do “tio”. Pelo menos estava sem forças para isso no momento.
                -Tio, sempre te vejo com um livro em baixo do braço. Você gosta de ler muito, hein?
                - Gosto – disse vagamente tentando me recompor, tentando me esquecer do que eu lembrava, tentando lembrar do que eu esquecia.
                Na verdade, tentava me desvencilhar do susto. Um susto como se alguém batesse duramente na porta da sua casa, batesse inúmeras vezes tentando derrubá-la, como se fosse um assassino, um fantasma, um monstro que viesse pegá-lo. Um barulho que ecoava longe, mas que emergia até as superfícies do presente, aterrorizando-o. Bam bam bam! Sou eu que quero entrar, sou eu! Bam bam bam! E não se sabe para onde ir, não há saída, não há escapatória, não há calabouço, nem escadas pro céu. Só há a janela e um imenso precipício, uma imensa sensação de queda livre. Não tem jeito, tem que deixar entrar, tem que ver e encará-lo sem covardia, sem medo. Tem que ousar!
                Mas o assunto do livro me seduziu, trouxe-me de novo a ternura e a alegria, a leveza. Agora me reconciliava com ela e comigo mesmo.
                - Sim. Adoro livro.
                Trazia um comigo.
                - Esse aqui é um romance, muito bom...
                - Romance, tio?...
                - Tio não!
                - Fala de amor?...
                - Fala de uma mulher que traía o marido e gastou todo dinheiro dele com os amantes, levando ele à falência.
                -É... – ela esquivou os olhares, depois olhou para mim com uma certa cumplicidade, e buscou algum pensamento secreto.- E o que aconteceu com ela depois?
                - Morreu.
                - De quê?
                - Acho que de desgosto.
                Então depois de um breve silêncio continuei.
                - Quer ver a parte do final – comecei a folhear o livro tentando achar a página.
                - Tio...
                - O que é?!...
                - É que... é que eu não sei ler... – confessou meio desanimada, meio com vergonha, com um ar de constrangimento.
                Entretanto, logo depois já estava irradiante:
                - Você me ensina a ler?
                E os seus olhos brilharam, desfazendo, clareando todos os hematomas existentes, o sorriso escorregou ludicamente para os lados e se fixou durante alguns instantes numa volúpia ingênua e doce, num desejo carente mas perspicaz. Por que não? Qual era o problema nisso? Claro que ensinaria ela a ler... Tomaríamos lições todos os dias. Não teria problema algum. Ajudaria ela no que fosse possível. Junto,  com nossos dedinhos, tocaríamos as primeiras palavras. Daríamos vida a elas. Sem mistérios, sem segredos...  Aprenderíamos tudo novamente... sem esquecimentos ou medo.
                -  Podemos começar amanhã?...
                - Claro, tio.
                - Tá bom. Mas você jura que não vai mais me chamar de tio?
                - Juro.
                - Então nos encontramos aqui.
                - Tá, tá...
                Falou isso balançando afirmativamente, de maneira lânguida e submissa, com a cabeça. Nos despedimos. Fui para casa com essa última imagem dela, fazendo planos. Sim, por que não? Meus olhos não eram verdes, mas ninguém sabe ao certo se da criança iria sê-lo.

                No dia seguinte passei pela praça pelo outro lado da rua, distante e meio encabulado, mas ela não estava lá. Talvez ela não se lembrasse, sei lá... Bem, assim era melhor, pensei como se também quisesse esquecer. Fui embora logo, com as mãos no bolso e de cabeça baixa.