sexta-feira, 30 de dezembro de 2022
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
terça-feira, 13 de setembro de 2022
Não é Apocalipse, é História
Toda euforia técnico-industrial da modernidade - com assegurada comodidade financeira dos burgueses - explodiu pelos ares em 1914. Apesar da reconstrução, a marcha imperialista deu de ombros à 1a Guerra e seguiu otimista. Em 29 um baque financeiro, soergueu-se meio tonta, mas com discursos nacionalistas, xenófobos, disputando mercados - como urubus disputam uma carniça. Até se confrontarem novamente em 39. Mas no pós-45 reiniciou-se tudo novamente. Dessa vez, porém, com mais cautela, pois havia outros agentes antagônicos ao ocidente: URSS e China. O mundo ficou por um fio. Em 89 esfacela-se o bloco soviético. E agora sim! Os EUA exercem uma egemonia sem fronteiras.
Em meio a tudo isso, no mundo das ideias, surgem termos como capitalismo tardio e pós-modernismo. Este último veio a calhar. Soava melhor e dava ares mais frescos ao que já é antigo: a exploração. Há quem o conteste, dizendo que as práticas são conservadoras. Entre eles: Jameson, Habermans, Eagleton. Outros já são mais entusiastas, Vattimo por exemplo, ou só constatam com algumas reservas: Derrida, Guattari, Deleuze, Lyotard etc. Ocorre, porém, que, se formos pegar um consenso da data da origem do pós-modernismo, já decorreram uns 60 anos. E, a meu ver, a ideia de pós-moderno, já ficou obsoleta. É um produto kitsh. E quem o consome compra uma ideia antiquada. (Se já não nasceu conservadora.) Qual o perigo disso? O perigo é o mesmo o que rondava desapercebidamente os tempos logo anteriores a 1914 ou 39. Tal como naquelas épocas, há uma imensa saturação do mercado, uma insatisfação de quem foi excluído dessa fatia. E hoje o que há? Rússia e China, fortes e renovadas ententes.
A lição que fica é a seguinte. Uns dos pilares teóricos - se é que podemos falar de pilar numa filosofia que mais liquida do que constrói -, uns dos pilares do pós-modernismo é decretar o fim da história e fazer de conta que as ideologias acabaram, que tudo se vaporiza no presente, que o mundo é só você e sua "pretensa" subjetividade, já que a todo momento ela é transfigurada, colocada em prova, até atingir o niilismo, ausência pop e "nirvânica" do mundo pós. Acontece que a História, relegada a segundo plano, se ressente. E a qualquer hora pode dar seu troco. Não se pode varrer simplesmente para de baixo do tapete aquilo que move nossas vidas e interesses diariamente. Durante séculos, aliás.
Prof. Ivo de Souza
domingo, 14 de agosto de 2022
Ideias de Gabriela
(Ou um estudo crítico dos Pássaros)
Era na janela
que Gabriela fugia dali,
da aritmética voz
marcada por tosse e cal
encapsulada por doses
de tédio e ácido estomacal.
Como régua e laje
ao sulco da terra,
como murro na porta
trancada à chave.
e de tudo mais:
como justa bota
(sola, verniz e metal)
que do solo ao céu
que da meia ao furo
rasga a unha
aprendiz da ideia
que aí se punha
de cabeça aberta
ao aperto dos pés.
Era na janela
que Gabriela fugia de si.
Ao menos do carimbo
dos corpos aos números
dos números aos gráficos
dos gráficos à refeição
da gula avestruz
que o burocrata produz.
Gabriela já não sabia de si.
Era na janela
que Gabriela se abria.
Como uma nuvem se abre ao céu
como um pássaro se abre ao voo
como o mar se abre ao topo da onda
e o topo se desfaz em véu.
Como uma árvore se abre ao ar
e o ar se desfaz em pétalas
de orvalho, cor que se abre arco,
se abre luz. Se abre em flor.
Mas certa vez,
a cerrada voz
como um punho,
peso ou pedra.
Como mandíbula
que aí tritura
os ossos das sílabas.
Como também de ombros
com asas de chumbo
e pés que tocam pés
de móveis imóveis.
Certa vez o mestre
ou carrasco talvez
ou pelo pouco caso
a quem merece
ou pelo muito de saco
cheio, voz rebelde,
risco na parede,
botão aberto
junto aos seios.
Certa vez, hora cega
de algema e caverna,
a janela foi cerrada.
E agora, Gabriela?
Gabriela, e agora?
Como fugir dali?
Como fazer das bochechas das nuvens
um sopro de vida
se agora é tudo parede
- crua, sem lar?
Como driblar com saltitantes olhos
o mosaico de luz e sombra dos galhos no pátio
se agora a luz é cirúrgica
- nua, sem par?
E agora, Gabriela?
Como ser árvore no largo deserto,
como ser a ave da distância mais perto,
como ser formiga sem trilha num mundo de botas,
como estar ao céu sem o azul das veias? E agora?...
Como então, Gabriela, ser no ser que se alheia?
Um estojo, uma carteira,
uma caneta, um ventilador,
uma unha mal roída, um quadro.
Esquadro. Lápis remoído.
O voo torpe de uma mosca
em espiral o caderno, a sobra
da borracha, do apontador
de cólica, cabeça que coça.
O professor bigode-de-pente,
óculos garrafa, buraco abaixo
do sovaco. No bolso, sempre.
Na careca, pra lá de abstrato.
Agora sem janela
fugir já não pode, Gabriela.
Já não pode mentir.
Já não pode fingir
que o que vinha de fora brota por dentro.
Como uma rosa brota da terra
e morde o azul.
Como pérola que recolhe a realidade
na concha da mão.
Como o habitat infinito de uma ave
nas páginas de um livro
que, sobre a mesa, pegara pra ler.
O mundo
- entendera a lição -
é um espaço infinito e azul
que, da janela, entra num livro,
belisca suas páginas
e voa com a imaginação.
- Como um canário...
És pássaro livre, Gabriela!
sábado, 25 de junho de 2022
Não há vagas, de Ferreira Gullar, a história e sua vanguarda: uma leitura crítica
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
̶ porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
O poema “Não há vagas” encontra-se no livro Dentro da noite veloz, escrito entre 1962 e 1975. Como as próprias datas revelam, é um período de muita turbulência no Brasil: lutas sociais, colapso do populismo e a culminância da ditadura de 64. Evidentemente que esses fatos não vão passar despercebidos no livro. É uma obra, portanto, permeada de engajamento social. Mas não um engajamento bruto e com um único viés. Nele se misturam reminiscências do passado, como em “A casa”, “Uma fotografia aérea”, “Ei, Pessoal!”, “Memória”, “Praia do Caju”, “O prisioneiro”. Todavia, não só do passado, mas também do futuro, que se presentifica, ou melhor, se amálgama com o momento atual, trazendo à tona cargas afetivas guardadas na memória e no corpo. Sinal claro disso são os versos de “O prisioneiro”: “É de tarde / (com seus claros barulhos) / como há vinte em São Luís / como há vinte em Ipanema // Como amanhã / um homem livre em casa”. A essa presentificação do tempo, há também o questionamento do espaço, da co-existência em comum da humanidade, de suas dores e angústias, num mundo polarizado, mas ao mesmo tempo uno, como em “Ajuda saber que existe / em algum ponto do mundo / (na Suíça) / uma jovem de mais ou menos um metro e setenta de altura” e que “Ela esteve de pé entre plantas e flores numa dessas manhãs em que possivelmente chovia na Guanabara” ou, como nos versos de “A vida bate”, pois “Alguns viajam, vão a Nova York, a Santiago / do Chile. Outros ficam / mesmo na Rua da Alfândega, detrás / de balcões e de guichês”, mas todos buscam a “fome da vida”. Como se percebe, o olhar territorial de Gullar não pretende planar distante, apenas nas alturas, pois sua busca está no cotidiano das pessoas. Traz, assim, elementos da particularidade que se universalizam. Não é à toa que a metáfora da bomba no poema “A bomba suja” põe em evidência um conflito não só armado, mas também de todo processo de alienação do trabalho no mundo capitalista que se concretiza na falta de recursos do trabalhador, pois essa bomba “mata mais do que faca, / mais que bala de fuzil, / homem, mulher e criança / no interior do Brasil”. Portanto, o que Gullar quer é fazer uma poesia da práxis, uma luta da vida real e concreta, já que “No dicionário a palavra / é mera ideia abstrata”. Isso é o que vamos ver em “Não há vagas”.
Apesar da simplicidade do poema, ele nos coloca diante de algumas dificuldades. E quais são? Podemos começar pelo título. Não há vagas de quê e para quê? Ora, ele vai listar as coisas que não cabem no poema: o preço do arroz, o [preço] do gás, da luz, do telefone, “a sonegação / do leite / da carne / do açúcar / do pão”. Também não cabem no poema o “funcionário público” nem o “operário”. Mas na penúltima estrofe admite no poema “o homem sem estômago / a mulher de nuvens / a fruta sem preço”, já que
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
Pois bem. Vimos que Gullar pretendia fazer um poema no qual a palavra não fosse apenas “mera ideia abstrata”, em estado de dicionário, mas sim palavras que dialogassem com o contexto real, pragmático da vida, que tivessem suas funcionalidades inseridas no meio concreto do mundo. Isso nos leva a perceber que “Não há vagas” está apenas traçando uma ironia, mais ainda, um sarcasmo. Afinal, o que ele pretende é justamente o contrário disso. Assim, para melhor entendermos a poética de Gullar, podemos pedir auxílio a suas próprias palavras no seu livro Vanguarda e subdesenvolvimento:
"A consciência concreta – também poética – das coisas é a consciência que tenho que eu tenho delas aqui, neste momento – deste aqui no espaço do mundo, deste momento no momento global da realidade, em suma, das relações históricas, em seu mais amplo sentido, que ligam cada instante da nossa existência de todo real, de todas as coisas e de todos os homens." (p. 97)
É por esse sentido que Gullar diz que “o discurso que não carrega em seu cerne uma experiência concreta a comunicar, nada revela, não é poesia, e, a rigor, é um falso discurso”.
Feitas essas observações, cabe-nos então investigar o que seriam esses discursos não concretos, pois desse modo entenderíamos com mais clareza a ironia do poema, ou melhor, se ele tem endereço certo.
Ora, é comum os poetas modernistas se rebelarem contra uma arte artificial, acadêmica, comportada, repleta de purismos de linguagens e que visam somente a forma perfeita, deixando em segundo plano o conteúdo, as questões sociais e a existencialidade. Isso se vê em “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado” (“Poética”, Bandeira); em “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” (Drummond, “Poema de sete faces”); e ainda, “Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro” (Oswald, “Pronominais”). Essas leituras foram feitas por Gullar e bem assimiladas pelo poeta. Portanto, um dos seus alvos é desferido contra essa “arte pela arte”, que traz o selo a artificialidade. Isso fica bem evidente em suas palavras a “arte-pela-arte é o reconhecimento da inutilidade desse protesto e a conformação com um marginalismo que agora se projeta para ‘fora da História’ e se abisma na realização de uma obra cujo sentido fundamental para o autor está e ser feita. O marginalismo torna-se maldição, não se resolve mais no plano social. O artista desiste de mudar o mundo” (p. 30). Assim:
"Para vencer a contradição arte-sociedade, o artista ‘elimina’ um dos pólos da contradição – a sociedade; a contradição, radicalizada, se põe dentro de seu próprio trabalho, entre a arte e a fonte dela que, se não é mais o homem, é a natureza como sistema abstrato de leis: a obra seria, então, fruto da probabilidade, luta contra o acaso." (p. 31)
Essas questões colocadas por Gullar se complicam mais ainda quando colocadas no descompasso da civilização brasileira em relação a Europeia, pois não é novidade que sempre copiamos as modas que vinham de lá. Trazer ideias parnasianas, simbolistas e de vanguardas que não se assentavam à nossa incipiente industrialização, quando éramos ainda um país praticamente agrário, só nos afastavam dos nossos problemas reais, apear de Gullar entender as necessidades (e até certa utilidade) dessas importações, devido a nossa carência histórica. De qualquer modo, tal questão só será posta em relevo, muito mais do que os românticos, pelos nossos modernistas, pois, segundo Gullar, a “diferença fundamental é que, como já agora o País existe muito mais – possui alguma autonomia econômica em comparação com a do século XIX.” (p. 41) Ou seja, já havia uma certa complexidade urbana e social, a qual possibilitava um certo amadurecimento autônomo da nossa realidade nacional.
Mas a crítica de Gullar também tem outro alvo. E aqui mais duro, já que sabia muito bem que as condições políticas, sociais e econômicas de amadurecimento do Brasil do século XIX não possibilitaria uma arte consciente das particularidades brasileiras, ficando (até meados do século XIX) apenas num romantismo transplantado ou num ufanismo bilaquiano formal (final do século XIX). Sua luta também é contra uma vanguarda que se perde em significações, abstrata, cujo alvo principal são as tendências mallarmenianas, no qual a arte sofrerá um efeito de “rarefração”. (p. 47)
Para explicar isso, em seu ensaio Gullar se auxilia de Umberto Eco em Obra aberta. Há em toda mensagem um certo grau de significação, ou seja, aquilo que é possível decodificar. Assim um texto com mensagens claras, objetivas e redundantes teria um grau mais fechado de significações. É o texto que comumente costumamos chamar de discurso denotativo. Estimulada por figuras de linguagens, a poesia, por sua natureza conotativa, teria uma margem mais aberta a múltiplas significações, pois é permeada de ambivalências e inexatidões. Contudo, há o perigo de essas pluralidades serem tão grandes que ela acaba perdendo seu chão, torna-se indecodificável. Pura entropia, se esfuma em nuvens abstratas, não tangenciando nenhuma realidade palpável, perdendo sua capacidade de sentir a vida. Por isso, quando se chega a esse nível, de total incompreensão, ela se despe da particularidade que a vestia e se transforma, ironicamente, em algo que também “não fede / nem cheira”.
Apesar de o movimento ser de ida e vinda, ou seja, dialético, é nesse sentido que Gullar insere os dados particulares numa universalidade, já que o universal, seguindo a esteira de Lukács, conteria todas as particularidades, num movimento essencialmente de dentro para fora, do concreto para o abstrato, invertendo o idealismo hegeliano. O universal não deixa de existir no particular, mas, principalmente, é o particular que tece o universal, num fluxo mais de ida do que de volta, que integra a constelação. Mais ainda: são singularidades que formariam “territórios”, sentidos particulares (de um povo ou de uma região) que comporiam a universalidade. É por esse motivo que Gullar, nesse seu momento histórico, dispensa uma poesia que quer universalizar-se sem ter consciência de seu lugar no mundo, que se dilui em significações abstratas, sem se humanizar diante a realidades mais evidentes. Essa é uma poesia que não diz nada, que se refugia, sem conteúdo, num pseudo-reinado da arte pura, distante e oblíqua, que não se importa com questões que afetam o homem mais diretamente. Evidentemente que Gullar estava atento aos adventos da história do mundo - que se tornava veloz, complexo e implacável, principalmente na Europa - quando faz essas considerações de Mallarmé, mas não hesitaria em dizer:
"Mallarmé ainda participa daquela visão idealista que Marx definiu como ‘mistificação especulativa’ e que consiste em supor que a mente humana é a fonte da realidade e que, portanto, o aprofundamento do pensamento em si mesmo, desligado das limitações concretas do mundo, conduzirá à verdade absoluta. Em consequência dessa concepção, a linguagem de Mallarmé deixa de ser um meio de apreensão da realidade exterior para se tornar a própria realidade essencializada, de tal maneira que, trabalhando a linguagem, ele se supunha trabalhar o próprio cerne do real." (p. 63)
Diante disso, o poema “Não há vagas” fala da alienação de uma arte sem significado para uma realidade concreta. Seria a mesma alienação do proletário que não se reconhece no seu trabalho, ou Estado, como ente inatingível e fantasioso, afastado das necessidades do povo. A arte abstrata (seja parnasiana, simbolista ou da vanguarda endeusada da Europa e utópica aqui) não traria identificação com o homem brasileiro. E não o particularizando, afastaria as possibilidades de integrá-lo, dialeticamente, num sistema universal, já que é destituída de sentido próprio e vivo. Mas qual a realidade que deve ser retratada na arte? A realidade da síntese dialética do instante vivido. No Brasil, a realidade da inflação, do custo da vida, do trabalho árduo do operário, do baixo salário do funcionário público. (Não excluindo, até certo grau, as conquistas técnicas-formais vindas de fora.) É por isso que só cabe, ironicamente, no poema, “o homem sem estômago / a mulher de nuvens / a fruta sem preço”. Nesse sentido o poema que foge à realidade é aquele apenas “decorativo”, sem função social, insípido, pois “não fede / nem cheira”. É a arte que se fecha em si mesma, que se afasta do social, que vive como mercadoria autônoma, sem a mediação do homem. Aliás, é Alfredo Bosi, em prefácio de antologia organizada por ele, que afirma que “a maturidade do escritor e cidadão pós-64 superou os seus horizontes ideológicos dos anos 50”, já que “trata-se de ver mais concretamente a História, julgar mais criticamente o próprio lugar do poeta na trama da sociedade, refletir mais dramaticamente a condição do homem brasileiro e do homem latino-americano sem medusar-se no fetiche abstrato, no fundo egótico, do ‘homem’ em geral”. Assim, conclui: “A superação do surrealismo juvenil atravessou um purgatório brechtiano programado (alguns poemas abertamente didáticos e o tom geral de Dentro da noite veloz) para conquistar uma nova poética na qual memória e crítica não se pejam de dar as mãos”. (BOSI, p. 10)
Mesmo sabendo que critérios de classificações são falhos e melindrosos, resta-nos dizer em que estilo de época o poema se encontra. Apesar de trazer uma linguagem econômica, cujos versos são curtos e livres, prosaica, pois até dialoga com o leitor com uso de vocativo (“ ̶ porque o poema, senhores, / está fechado: ‘não há vagas’”), linguagem dinâmica de jornal, publicitária, e o uso de clichê (“Não há vagas”), apesar de tudo isso apontar para uma sugestão pós-moderna, como diversos autores configuram (Cf. Paradoxos do Pós-modernismo, Nizia Villaça), acreditamos ser um poema ainda do último suspiro modernista. Talvez seu próprio último suspiro enquanto tentativa de fazer uma obra que possua esse vigor, sem ser vulgar, mas “salvacionista”, de luta ideológica e social, tentando afirmar uma ideia, ainda que através de mascaramentos linguísticos, totalizante e redentora. Sem contar, claro, o apelo emocional quase romântico do autor, reiterado por diversa repetições (“não cabe”). Por tudo isso, é um poeta que sabe o que quer, apesar de lançar objetos constantemente (gás, luz, telefone, sonegação, leite, carne, açúcar, pão, funcionário público, operário, carvão etc.), esses mesmo objetos não estão destituídos de valor, de significado. Se integram numa teia semântica construída pelo poeta com um propósito bem definido: desconstruir, através do sarcasmo, a ideia de um poema que plaina no ar, sem nunca ter tocado os pés no chão. Ora, as mesmas observações (exageradas ou não) que ele faz aos vanguardistas (Joyce, Pound, Kafka, Éluard e, além de outros, Mallarmé como carro chefe) em Vanguarda e subdesenvolvimento não seriam as observações que se têm hoje em dia da poética pós-moderna, onde a arte se afastou de questões sociais, perdeu sua função didática, de conscientização, enfim, de veicular um significado, uma ideia que enriqueça e dê alento e perspectiva a alma das pessoas? Não estamos em pleno de esvaziamento, de niilismo, de significantes sem significados? Não teria a arte se refugiado, esquecido do seu papel diante aos problemas da sociedade? Ou melhor, não pretende ser a arte apenas – ad aeternum – auto-problematizadora, sem vistas a soluções, esquecida num mundo imaginário e só seu? Não estaria a arte se autocontemplando como Narciso às avessas (porque não tem mais o ideal do belo) e dando às costas para o mundo, apenas se refletindo em insights, em lapsos de memórias descritivos, substantivando-a sem a aposição de nenhum adjetivo? Talvez Gullar, com esse poema, já estaria prevendo esse futuro com o que já tinha visto no passado. E até ele mesmo tenha sido vítima de sua “própria” filosofia.
Não é novidade para quem o acompanha que Gullar passou por várias fases, ele mesmo se orgulhava disso, com falhas ou não era um ser pensante. De qualquer modo, é no livro Dentro da noite veloz que condensa a memória com os momentos duros vividos. E é neste livro também, junto com o poema “Não há vagas”, que sua didática, com alto teor de ironia, se concretiza, fazendo da poesia algo não estéril, mas de imensa utilidade para conscientização do homem oprimido da época, mas que, infelizmente, atravessa séculos.
Prof. Ivonilton G. de Souza
Bibliografia:
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz; Poema sujo. Círculo do Livro: São Paulo, sem data.
______________ Vanguarda e subdesenvolvimento. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1978
______________ Ferreira Gullar: seleção e apresentação Alfredo Bosi. Global: São Paulo, 2004
VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno. Editora UFRJ: Rio de Janeiro, 1996
segunda-feira, 18 de abril de 2022
domingo, 27 de março de 2022
O uso das coisas e da alma
Quando pensamos em mau uso da internet, imaginamos logo em fake news, posts ofensivos, importunações etc. Mas há coisas extremamente desagradáveis que são muito mais simples do que os mistérios de Hamlet. Explico.
Outro dia precisei de um serviço que aqui vou inventar. Afinal, como estou na rede, não quero nem pretendo expor ninguém, certo? Pois bem. Precisava de um sapateiro para consertar um velho e bom sapato meu. Havia um que conhecia pessoalmente, não era íntimo dele mas de longe era estranho também, já que até outras pessoas, que conheci proximamente, faziam parte do nosso círculo. Vamos chamá-lo de Zé dos Sapatos. E eu via o progresso do Zé dos Sapatos na sua profissão. A ponto de ele, todo prosa, já ter me mandado fotos de madrugada de pares que tinha restaurado. E, com poucas ressalvas, disse que seu trabalho estava cada vez melhor. Zé dos Sapatos começava a se destacar no ofício. Não só eu cheguei a dar sapatos para ele restaurar mas, como agora todos confiavam nas suas hábeis mãos, outros também, donzelas e cavalheiros. Recomendei seu trabalho para um grupo seleto de clientes. E, em algum tempo, já fazia mais do que consertos: produzia até desenhos de calçados, conquistando gloriosamente as finais de um concurso de estilistas. Ótimo! Zé dos Sapatos não estava de bobeira.
Não estava, não fosse um lapso, um detalhe, um salto alto demais: a soberba. Pois então. Nesse dia, pedi, via Whatsapp, para consertar o meu. Isso foi sábado às 10h04. Seria cedo para sábado? - pensei. Mas depois me convenci que não, a não ser que ele tivesse ido pra balada no dia anterior, o que não seria muito difícil. Mas nós nunca podemos prever as baladas dos outros. E portanto era uma boa hora. Pelo menos grande parte da população já estaria acordada. Zé dos Sapatos, que a essa altura já tinha nome e sobrenome verdadeiros, não respondeu. OK. Talvez não tivesse visto ou estivesse ocupado com outra coisa ou mesmo dormindo... Por que não? Ele merece. De qualquer modo, desconfiei do fato de que, contrariando a suposição inicial, ele realmente vira o texto, mas como agora não era apenas Zé dos Sapatos e, ao que parece eu era um Zé Ninguém, resolveu deixar-me esperando propositalmente. Sem aflição. Afinal, o querer ansiosamente mais curtidas, mais visualizações, prontas respostas nas redes sociais está levando muita gente para o Rivotril, o que, sem prescrição, só faz as coisas piorarem. Desse modo, toquei minha vidinha...
No dia seguinte, quando estava saindo para trabalhar (detalhe importante, profissionais liberais em geral fazem um puxadinho aos domingos também, ainda mais quando a coisa tá preta), enfim, quando saía ele me respondeu. Disse que consertaria meu velho e bom sapato. Isso foi 10h25. Legal. Parei tudo que estava fazendo e perguntei alguma coisa do serviço às 10h35. Mas é aí que o salto cresceu. Programou no aplicativo uma daquelas respostas eletrônicas rápidas e frias, estéreis e robotizadas: "Caro cliente, estamos fora de serviço no momento. Por favor, entre em contato mais tarde". Achei estranho, ainda mais pelo fato de conhecê-lo. Como já estava com o dedo para solicitar, ou melhor, não me dando conta do grau de distanciamento que ele se punha diante a mim, "pedir" mais informações, perguntei sobre a dificuldade do restauro. Ufa! Dessa vez foi o Zé mesmo que respondeu:
"Faço com cola de qualidade, é simples, vai ficar novinho." (10h47)
Então emendei, antes que perdesse um ser humano, vivinho:
"Tudo bem! Vou ver quando te entrego." (10h48)
"Blz." (11h09)
Como eu dependesse desse serviço e, creio, ele dependesse do meu dinheiro, perguntei para me certificar como andava seu trabalho, se ia ainda bom das mãos:
"Você tem fotos do seu último trabalho." (11h33)
Mas o leitor esperto já percebeu, né?
"Caro cliente, estamos fora de serviço no momento. Por favor, entre em contato mais tarde."
Porém, não vinha só isso na mensagem. Suas nobres habilidades e extrema destreza profissional, seja nos sapatos ou nos aplicativos, ainda fez com que acrescentasse a essa mesma o seguinte:
"Expediente:
De segunda à sexta: 10h às 19h.
Sábado: 9h às 12h." (11h33)
Ainda tentei esboçar um comentário, o qual nem reproduzo aqui. Um comentário do meu dia a dia, tosco, insignificante. Aliás, esse fragmento de frase - de suspiro! - ainda estava sendo escrito ou postado (não sei) quando só aí vi a última resposta do robô. Senti-me como um palerma. Um idiota que fala sozinho, pois não preciso dizer que nem retornou - em pessoa viva! Passou por cima. Como alguém que você estende a mão e te deixa no vácuo. Como um imbecil que fala sozinho.
Mas, ainda que eu estivesse perturbando-o (ou perturbado), algo não captei do seu profissionalismo. Senão vejamos. Disse que o expediente é sábado de 9h às 12. Ora, o primeiro contato foi sábado às 10h04. Depois me responde num domingo, quando eu até já tinha deixado pra lá. Ou seja, fora do seu expediente - mas dentro do meu! Afinal, não seria mais fácil dizer, em bom punho, um simples: liga amanhã!
O que fica disso tudo? Nada. Nem uma relação de amizade, que poderia se fortalecer, nem uma relação profissional. E (sem querer gastar suas preciosas horas, que a vida é corrida, eu sei!) nunca é demais lembrar que há muito tempo atrás a produção artesanal - genuinamente familiar, quando o homem ainda não era coisa e sentia-se pleno nela - foi substituída pela máquina. Em decorrência, a essência da espécie, que é o trabalho, se alienou de todo processo produtivo. Portanto, isso só traz esta verdade: o Zé dos Sapatos não é mais o Zé dos Sapatos. Talvez nem ele tenha se dado conta disso, já que a máquina furtou-lhe a alma, a sensatez e a virtude da sensibilidade. Mas a nossa sorte é que ainda há alguns bons sapateiros por aí. Não é mesmo?