terça-feira, 31 de agosto de 2021

Divisão social do trabalho


O assaltante assaltou o professor
que estudava crimes.
Os crimes eram punidos, na forma da Lei, pelo juiz.
Que tinha livros de Ética e Direito Penal,
comprados na livraria tal, perto de casa,
e editado por famosa editora,
cuja secretária, solteira e assalariada,
tinha uma linda garota.
E assustada com as notícias dos jornais
- entre elas a do nosso perigoso assaltante -
queria que sua única flor se casasse com o juiz,
que, não se sabe por que questão
 - classe, orgulho ou paixão? -
acabou mesmo foi com a promotora.
Porém a moça, já bela e universitária, 
teve uma quedinha
- como quedas d'águas puras e cristalinas
mas, rio abaixo, arrastam cipós, terra e coração -
pelo professor.
Que, além de muitas outras histórias,
contou sobre o assalto e seu assaltante,
que - acredite! - ao final das contas se deu bem.
Pois nas mãos da garota 
- agora mulher, madura e escritora pródiga -
virou personagem de romance.
De best-seller internacional!
E assalto mesmo, meus bons leitores,
só na imaginação...
 
Posto que aqui tudo é paixão:
seria crime, não fosse ficcional.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nas prateleiras dos jornais


Certa vez, num dia de calor, um jornalista meu conhecido estava desesperado porque ia fechar a redação e não tinha arrumado matéria nenhuma. Então me chamou para entrar num ônibus com ele, dar uma entrevista e falar que estava "passando mal" por causa da temperatura. Desconversei e, para ele não ficar aborrecido, disse que estava atrasado para algo que tinha que fazer.

É sobre isso que quero comentar. A mídia precisa de um produto para vender. E esse produto tem que causar impacto. Sensação. Para isso tem que ser hiper-valorizado. Extraordinário. Mas um extraordinário que logo caia no esquecimento. Por isso é preciso de uma cadeia diária e incessante de eventos extraordinários.

Conheço gente que não sai de casa quase nunca (à noite então nunca) com medo de ser atacado por assaltantes ou seja lá o que for. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo aqueles noticiários policiais grotescos (e muitas delas são agressivas com parentes no próprio lar). Conheço gente que provavelmente vai ficar com medo do corona vírus para o resto da vida. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo noticias sobre a pandemia. Conheço pessoa que tem TOC de limpeza e higiene em casa, que, mesmo não trabalhando fora, nunca tem tempo pra nada. Água sanitária na pia da cozinha a todo momento, fervura na louça, pano com veja na casa umas três,  quatro vezes por dia etc. Quando não está limpando, fica à tarde inteira assistindo programas domésticos. Conheço gente (e muitas) que acreditam que todos, invariavelmente todos os políticos só roubam, mas não entende o que é esquerda, direita, fascismo, burguesia, sindicato, a história do Brasil e nem mesmo qual é a atribuição de um deputado federal, por exemplo. Essa mesma pessoa pode ter um comércio e na maioria das vezes sonega uma nota fiscal ou pede um empurrãozinho de alguma autoridade pública para resolver algo particular. Ela assiste o dia inteiro os escândalos dos políticos, seja no rádio indo trabalhar, no almoço assistindo o jornal pela tv no restaurante, ou brigando com o filho à noite porque está o atrapalhando. E ainda não satisfeito assiste tudo de novo antes de dormir e nem dá atenção a...vamos dizer... umas carícias antes de dormir para animar o casamento.

Enquanto isso indústria do jornalismo vende. Manipula bolsas. Quebra propositalmente o país para atender demandas de investidores que compram tudo a preço de banana, transforma instituições estratégicas e vitais (como saúde, energia, segurança, transportes e educação) em negócio privado, dando uma forcinha para os anunciantes, como se uma mão lavasse a outra. Derruba presidentes, elege seus queridinhos. E, para usar um clichê já conhecido no meio acadêmico, IN-FORMA, ou seja, formata as pessoas de fora pra dentro, jogando todos os padrões de costumes, de consumo desvairado e fútil na grande parcela humilde da população, almas vulneráveis sem o mínimo de senso crítico, acreditando que toda autoridade do mundo é um apresentador que ganha - diga-se de passagem - na casa das centenas de milhares de reais por mês. Assim a mídia cria seus próprios mitos, transformando-os em super-homens. irretocáveis, honestos, justos.

Os problemas diários no país e no mundo existem. Não podemos negar. O vírus existe. A violência contra os negros existe. O roubo do político existe. O aquecimento global existe. Mas o que quero dizer é que esses problemas são tratados como mercadoria. São colocados sem uma ótica crítica. Sem as causas primeiras ou contextualizados. Sem a parcela de culpa que o próprio capitalismo tem nisso tudo. Não há esforços nenhum para resolver esses problemas. Porque, ao resolvê-los, não haverá mais notícia. Não haverá mais mercado. E toda roda gigante para de girar.

Por fim, o que vemos, nesse histerismo todo da mídia, é o fortalecimento de mais um mercado: o da indústria farmacêutica. De esquizofrênicos. De compulsivos. De depressivos. De neuróticos. De pessoas com pânico. Violentas. Assustadas. Com todos os distúrbios psiquiátricos que se possa imaginar. Ela molda uma massa sem capacidade de reação ou resposta: apática. Ela impõe sua ordem do discurso: de poder. Ela não quer cidadãos conscientes, por mais que diga ao contrário. Pois ter consciência para mídia é fazer as pessoas acreditarem que o único modo de viver seria do jeito que a ela lhe é conveniente, Idolatrando seus eternos Robertos Carlos; fazendo acreditar que a democracia se resume num voto no domingo de quatro e quatro anos e o resto seria por conta da autoridade indiscutível do governante; curtir a seleção brasileira, como se isso se resumisse no maior espírito de nacionalidade possível. E orar, admitindo a culpa e incapacidade, para as coisas melhorarem. Na verdade, companheiros e companheiras, ela não está nem aí para você, para sua humana dignidade. O que você pensa, a dor que você sente é descartável. Você é o próprio produto em série nas prateleiras das casas (que nem esse valor é mais) de 1,99. É só não vir com defeito ou quebrar. Se não, lixo.

Ivo de Souza





sábado, 21 de agosto de 2021

O dentro e o fora: o território

                         A Leonardo Canabrava


Você diz ter viajado à Europa,
ter conhecido o Louvre,
mas mal a Monalisa lhe sorri
veio-lhe a vontade (que galopa!)
de fazer um belo e nobre xixi.

Já eu fiquei por aqui.
Desenhando musas sob lençóis,
colhendo flores das toalhas
sobre as mesas. E das marcas
do tempo, um penico bem já diz.

Já no metrô alemão indaga-se
o que faz, qual pátria o traz ali.
- Pois não. Latino de todos lares,
manhãs de todos os destinos.
Do Rio, persigo o mar sem fim.

Mas eu fiquei por aqui.
Fiz do teto a areia das horas,
relógio cego ao sol do Saara.
Das paredes, largas escarpas,
fóssil, mármore, memória.
Do ventilador, córregos, exílio
que renova e faz o que sou.
Das vozes quietas, livros-pilastras
aos vastos sótãos sem véus,
ou aos calabouços do metrô.

Diz que Nova York beijou a Rússia,
que sexo e carícia não tem país
nem língua, raça ou mesmo raiz.
Que de Kremilin aos pés da Liberdade
flertou com a ruiva cor que invade.

Já eu... bem... fiquei por aqui.
Beijei a piteira do cigarro,
fiz do fio esguio da fumaça
a sereia dinamarquesa.
E como Prometeu Acorrentado
roubo o fogo à humana proeza.

*     *     *

Os territórios são nascentes
de cristal. Brotam de ossos,
da vaidade são rios só nossos
e tocam o ar, ilimitadamente.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Aquela prosa


Não ri não que é sério, cara. Sempre honrei meus compromissos, sempre fui firme e certeiro. O que falam por aí é mentira. Temos disciplina, método, organização e, por mais que pareça absurdo, até uma hierarquia própria. Realmente não sei o que aconteceu, se cedi, se fui além dos limites. Mas naquele dia, já no primeiro sopro da madrugada, saindo da única e já condenada casa da rua, espremida por prédios residenciais de classe média em Laranjeiras, onde tive a reunião decisiva, parei numa praça em frente, frequentada por jovens da Zona Sul. Um pouco afastada de um casal lascivo, pronto para o sexo, e sob ruídos de cantorias desafinadas de Caetano Veloso, violão, e tudo mais, conheci uma moça. Vestia uma estampa indiana solta no corpo. A etiqueta desengonçada pra fora, numa pequena ondulação na nuca desprovida, denunciava a marca conhecida e cara. As sandálias deixavam visíveis as unhas sem esmaltes mas bem tratadas e nas axilas de neve surgiam umas granulações, de talvez um ou dois dias por fazer, não mais que isso - como fino pó numa pia de mármore.   

Como me viu fumar um Marlboro, repentinamente veio e, num ziguezague elástico na voz e no corpo malabarista, me pediu isqueiro. Com um copo descartável transbordando numa das mãos, bebida que parecia uma mistura de coca-cola e cachaça, e na outra um cigarro enrolado, disse, depois de um tempo de conversa, mas não suficiente para uma intimidade maior, pelo menos para quem não reparasse nos seus seios pequeninos, desprovidos de sutiã, que  escorregavam numa suave curva até os bicos, e talvez estimulados - bem rígidos, prontos para germinar - ao roçar o fino tecido da roupa e do desejo. Disse com todo brilho das pupilas negras, dilatadas, num sorriso desmedido e orgulhoso, cuja falta de um único dente atrás, apesar de ainda nova, era um detalhe  insignificante, mas que, surpreendentemente, fazia-lhe até um certo charme. Disse, enfim, com toda sonoridade jovial e aberta das vogais, que era anarquista.

Então, mais que interessado, com uma leve recaída talvez, deixei-me levar pela sua prosa, ainda que meio embaralhada, como quem sai de um expediente de trabalho extenuante  sexta-feira para falar bobagens, e perguntei, num tom cordial mas firme (como exigia o assunto), o que ela achava de Mikhail Bakunin.

- O quê?
- Mikhail Bakunin.
- Fala de novo?
- Bakunin. Entende?

Um raio partiu o velho mastro em mar de ressaca! E seu espírito de paz e amor esvaneceu-se num estampido seco e surdo:

- O quê! Bacanal?! Tá achando o quê! Que só porque somos anarquistas e tá tudo liberado. Respeita, hein? Isso é muito sério! Exijo respeito. Sou revolucionária! E você?! Quem pensa que é?!...

Tentei emendar mais uma vez, mas já era tarde. Ela me chamava de velho babão. (Nunca imaginei que aos 40 já seria velho babão.) E toda alegria melada e amarga do seu copo já escorria pelo meu rosto até o bolso interno do blazer, onde guardava as únicas coordenadas, escritas num papel de caderno - prova única e que seria queimada ao fim de tudo. 
 
- Puta merda! - desabafei. A essa altura já sozinho e olhando pro copo abandonado na calçada.

Tirei o rascunho e tava tudo borrado. Ilegível! Como  explicaria pro chefe que perdi as instruções. Nunca em minha vida cometera uma falha! Mas agora tudo desmoronou:  o mapa, os horários, a quantidade de dinamite, absolutamente tudo! Como explicaria que o atentado no jantar do banqueiro com o ministro da fazenda amanhã - oportunidade única e imprescindível para a paz e conquista do povo - foi cancelado por uma hippie?! Anarquista!

- Puta merda! - chutei o plástico ordinário, que se espatifou mas não saiu do lugar, enquanto segurava o coldre da 45 no peito encharcado, ao lado esquerdo, escondido sob a costura, que tecia o preto.