segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Aquela prosa


Não ri não que é sério, cara. Sempre honrei meus compromissos, sempre fui firme e certeiro. O que falam por aí é mentira. Temos disciplina, método, organização e, por mais que pareça absurdo, até uma hierarquia própria. Realmente não sei o que aconteceu, se cedi, se fui além dos limites. Mas naquele dia, já no primeiro sopro da madrugada, saindo da única e já condenada casa da rua, espremida por prédios residenciais de classe média em Laranjeiras, onde tive a reunião decisiva, parei numa praça em frente, frequentada por jovens da Zona Sul. Um pouco afastada de um casal lascivo, pronto para o sexo, e sob ruídos de cantorias desafinadas de Caetano Veloso, violão, e tudo mais, conheci uma moça. Vestia uma estampa indiana solta no corpo. A etiqueta desengonçada pra fora, numa pequena ondulação na nuca desprovida, denunciava a marca conhecida e cara. As sandálias deixavam visíveis as unhas sem esmaltes mas bem tratadas e nas axilas de neve surgiam umas granulações, de talvez um ou dois dias por fazer, não mais que isso - como fino pó numa pia de mármore.   

Como me viu fumar um Marlboro, repentinamente veio e, num ziguezague elástico na voz e no corpo malabarista, me pediu isqueiro. Com um copo descartável transbordando numa das mãos, bebida que parecia uma mistura de coca-cola e cachaça, e na outra um cigarro enrolado, disse, depois de um tempo de conversa, mas não suficiente para uma intimidade maior, pelo menos para quem não reparasse nos seus seios pequeninos, desprovidos de sutiã, que  escorregavam numa suave curva até os bicos, e talvez estimulados - bem rígidos, prontos para germinar - ao roçar o fino tecido da roupa e do desejo. Disse com todo brilho das pupilas negras, dilatadas, num sorriso desmedido e orgulhoso, cuja falta de um único dente atrás, apesar de ainda nova, era um detalhe  insignificante, mas que, surpreendentemente, fazia-lhe até um certo charme. Disse, enfim, com toda sonoridade jovial e aberta das vogais, que era anarquista.

Então, mais que interessado, com uma leve recaída talvez, deixei-me levar pela sua prosa, ainda que meio embaralhada, como quem sai de um expediente de trabalho extenuante  sexta-feira para falar bobagens, e perguntei, num tom cordial mas firme (como exigia o assunto), o que ela achava de Mikhail Bakunin.

- O quê?
- Mikhail Bakunin.
- Fala de novo?
- Bakunin. Entende?

Um raio partiu o velho mastro em mar de ressaca! E seu espírito de paz e amor esvaneceu-se num estampido seco e surdo:

- O quê! Bacanal?! Tá achando o quê! Que só porque somos anarquistas e tá tudo liberado. Respeita, hein? Isso é muito sério! Exijo respeito. Sou revolucionária! E você?! Quem pensa que é?!...

Tentei emendar mais uma vez, mas já era tarde. Ela me chamava de velho babão. (Nunca imaginei que aos 40 já seria velho babão.) E toda alegria melada e amarga do seu copo já escorria pelo meu rosto até o bolso interno do blazer, onde guardava as únicas coordenadas, escritas num papel de caderno - prova única e que seria queimada ao fim de tudo. 
 
- Puta merda! - desabafei. A essa altura já sozinho e olhando pro copo abandonado na calçada.

Tirei o rascunho e tava tudo borrado. Ilegível! Como  explicaria pro chefe que perdi as instruções. Nunca em minha vida cometera uma falha! Mas agora tudo desmoronou:  o mapa, os horários, a quantidade de dinamite, absolutamente tudo! Como explicaria que o atentado no jantar do banqueiro com o ministro da fazenda amanhã - oportunidade única e imprescindível para a paz e conquista do povo - foi cancelado por uma hippie?! Anarquista!

- Puta merda! - chutei o plástico ordinário, que se espatifou mas não saiu do lugar, enquanto segurava o coldre da 45 no peito encharcado, ao lado esquerdo, escondido sob a costura, que tecia o preto. 

Um comentário:

Unknown disse...

Boa crônica. Fiquei aqui pensando se em vez do anarquista Bakunin fosse o socialista utópico Fourier do "Novo Mundo Amoroso".