domingo, 14 de agosto de 2022

                       Resposta à uma questão escolar


Ideias de Gabriela

(Ou um estudo crítico dos Pássaros)

 

Era na janela

que Gabriela fugia dali,

da aritmética voz

marcada por tosse e cal

encapsulada por doses

de tédio e ácido estomacal.

 

Como régua e laje

ao sulco da terra,

como murro na porta

trancada à chave.

e de tudo mais:

como justa bota

(sola, verniz e metal)

que do solo ao céu

que da meia ao furo

rasga a unha

aprendiz da ideia

que aí se punha

de cabeça aberta

ao aperto dos pés.

 

Era na janela

que Gabriela fugia de si.

Ao menos do carimbo

dos corpos aos números

dos números aos gráficos

dos gráficos à refeição

da gula avestruz

que o burocrata produz.

Gabriela já não sabia de si.

 

Era na janela

que Gabriela se abria.

Como uma nuvem se abre ao céu

como um pássaro se abre ao voo

como o mar se abre ao topo da onda

e o topo se desfaz em véu.

Como uma árvore se abre ao ar

e o ar se desfaz em pétalas

de orvalho, cor que se abre arco,

se abre luz. Se abre em flor.

 

Mas certa vez,

a cerrada voz

como um punho,

peso ou pedra.

Como mandíbula

que aí tritura

os ossos das sílabas.

Como também de ombros

com asas de chumbo

e pés que tocam pés

de móveis imóveis.

Certa vez o mestre

ou carrasco talvez

ou pelo pouco caso

a quem merece

ou pelo muito de saco

cheio, voz rebelde,

risco na parede,

botão aberto

junto aos seios.

Certa vez, hora cega

de algema e caverna,

a janela foi cerrada.

E agora, Gabriela?

 

Gabriela, e agora?

Como fugir dali?

Como fazer das bochechas das nuvens

um sopro de vida

se agora é tudo parede

- crua, sem lar?

Como driblar com saltitantes olhos

o mosaico de luz e sombra dos galhos no pátio

se agora a luz é cirúrgica

- nua, sem par?

 

E agora, Gabriela?

Como ser árvore no largo deserto,

como ser a ave da distância mais perto,

como ser formiga sem trilha num mundo de botas,

como estar ao céu sem o azul das veias? E agora?...

Como então, Gabriela, ser no ser que se alheia?

 

Um estojo, uma carteira,

uma caneta, um ventilador,

uma unha mal roída, um quadro.

Esquadro. Lápis remoído.

 

O voo torpe de uma mosca

em espiral o caderno, a sobra

da borracha, do apontador

de cólica, cabeça que coça.

 

O professor bigode-de-pente,

óculos garrafa, buraco abaixo

do sovaco. No bolso, sempre.

Na careca, pra lá de abstrato. 

 

Agora sem janela

fugir já não pode, Gabriela.

Já não pode mentir.

Já não pode fingir

que o que vinha de fora brota por dentro.

Como uma rosa brota da terra

e morde o azul.

Como pérola que recolhe a realidade

na concha da mão.

Como o habitat infinito de uma ave

nas páginas de um livro

que, sobre a mesa, pegara pra ler.

 

O mundo

- entendera a lição -

é um espaço infinito e azul

que, da janela,  entra num livro,

belisca suas páginas

e voa com a imaginação.

- Como um canário...

És pássaro livre, Gabriela!