Ideias de Gabriela
(Ou um estudo crítico dos Pássaros)
Era na janela
que Gabriela fugia dali,
da aritmética voz
marcada por tosse e cal
encapsulada por doses
de tédio e ácido estomacal.
Como régua e laje
ao sulco da terra,
como murro na porta
trancada à chave.
e de tudo mais:
como justa bota
(sola, verniz e metal)
que do solo ao céu
que da meia ao furo
rasga a unha
aprendiz da ideia
que aí se punha
de cabeça aberta
ao aperto dos pés.
Era na janela
que Gabriela fugia de si.
Ao menos do carimbo
dos corpos aos números
dos números aos gráficos
dos gráficos à refeição
da gula avestruz
que o burocrata produz.
Gabriela já não sabia de si.
Era na janela
que Gabriela se abria.
Como uma nuvem se abre ao céu
como um pássaro se abre ao voo
como o mar se abre ao topo da onda
e o topo se desfaz em véu.
Como uma árvore se abre ao ar
e o ar se desfaz em pétalas
de orvalho, cor que se abre arco,
se abre luz. Se abre em flor.
Mas certa vez,
a cerrada voz
como um punho,
peso ou pedra.
Como mandíbula
que aí tritura
os ossos das sílabas.
Como também de ombros
com asas de chumbo
e pés que tocam pés
de móveis imóveis.
Certa vez o mestre
ou carrasco talvez
ou pelo pouco caso
a quem merece
ou pelo muito de saco
cheio, voz rebelde,
risco na parede,
botão aberto
junto aos seios.
Certa vez, hora cega
de algema e caverna,
a janela foi cerrada.
E agora, Gabriela?
Gabriela, e agora?
Como fugir dali?
Como fazer das bochechas das nuvens
um sopro de vida
se agora é tudo parede
- crua, sem lar?
Como driblar com saltitantes olhos
o mosaico de luz e sombra dos galhos no pátio
se agora a luz é cirúrgica
- nua, sem par?
E agora, Gabriela?
Como ser árvore no largo deserto,
como ser a ave da distância mais perto,
como ser formiga sem trilha num mundo de botas,
como estar ao céu sem o azul das veias? E agora?...
Como então, Gabriela, ser no ser que se alheia?
Um estojo, uma carteira,
uma caneta, um ventilador,
uma unha mal roída, um quadro.
Esquadro. Lápis remoído.
O voo torpe de uma mosca
em espiral o caderno, a sobra
da borracha, do apontador
de cólica, cabeça que coça.
O professor bigode-de-pente,
óculos garrafa, buraco abaixo
do sovaco. No bolso, sempre.
Na careca, pra lá de abstrato.
Agora sem janela
fugir já não pode, Gabriela.
Já não pode mentir.
Já não pode fingir
que o que vinha de fora brota por dentro.
Como uma rosa brota da terra
e morde o azul.
Como pérola que recolhe a realidade
na concha da mão.
Como o habitat infinito de uma ave
nas páginas de um livro
que, sobre a mesa, pegara pra ler.
O mundo
- entendera a lição -
é um espaço infinito e azul
que, da janela, entra num livro,
belisca suas páginas
e voa com a imaginação.
- Como um canário...
És pássaro livre, Gabriela!