quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Didática da opressão



Ontem, ao chegar mais cedo ao colégio, resolvo dar uma olhada no livro didático do componente  "Linguagens e suas tecnologias". Mas francamente não gostei do que vi. Ou não vi. O olhar não se centrava em lugar nenhum tamanha era a poluição visual do livro. Parecia mais uma obra rococó. Dispersão e pluralidade, abertura e descentramento - para quase chegar às categorias de Wolfflin. Se barroco era a configuração das páginas, barroco deverá ser o conteúdo das vidas das novas gerações, sob o título em voga de pós-modernismo, com forte teor de subjetividade aliado à uma realidade massacrante (e aí o fator fé e ciência se interpõe constantemente). Na verdade a impressão que tive era que mais parecia estar rolando um Facebook pelo computador. Se se falava em Shakespeare, por exemplo, era como se fosse apenas uma postagem descompromissada de rede sociais, sem aprofundamento, sem uma reflexão mais profunda, sem um texto na íntegra. E logo vinha outro assunto, outro e outro. Mais parecia um intervalo comercial. Uma ânsia de ser semiótico, sem sê-lo. Uma ânsia de querer mostrar tudo, sem mostrar nada, como alguém que não consegue se concentrar no seu discurso, não consegue chegar ao final da história sem inúmeras interrupções e desvios, como um verdadeiro esquizofrênico.

Tenho cerca de 2000 livros em casa. Trabalhei em biblioteca de 50 mil. Já passou muita coisa pela minha mão, mas nunca vi nada igual ao que vi ontem - diagramar livros como se estivessem diagramando páginas de classificados. Aliás, é a tônica, né? Entupir nosso alunado de informações, de mídias, de otimismos tecnológicos. Criar verdadeiros consumidores sem a mínima reflexão do mundo do mercado e suas mazelas. Tudo isso sob o nome de uma falsa interdisciplinaridade. Falsa porque não passa da superfície, do conhecimento de almanaque, da mera curiosidade, como nos programas de perguntas e respostas valendo um milhão aos domingos. Além, é claro, de não sair do senso comum, do mero ouvi dizer. O mesmo ouvi dizer da caverna de Platão, na qual só se vê sombras e a essência se escapa. Assim, o que se propõe é um mundo de simulacro. As classes sociais, a luta pela distribuição de renda, a realidade da opressão se diluem num empreendedorismo romântico e individual. É o  motoboy da esquina, o motorista de Uber, o Youtuber que vende sucesso pessoal, o design gráfico solitário etc. Nada contra. Cada um se vira do jeito que pode. Mas será que esses livros trazem a reflexão de quem realmente ganha com isso? Trazem a reflexão de que esse individualismo exacerbado desconstrói as relações trabalhistas, de negociações com sindicatos e de apoio mútuo?

Talvez tenhamos fugido do assunto, talvez tenhamos ido longe de mais e corro o perigo neste texto de me dispersar tal como os livros. Mas como não falar de superestrutura sem falar da infraestrutura? Como não falar de um bem cultural, que é o livro, sem mencionar a realidade econômica que vivemos? É essa mesma realidade que tem que ser debatida nos livros didáticos. E não colocá-la como inabalável, eterna e indestrutível. Falar de "Romeu e Julieta" não serve só para dizer que conhece. Mas sim para discutir a  possibilidade de relação de amor entre famílias divergentes. Falar de Machado de Assis serve para discutir o cinismo da burguesia. Falar de Graciliano Ramos serve para falar da relação de opressão no campo. Falar mesmo de um Rubem Fonseca, em "Passeio noturno", serve para falar da relação machista entre carro, mulher e poder. Enfim, se aprofundar num texto literário - num livro didático, sobretudo - serve para abrir sentimentos e mundos desconhecidos aos alunos. Enriquecê-los e dar bases para um pensamento crítico. E o mesmo deve ocorrer em todas disciplinas, intercalando-as, mas de maneira consistente, sólida.

Posso estar enganado, mas parece que (sem entrar em méritos se consciente e de cima ou se provém de uma rede de relações como Foucault supõe ser) o plano é o seguinte: vamos dar o máximo de informações aos alunos para se adequarem ao mundo competitivo,  ferramentas para virarem empreendedores de si mesmos, torná-los cidadãos comportados e sem consciência de classe e dizer que o mundo é plural mas sem abalar os alicerces do neoliberalismo. O problema é que essa suposta pluralidade (a mesma pluralidade visual do livro) acaba homogeneizando ainda mais uma massa subalterna com a ilusão de que é livre, mas não compra livros nem vai ao teatro porque tem que pagar o gás, a luz, o aluguel. Cria a ilusão de que é livre para os sentimentos nobres (amor, por exemplo) mas o dinheiro fala mais alto. O problema é que, enquanto se supõe que se esteja recebendo cultura de alta qualidade, se está recebendo um verdadeiro kitsch. É a cultura da aparência. Do "vi por aí". É a educação que, aliada unicamente aos interesses do mercado, ignora totalmente a condição humana - de angústias, mas também de verdadeira fraternidade.


Ivo de Souza