Aula 4 - O silêncio do azul
Para que tanta fala,
meu deus?!
se ela des-
cobria
tudo
(em
si)
Para que
explicar?
a crescente demografia
da angústia das pessoas
com suas raivas
de metal
com suas dores paralíticas
com suas contas
penduradas
na light no gás no aluguel nos
bares
onde se bebe
a vida
que sempre lhe deu as costas
onde a vida
se faz mais vida
por ser mais morte
onde a morte dói menos
e se faz mais vida
com dose dupla
pendurada
na conta e nas
costas
Para que
explicar?
seus tédios em máquinas de caça níquel
jogados
em frutas que
despencam luz e vidro
jogados
em simulacros
vazios
jogados
sem arrimo nem
rima
ao ar
veloz e elétrico
do precipício
Sem arrimo nem
rima
porque com ela
também não há solução
‒ como explicar? ‒
para os
estômagos vazios das ruas
para a gramática
das mãos magras
suspensas
como
uma boca banguela
careadas na combustão ácida
escorradias
entre os faróis sinais vidros blindados rodas
de carros paralamas pneus ferros-velhos latas
calçadas
esquinas isqueiros meio-fios marquises igrejas
escadas
vãos buracos bocas dichaves canos facas grades bois
punheta cu boquete pó crack maconha restos de comida
pombos baratas ratos bueiros malocas sacos plásticos
testículos
inchados gonorréia cachaça e sono muito sono
Como explicar?
a biologia da
mosca varejeira
nos sacos de
lixos revirados
nas portas dos
mercados
o dia comprado a
varejo dos meninos de rua
o homem-inseto
em seu quarto
a física do
homem-ódio do homem-bomba do homem-burguês
a física
quântica do homem-oco
Como explicar
tudo isso?
Mais
ainda a história
daqueles sem
história
silenciada em suas máscaras de flandres
Mais
ainda a testosterona
do mercado
financeiro desvirginando botões de rosas
na orla de
Copacabana
fazendo dos
cônjugues o amante mais cruel
chantageando
lares governos
‒ governos? ‒
magistrados policiais professores garis políticas
públicas
fazendo inveja
aos mais vis piratas
encoleirando
cães raivosos
amansando-os
(fazendo-os de réus)
na ração exata
do dia a dia
na torpe
esperança da falência renovada
Mais ainda ‒ como explicar? ‒
o fim do trabalho
solidário das abelhas
cujo mel virou
sal
o fim do veraneio das andorinhas
agora
empoleiradas
em
gaiolas glaciais
o fim das fábricas
de utopias ao por do sol no Arpoador
ou sob a excitação
da luz clandestina
de algum quarto
despejado da cartografia oficial
o fim das noites
mágicas
das estrelas
universais
que se jurava
pegar
mas agora
o cristal se liquefaz
em algoritmos de solidão
Como explicar?
o fim do campeão
de xadrez
que tudo calculava
que tudo previa sem ser máquina
e hoje aposta
seu último dente na taberna da história
Como explicar o
fim do Homem?
Mas em seu
silêncio de caramujo
para ela
não havia
explicação que apelasse à sua escuta
O mundo estava
dentro
Como dentro está
o magma na Terra
como dentro está
a pólvora na cápsula
como dentro está
a seiva do cacto
‒ deserto do Saara
como dentro está
o que ainda não é palavra
é fissura de
solo
é vão de escada
é peça sem
encaixe
é lar sem
hóspede
é o silêncio do
nó
Porém soantes martelos
sílabas-metais
ardem na
bigorna
Porém gestos marca-passos
pernas-borboletas
pendulam vogais
Porém o tambor do corpo
é tambor de dentro
do coração seu eco
Como explicar?
aquilo que ela
na repetição que se difere
trazia
em si:
a voz azul do concreto
o céu azul
a flor azul
a dor azul
o homem azul
que
engravatado
ela
desenhava com perfeição
no branco do seu papel