quinta-feira, 23 de julho de 2020

O dia de amanhã - diário da pandemia


Já não bebo há alguns meses. Os motivos? São diversos. Mas um há de primeira ordem: não se arriscar em bebedeiras perigosas pela rua em plena crise epidêmica. Pois bem. Ontem, depois de malhar no Aterro do Flamengo à noite, pela primeira vez após a abertura do comércio, em julho deste estranho ano de 2020, fui tomar uma Coca num bar. Sentei-me numa cadeira bem afastada, na calçada. Neste bar estava um senhor que já me ridicularizou na frente dos seus amigos por causa da minha boemia e supostas loucuras noturnas. Ele estava lá. Sorridente. Várias garrafas na mesa, sem máscara  (pelo menos a real, pois ali via a nudez escancarada da sua face), falando e gesticulando numa roda bem alegre, espontânea e fechadinha de amigos. Mais do que isso, de cúmplices, não só de concordância da mulher mais gostosa da área, mas também de atitudes que se precipitavam no abismo da insensatez. Riam e gargalhavam palmo a palmo, cangote no cangote, bafo no bafo. Entre eles, entre os centímetros de atmosfera extasiante que os separavam, perdigotos acróbatas davam piruetas pelo ar, numa ironia sutil e faceira. Podia chegar lá, junto aos seus amigos, e falar o que pensava no momento, dar-lhe uma lição de moral. Mas não. Não foi preciso. Minha saliva, mesmo que contaminada de revanche e raiva, não seria maior - agora me regogizo - e mais prudente do que um rápido olhar (de dardo certeiro) que lancei a ele. E vi então em meu alvo um sorriso desmanchando como um lenço que cai no chão. Acho que, dessa vez, o que ele pensou não pensou alto - pensou só pra si. Olhou a concha do seu coração e não quis revelar seu segredo. Amanhã, se se lembrar, com a cara amarrotada, confessaria tudo ao espelho. Mas, espera um pouco, amanhã já não pode ser tarde? Que isso, amigo! Sejamos otimistas, amanhã é dia 24 e desejo toda sorte do mundo ao nosso boêmio senhor - de tão bons conselhos.

sábado, 11 de julho de 2020

Em plena pandemia


Uma mulher com cabelos tingidos de loiro (nada contra com quem tinge o cabelo, viu?), batom escarlate e sem máscara entra na farmácia um tanto, vamos dizer... "alegre" (nada contra com quem fica "alegre", viu?) e rebolando (nada contra com quem rebola, viu?), pega um desodorante e entra na minha frente na fila, mais do que cordial, humanitariamente, me afasto, e diz, em tom "alegre" e alto, como se sua boca escarlate fosse o próprio spray do desodorante, e diz ninguém vive sem desodorante (nada contra com quem usa desodorante, viu?), ao entregar para registro e dar o dinheiro para compra, o senhor do caixa diz que falta mais 5, e ela diz como mais 5, e o senhor, 10 sai cada um só se levar três, ela, como assim? tá escrito lá, ele, desculpe-me, olha direitinho, ela, tá dizendo que não sei ler?!, ele, não, senhora, tô dizendo que esse preço é de promoção, a loira volta, aperta os olhos diante a etiqueta de preço, pega mais dois e diz, não mais como sua boca fosse um spray escarlate, mas como um jarro de viro grotesco que se espatifa no chão da cozinha, diz VOU PAGAR COM CARTÃO, CRÉDITO!, o senhor faz o registro, entrega-lhe o produto, encaminha-lhe a máquina, ela digita e... erro, digita e... erro, digita pela terceira vez e... a bolinha da máquina fica girando num silêncio galático, como numa reza para as estrelas, e... e... pronto, transação não autorizada (nada contra com quem tá sem crédito, viu?), a loira, sem máscara, com batom escarlate, boca de spray e que não vive sem desodorante, joga-os contra o senhor dizendo essa farmácia fede, e sai rebolando ao ar com suas bundas voadoras (nada contra, mas...).

sexta-feira, 3 de julho de 2020

"No final, o que tememos é nosso vazio coletivo", Rollo May

O motorista do Bronx

Na década de 50
um jornal noticiou
que um motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e rotina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
dirigiu até a Flórida.

Na década de 50
um jornal alertou
que um motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e rotina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
fugiu até a Flórida.

Na década de 50
um jornal alardeou
que o motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e retina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
se viu lá na Flórida.

E quando voltou,
ainda que preso,
já não era apenas
motorista do Bronx.
Era homem livre.