quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Adeus

Dessa vez foi diferente. Amélia perguntou para Amerildo se ele queria um chá com torradas. Adquiriram esse hábito toda vez que voltavam do cemitério. Nos últimos tempos era o grande evento que agitava a vida, que a fazia ir no espelho, colocar uma roupa e perguntar a ele se tava bom. E ajudava-o a se calçar, a pentear o cabelo, botar a camisa por de baixo das calças: - Você pensa que vai onde, homem? No bar, na esquina? Foi mana Chiquinha que morreu... Se lembra dela?...

Ele fazia que sim, sem saber se fingia alívio ou tristeza. Irmã Francisca, 82 anos; e antes, mano Gonzaga, 70; e antes ainda o irmão Totonho, 73; como meia lembrança, o meio irmão, Juracir, 69 -  dizia-se que era alcoólatra uma pena. Mães e pais; mães de mães, pais de pais, avôs, avós, avôs de avôs, avós de avós; as lembranças viviam além dos obituários das fotos, iam além das dobras e os precipícios dos álbuns de família. (Sobreviviam em lendas.) O que talvez fugisse a essa regra natural, acidente de percurso que os fazia realmente suspirar, era Rebeca, triste sobrinha Rebeca, 32 anos, acidente de carro na estrada, na Dutra. Saiu até no jornal. Mas não é bom nem lembrar disso.

Tanto da família de Amélia quanto da família dele, esses enterros se alternavam como roupas rotineiras que vestimos no nosso dia a dia para ir à rua.
Se pudessem iam a todos os velórios com roupas diferentes - novas como um ano novo a cada dia - para prestar as devidas homenagens. Mas, nos últimos tempos, tinham preferência pelos os de cá, perto de casa, do São João Batista, pois o calor do cemitério do Caju ou Inhaúma ou Jardim da Saudade os abatia severamente. Além de mais perto, havia a coincidência de os entes mais queridos, daqueles de boas lembranças e natais festivos, terem repouso ali. Não que isso os fizesse melhor do que os outros, afinal, morto é morto. Mas, nessas horas, estar perto de seu sobrinho a consolá-lo, prestar as últimas homenagens a seu irmão Gonzaga, era para Amélia um gesto não só de condolências mas de fazer da família um conjunto, uma solidariedade, uma força que, mesmo com a fragilidade e loucuras dos tempos atuais, não se desintegra. Se no passado houve alguma desavença com seu irmão, está superada. Soube criar bem seu filho, hoje médico e vereador, pai de família sobretudo, que, mesmo num momento de dor como esses, soube avaliar a importância da tia no velório, oferecendo-lhe ajuda (como quem também pede) não só em questões de saúde, clínicas, exames etc.  - Mas principalmente nas questões pertinentes a seu imóvel, disse-lhe ao pé do ouvido, oportunamente, num tom convincente e afável, íntimo e solidário, sem os excessos de sofimas e retórica, conforme a ocasião e os bons costumes exigiam dentro de toda política familiar.

Se havia incômodo nos outros cemitérios, não é por menos. Ela já contava com 80, ele, 89. Uma vez que a idade, de Amerildo e Amélia, tateiam perfumes antigos nunca abertos, e os problemas de saúde, junto com as consultas aos médicos são muitas, mas nada de grave até onde se saiba - graças a Deus! -, o problema não era mais ir a um enterro de família. Era quem enterrar.

Diante a falta de resposta para uma pergunta que sequer estava completa, Amélia abandonou a cozinha e o chá, como se renunciasse pela a primeira vez sua obrigação de esposa, como há muitos anos (desde criança talvez) haviam-lhe ensinado, e assim sentou-se ao lado dele no sofá, pegou-lhe a mão. Com o polegar, alisou-a como quem alisa a porosidade do tempo e dissesse em voz alta de pensamento: "Ei, ainda estou aqui". Um silêncio de móveis resistentes e robustos se arrastando no assoalho, de madeira boa que não se vende mais, soou pela sala. Quem iria ao enterro de quem? E depois de irmã Chiquinha? (- 82 né, Amerildo?) É possível suportarem a solidão total? É possível vencer o calendário das contas a pagar? Do que vale a ginástica, a dieta, os cremes, as vitaminas, os exames, o alface, o catéter, a reza e o terço?

Talvez durante anos perguntas são feitas para se desviarem das respostas. Na verdade, há perguntas que, mais do que perguntar, afirmam e se reduzem numa rotina tão cômoda quanto um chá, servindo de alento e lisonja para uma dor mais profunda, não uma gripe mas uma pneumonia; o que não o desclassifica. As intenções, pois, são boas, evidentemente. Mas, no fim, o chá serve somente como uma revista dissuasiva na sala de um consultório médico.

Enquanto o chá esfriava na cozinha, as paredes da sala testemunhavam o silêncio de uma confissão.

- Tenho pena da Chiquinha, coitada, acho que morreu de desgosto. Sua filha... tão nova... Ela ficou muito mal depois que ela morreu... Deve ser difícil para uma mãe... Você não acha?...

Ele concordou displicentemente, meio que querendo evitar o assunto. Mas ela deu outra investida:

- Foi através dela que nos conhecemos. Se lembra?

- Sim. Lembro - disse  com certa preguiça, mas tentando demostrar interesse.

- Naquela época Francisca tinha muitos namorados. Eu sempre fui tímida. Acho que foi por isso que ela me apresentou a você.

- É. Acho que foi assim - e tentou achar uma posição melhor no sofá.

- A coluna está doendo, amor?

- Não. Não é nada não.

- Ainda bem que não tivemos filho...

Amerildo fingiu não escutar. Se escutou não deu a devida atenção porque realmente agora as costas doíam e tentou achar uma posição melhor. Mas pouco adiantou.

- Ainda bem que não temos filhos - ela repetiu decisivamente,   como se testasse todas as possibilidades da voz  e do destino rouco, provocando-o num acerto de contas sem escapatória.

- Por que você diz isso querida? Não ajudamos o orfanato?... Não vamos lá todo santo domingo?...

- Mas e a Chiquinha?

- Sim. O que tem a Francisca.

- Imagina a dor de uma mãe perder uma filha repentinamente. Num acidente. Uma mãe, minha irmã, que a criou sozinha, trabalhando lá e cá como professora para sustentá-la. Acho que tudo que Rebeca queria era um pai que a assumisse. Por isso que acho que é melhor, se for pra sentir essa dor, é melhor não ter filhos.
Não somos felizes assim?...

A sua mão, que repousava junto ao joelho esquerdo com a mão direita dela envolvendo-a, afastou-se bruscamente buscando um ouvido ou nariz para coçar. Depois tentou alçar o controle remoto à frente, era melhor ver como andam as notícias na TV. Mas ao tentar pegá-lo, caiu. E fazendo uma curvatura com o corpo para alcançá-lo no chão sentiu a coluna, uma pontada dilacerante. "Se ao menos Rebeca estivesse aqui para ajudá-lo". É claro que "poderia ter sido um bom pai." Olhou para sua esposa que enxergava tudo e fingia não ver, para os retratos de família pendurados no silêncio das paredes. Em um deles estava Rebeca ao lado da mãe, irmã de sua mulher, de férias, ela criancinha com um vestido branco e engomado e a mãe com uma sombrinha e olhar penetrante, o mesmo olhar, o olhar de sempre, que nunca foi esquecido. O olhar que, durante anos, sorriu ironicamente no canto daquela parede, perto do abajur vermelho.

- O que o seu sobrinho vereador resolveu com a prefeitura? - disse tentando mudar de assunto, mas de maneira incisiva.

Não fosse a distração de um tapete meio fora do lugar, que ela cismara na ocasião, teria respondido mais rápido. Mas respondeu mesmo assim:

- Ele disse que as coisas estão difíceis na prefeitura e que seria melhor vendermos.
Ele mesmo compraria, e que com esse dinheiro dá para pagarmos as dívidas e que ainda sobraria pra comprarmos outra casa. Pequena, mas dá - e concluiu tateando a esperança de achar uma chave há muito perdida numa gaveta antiga: - Ainda há tempo.

Ele olhou de novo para o retrato de Francisca. E agora ela parecia estar com olhar mais triste. Mas era uma mistura de tristeza com desforra, condenação, pena. O que importa a substância do adjetivo? O que importa seu olhar naquela altura do campeonato, se ela estava ali na parede, sem nada poder fazer, sem poder ajudá-los com a casa nem com as dúvidas ou certezas de um filho ou filha, nem com o tempo que agora se acumula em sais, minérios, fungos, se acumula em odores de enxofre e amônia - até chegarem à insipidez da vida -, em solos e terras profundas? Sim. Ela era, neste momento, só um retrato amarelecido na parede de espuma e porosa devido às infiltrações, de mãos dadas com sua filhinha, que ainda nada entendia das chateações dos adultos. Isso para ficarmos num termo compreensível e didático. Ao mesmo tempo seu olhar, o olhar de Chiquinha, parcia segui-los e mudar de expressões conforme os movimentos e humores da casa. Se uma janela batia na raiva de uma mão ou do vento, se assustava; se alguém ficava doente, era todo cuidados; se o chá estava pronto parecia querer ir à cozinha servi-lo; se a saudade batia, suspirava. Mas não se deve acreditar na passividade desse olhar, como não se deve acreditar na inércia e frieza de um réptil. Não era só um olhar de papel que se camuflava entre os móveis, atrás do abajur. Havia nele muito de atitude, de responsabilidade, de interferência na vida diária do casal. Foi e ainda é um olhar que molda-lhe o destino. Talvez por isso o motivo de tanta inquietação depois dessa conversa.

Que não fora a primeira nem a segunda e que, talvez até atrás das paredes, vizinhos comentavam e sabiam mais do que eles.  Não importa se saber é senso comum, ou tese científica, o que se sabe é que tudo isso era bem diferente de imaginar, isento de qualquer hipótese e verificação, enfim, os vizinhos da Real Grandeza não perceberam o cair de tarde nesse dia, cuja cumplicidade  move um instante de silêncio. Um silêncio de navio a vapor que vai subindo mar adentro, beirando os limites da visão e da consciência. Um silêncio que guarda em si suas cismas, seus caroços, suas verdades de cristal, interiorizadas. E os dias caminharam lentamente. Aos domingos Amélia e Amarildo continuaram indo ao orfanato.  Fora isso, aguardavam a última ligação, avisando a data, a hora e o adeus.