domingo, 14 de fevereiro de 2021

Em casa


Não leve isso como um poema,

já que hoje não quis escrever.

Quis o branco do teto no quarto, 

desabafar aos dedos dos pés,

inquirir um mosquito que distrai,

contar planos aos travesseiros.

E inscrever-me na paz da solidão.


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Bukowski e a literatura


Outro dia um amigo sociólogo (detalhe que pode nos ajudar) comentou que a literatura tinha que ser objetiva. E citou Bukowski como exemplo. Ora, se o papel da literatura é ser objetiva, ela perde sua razão de ser. Pelo menos no sentido pleno do termo. Mas por quê? Porque o papel da literatura não é dar respostas prontas a problemas. Assim ela não se confunde com o discurso religioso, com a sociologia, com a filosofia, com a ciência, com a psicologia, com retórica jurídica. Ela possui, portanto, um estatuto próprio, uma singularidade. Singularidade que, claro, se interpenetra em outros saberes, mas não é nenhum deles. Não cabe ao texto literário afirmar, mas sim sugerir o que poderia ser, cuja decisão está mais nas mãos do leitor, tornando-o ativo e, de certa maneira, co-autor da obra. Prova isso o fracasso de Bentinho (ex-seminarista e advogado) de descobrir a verdade de Capitu, cabendo a suposta responsabilidade a quem lê o romance de Machado de Assis.


Teria sido mais fácil, se não era esse o propósito da afirmação, dizer que a literatura deveria ser simples. Nesse sentido podemos concordar. Tendo em vista que uma mensagem simples pode ser extremamente bem sucedida e trazer experiências sinceras, vivas e imediatas. E ainda assim, não perder todo caleidoscópio semântico tão característico ao texto literário. Cite-se como exemplo uma Adélia Prado, um "No meio do caminho", de Drummond, ou mesmo uma crônica de Rubem Braga...


Mas vamos, enfim, ao tão famoso Bukowski. Evidentemente que a crítica literária não se esgota nela mesma. Depois da crítica biográfica, sociológica, positivista e impressionista, teve seu estatuto definido com o Estruturalismo e A nova crítica, passando nos tempos atuais por desconstruções e mergulhando num jogo infindável de significacões, espelhamentos e transversalidades com outras disciplinas. E o que isso tem a ver com o citado autor? Simples. Se a obra literária autêntica revela-se através de várias significacões, quanto mais ela for rica nesse sentido mais possibilidades interpretativas se abrem. E mais uma vez: isso não se confunde com simplicidade, pois uma "pedra" no poema famoso de Drummond  pode ter vários sentidos, sendo uma construção extremamente singela. O mesmo, porém, não se pode dizer de Bukowski. Seu caráter direto e objetivo, como quer meu amigo, não nos leva a grandes voos da imaginação. A não ser a um mundo capitalista com valores deteriorados e consumistas (por isso é pop). Talvez o mais importante nesse autor seja justamente essa sátira. Essa representação do "American way of life". Nada mais que isso. Já ouvi dizer, muito bem colocado, aliás, que a literatura europeia (Proust, Camus, Sartre etc) estaria mais preocupada com questões ontológicas e a Norte Americana com questões práticas, pragmáticas. Isso bem o mostra Umberto Eco em "Apocalípticos e Integrados", onde, comparando Proust com Hemingway, diz que as emoções de "Em busca do tempo perdido" se passam de maneira mais lenta, de indas e vindas, demoram a amadurecer, aos poucos vão construindo sentimentos e sensacões, que a qualquer momento podem escapar; enquanto no livro "O velho e o mar", do outro autor, tudo se dá de uma maneira mais rápida, mais consumível, mais fugaz. E por isso mesmo mais impactante.


Mas nem tudo está perdido para Bukowski. Se não traz riqueza interpretativa, labirintos da alma, questionamentos existenciais, matafísica, pode se servir muito bem para uma análise contundente do modo de vida americano e do homem moderno em geral. Por isso, se presta sim a uma análise mais sociológica, como um Zola de outros tempos ou uma sátira religiosa de Voltaire, do que propriamente literária. Se presta mais a traçar perfis de uma sociedade, de tipos e de uma época do que enquadrá-la em riquezas de imagens e metáforas. Não há muitos rumos aonde seguir. Os personagens são planos, óbvios, as ações secas, os propósitos bem definidos. A linguagem surpreende por um coloquialismo audaz para época. Mas nada de revolucionário como um Guimarães Rosa ou Joyce. Nada que fuja muito ao senso comum. Com excessão de uma dose de aventura, rebeldia e sarcasmo, acompanhados naturalmente com algumas garrafas de whisky. E isso já diz tudo.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, Paulo Freire


Os livros e a parede


Com celular numa das mãos e no meio de uma obra, seu Jorge, 39 anos, 4a série incompleta (ou melhor, por completar junto com o reboco de seu barraco), pedreiro de profissão - e olha que diziam ser bom nisso - coçava a cabeça com um metro e tentava explicar. Mas...

- Pois então, seu Jorge. Na parede. Tá muito feio, entende?

- Sei. Mas é que...

- Tenho uma certa pressa. Tá tudo mofado. Infiltração, entende?

- Sei... É que agora...

- Meu filho tá com asma, minha mãe tá com renite. E minha esposa não para de reclamar, entende?

- Sei... Como eu ia dizendo....

- É bem atrás da estante. E tem livros. Muitos livros. Alguns raros até. É bem atrás deles. Uma mancha enorme... E preciso dos livros inteiros. Tenho que terminar meu doutorado, entende?

- Sei. Mas...

- E ando meio sem dinheiro, seu Jorge. Mas tenho que resolver isso urgentemente. Acho que vem do banheiro, do cano do banheiro. É uma mancha que caberia duas pessoas, entende?

- Sei. Olha...

- Então, seu Jorge. Você sabe como resolver isso e por quanto vai ficar?

- Sei... É o que eu tava tentando te dizer... 

- Então diga logo, seu Jorge, diga... Por quanto, bem baratinho, por favor... Por quanto sai?...

- Aí... dr. Arnaldo... não sei...

- Como não sabe?!

- É que eu tenho que ir aí estudar.