sábado, 25 de junho de 2022

 Não há vagas, de Ferreira Gullar, a história e sua vanguarda: uma leitura crítica



NÃO HÁ VAGAS


O preço do feijão 

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão


O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras


̶  porque o poema, senhores,

  está fechado:

  "não há vagas"


Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço


              O poema, senhores,

              não fede

              nem cheira


O poema “Não há vagas” encontra-se no livro Dentro da noite veloz, escrito entre 1962 e 1975. Como as próprias datas revelam, é um período de muita turbulência no Brasil: lutas sociais, colapso do populismo e a culminância da ditadura de 64. Evidentemente que esses fatos não vão passar despercebidos no livro. É uma obra, portanto, permeada de engajamento social. Mas não um engajamento bruto e com um único viés. Nele se misturam reminiscências do passado, como em “A casa”, “Uma fotografia aérea”, “Ei, Pessoal!”, “Memória”, “Praia do Caju”, “O prisioneiro”. Todavia, não só do passado, mas também do futuro, que se presentifica, ou melhor, se amálgama com o momento atual, trazendo à tona cargas afetivas guardadas na memória e no corpo. Sinal claro disso são os versos de “O prisioneiro”: “É de tarde / (com seus claros barulhos) / como há vinte em São Luís / como há vinte em Ipanema // Como amanhã / um homem livre em casa”. A essa presentificação do tempo, há também o questionamento do espaço, da co-existência em comum da humanidade, de suas dores e angústias, num mundo polarizado, mas ao mesmo tempo uno, como em “Ajuda saber que existe / em algum ponto do mundo / (na Suíça) / uma jovem de mais ou menos um metro e setenta de altura” e que “Ela esteve de pé entre plantas e flores numa dessas manhãs em que possivelmente chovia na Guanabara” ou, como nos versos de “A vida bate”, pois “Alguns viajam, vão a Nova York, a Santiago / do Chile. Outros ficam / mesmo na Rua da Alfândega, detrás / de balcões e de guichês”, mas todos buscam a “fome da vida”. Como se percebe, o olhar territorial de Gullar não pretende planar distante, apenas nas alturas, pois sua busca está no cotidiano das pessoas. Traz, assim, elementos da particularidade que se universalizam. Não é à toa que a metáfora da bomba no poema “A bomba suja” põe em evidência um conflito não só armado, mas também de todo processo de alienação do trabalho no mundo capitalista que se concretiza na falta de recursos do trabalhador, pois essa bomba “mata mais do que faca, / mais que bala de fuzil, / homem, mulher e criança / no interior do Brasil”. Portanto, o que Gullar quer é fazer uma poesia da práxis, uma luta da vida real e concreta, já que “No dicionário a palavra / é mera ideia abstrata”. Isso é o que vamos ver em “Não há vagas”.

Apesar da simplicidade do poema, ele nos coloca diante de algumas dificuldades. E quais são? Podemos começar pelo título. Não há vagas de quê e para quê? Ora, ele vai listar as coisas que não cabem no poema: o preço do arroz, o [preço] do gás, da luz, do telefone, “a sonegação / do leite / da carne / do açúcar / do pão”. Também não cabem no poema o “funcionário público” nem o “operário”. Mas na penúltima estrofe admite no poema “o homem sem estômago / a mulher de nuvens / a fruta sem preço”, já que

 

O poema, senhores,

não fede

nem cheira.


Pois bem. Vimos que Gullar pretendia fazer um poema no qual a palavra não fosse apenas “mera ideia abstrata”, em estado de dicionário, mas sim palavras que dialogassem com o contexto real, pragmático da vida, que tivessem suas funcionalidades inseridas no meio concreto do mundo. Isso nos leva a perceber que “Não há vagas” está apenas traçando uma ironia, mais ainda, um sarcasmo. Afinal, o que ele pretende é justamente o contrário disso. Assim, para melhor entendermos a poética de Gullar, podemos pedir auxílio a suas próprias palavras no seu livro Vanguarda e subdesenvolvimento: 

"A consciência concreta – também poética – das coisas é a consciência que tenho que eu tenho delas aqui, neste momento – deste aqui no espaço do mundo, deste momento no momento global da realidade, em suma, das relações históricas, em seu mais amplo sentido, que ligam cada instante da nossa existência de todo real, de todas as coisas e de todos os homens." (p. 97) 

É por esse sentido que Gullar diz que “o discurso que não carrega em seu cerne uma experiência concreta a comunicar, nada revela, não é poesia, e, a rigor, é um falso discurso”.

Feitas essas observações, cabe-nos então investigar o que seriam esses discursos não concretos, pois desse modo entenderíamos com mais clareza a ironia do poema, ou melhor, se ele tem endereço certo. 

Ora, é comum os poetas modernistas se rebelarem contra uma arte artificial, acadêmica, comportada, repleta de purismos de linguagens e que visam somente a forma perfeita, deixando em segundo plano o conteúdo, as questões sociais e a existencialidade. Isso se vê em “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado” (“Poética”, Bandeira); em “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” (Drummond, “Poema de sete faces”); e ainda, “Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro” (Oswald, “Pronominais”). Essas leituras foram feitas por Gullar e bem assimiladas pelo poeta. Portanto, um dos seus alvos é desferido contra essa “arte pela arte”, que traz o selo a artificialidade. Isso fica bem evidente em suas palavras a “arte-pela-arte é o reconhecimento da inutilidade desse protesto e a conformação com um marginalismo que agora se projeta para ‘fora da História’ e se abisma na realização de uma obra cujo sentido fundamental para o autor está e ser feita. O marginalismo torna-se maldição, não se resolve mais no plano social. O artista desiste de mudar o mundo” (p. 30). Assim:

"Para vencer a contradição arte-sociedade, o artista ‘elimina’ um dos pólos da contradição – a sociedade; a contradição, radicalizada, se põe dentro de seu próprio trabalho, entre a arte e a fonte dela que, se não é mais o homem, é a natureza como sistema abstrato de leis: a obra seria, então, fruto da probabilidade, luta contra o acaso." (p. 31)

Essas questões colocadas por Gullar se complicam mais ainda quando colocadas no descompasso da civilização brasileira em relação a Europeia, pois não é novidade que sempre copiamos as modas que vinham de lá. Trazer ideias parnasianas, simbolistas e de vanguardas que não se assentavam à nossa incipiente industrialização, quando éramos ainda um país praticamente agrário, só nos afastavam dos nossos problemas reais, apear de Gullar entender as necessidades (e até certa utilidade) dessas importações, devido a nossa carência histórica. De qualquer modo, tal questão só será posta em relevo, muito mais do que os românticos, pelos nossos modernistas, pois, segundo Gullar, a “diferença fundamental é que, como já agora o País existe muito mais – possui alguma autonomia econômica em comparação com a do século XIX.” (p. 41) Ou seja, já havia uma certa complexidade urbana e social, a qual possibilitava um certo amadurecimento autônomo da nossa realidade nacional.

Mas a crítica de Gullar também tem outro alvo. E aqui mais duro, já que sabia muito bem que as condições políticas, sociais e econômicas de amadurecimento do Brasil do século XIX não possibilitaria uma arte consciente das particularidades brasileiras, ficando (até meados do século XIX) apenas num romantismo transplantado ou num ufanismo bilaquiano formal (final do século XIX). Sua luta também é contra uma vanguarda que se perde em significações, abstrata, cujo alvo principal são as tendências mallarmenianas, no qual a arte sofrerá um efeito de “rarefração”. (p. 47)

Para explicar isso, em seu ensaio Gullar se auxilia de Umberto Eco em Obra aberta. Há em toda mensagem um certo grau de significação, ou seja, aquilo que é possível decodificar. Assim um texto com mensagens claras, objetivas e redundantes teria um grau mais fechado de significações. É o texto que comumente costumamos chamar de discurso denotativo. Estimulada por figuras de linguagens, a poesia, por sua natureza conotativa, teria uma margem mais aberta a múltiplas significações, pois é permeada de ambivalências e inexatidões. Contudo, há o perigo de essas pluralidades serem tão grandes que ela acaba perdendo seu chão, torna-se indecodificável. Pura entropia, se esfuma em nuvens abstratas, não tangenciando nenhuma realidade palpável, perdendo sua capacidade de sentir a vida. Por isso, quando se chega a esse nível, de total incompreensão, ela se despe da particularidade que a vestia e se transforma, ironicamente, em algo que também “não fede / nem cheira”.

Apesar de o movimento ser de ida e vinda, ou seja, dialético, é nesse sentido que Gullar insere os dados particulares numa universalidade, já que o universal, seguindo a esteira de Lukács, conteria todas as particularidades, num movimento essencialmente de dentro para fora, do concreto para o abstrato, invertendo o idealismo hegeliano. O universal não deixa de existir no particular, mas, principalmente, é o particular que tece o universal, num fluxo mais de ida do que de volta, que integra a constelação. Mais ainda:  são singularidades que formariam “territórios”, sentidos particulares (de um povo ou de uma região) que comporiam a universalidade. É por esse motivo que Gullar, nesse seu momento histórico, dispensa uma poesia que quer universalizar-se sem ter consciência de seu lugar no mundo, que se dilui em significações abstratas, sem se humanizar diante a realidades mais evidentes. Essa é uma poesia que não diz nada, que se refugia, sem conteúdo, num pseudo-reinado da arte pura, distante e oblíqua, que não se importa com questões que afetam o homem mais diretamente. Evidentemente que Gullar estava atento aos adventos da história do mundo - que se tornava veloz, complexo e implacável, principalmente na Europa - quando faz essas considerações de Mallarmé, mas não hesitaria em dizer: 

"Mallarmé ainda participa daquela visão idealista que Marx definiu como ‘mistificação especulativa’ e que consiste em supor que a mente humana é a fonte da realidade e que, portanto, o aprofundamento do pensamento em si mesmo, desligado das limitações concretas do mundo, conduzirá à verdade absoluta. Em consequência dessa concepção, a linguagem de Mallarmé deixa de ser um meio de apreensão da realidade exterior para se tornar a própria realidade essencializada, de tal maneira que, trabalhando a linguagem, ele se supunha trabalhar o próprio cerne do real." (p. 63)

Diante disso, o poema “Não há vagas” fala da alienação de uma arte sem significado para uma realidade concreta. Seria a mesma alienação do proletário que não se reconhece no seu trabalho, ou Estado, como ente inatingível e fantasioso, afastado das necessidades do povo. A arte abstrata (seja parnasiana, simbolista ou da vanguarda endeusada da Europa e utópica aqui) não traria identificação com o homem brasileiro. E não o particularizando, afastaria as possibilidades de integrá-lo, dialeticamente, num sistema universal, já que é destituída de sentido próprio e vivo. Mas qual a realidade que deve ser retratada na arte? A realidade da síntese dialética do instante vivido. No Brasil, a realidade da inflação, do custo da vida, do trabalho árduo do operário, do baixo salário do funcionário público. (Não excluindo, até certo grau, as conquistas técnicas-formais vindas de fora.) É por isso que só cabe, ironicamente, no poema, “o homem sem estômago / a mulher de nuvens / a fruta sem preço”. Nesse sentido o poema que foge à realidade é aquele apenas “decorativo”, sem função social, insípido, pois “não fede / nem cheira”. É a arte que se fecha em si mesma, que se afasta do social, que vive como mercadoria autônoma, sem a mediação do homem. Aliás, é Alfredo Bosi, em prefácio de antologia organizada por ele, que afirma que “a maturidade do escritor e cidadão pós-64 superou os seus horizontes ideológicos dos anos 50”, já que “trata-se de ver mais concretamente a História, julgar mais criticamente o próprio lugar do poeta na trama da sociedade, refletir mais dramaticamente a condição do homem brasileiro e do homem latino-americano sem medusar-se no fetiche abstrato, no fundo egótico, do ‘homem’ em geral”. Assim, conclui: “A superação do surrealismo juvenil atravessou um purgatório brechtiano programado (alguns poemas abertamente didáticos e o tom geral de Dentro da noite veloz) para conquistar uma nova poética na qual memória e crítica não se pejam de dar as mãos”. (BOSI, p. 10)

Mesmo sabendo que critérios de classificações são falhos e melindrosos, resta-nos dizer em que estilo de época o poema se encontra. Apesar de trazer uma linguagem econômica, cujos versos são curtos e livres, prosaica, pois até dialoga com o leitor com uso de vocativo (“ ̶  porque o poema, senhores, / está fechado: ‘não há vagas’”), linguagem dinâmica de jornal, publicitária, e o uso de clichê (“Não há vagas”), apesar de tudo isso apontar para uma sugestão pós-moderna, como diversos autores configuram (Cf. Paradoxos do Pós-modernismo, Nizia Villaça), acreditamos ser um poema ainda do último suspiro modernista. Talvez seu próprio último suspiro enquanto tentativa de fazer uma obra que possua esse vigor, sem ser vulgar, mas “salvacionista”, de luta ideológica e social, tentando afirmar uma ideia, ainda que através de mascaramentos linguísticos, totalizante e redentora. Sem contar, claro, o apelo emocional quase romântico do autor, reiterado por diversa repetições (“não cabe”). Por tudo isso, é um poeta que sabe o que quer, apesar de lançar objetos constantemente (gás, luz, telefone, sonegação, leite, carne, açúcar, pão, funcionário público, operário, carvão etc.), esses mesmo objetos não estão destituídos de valor, de significado. Se integram numa teia semântica construída pelo poeta com um propósito bem definido: desconstruir, através do sarcasmo, a ideia de um poema que plaina no ar, sem nunca ter tocado os pés no chão. Ora, as mesmas observações (exageradas ou não) que ele faz aos vanguardistas (Joyce, Pound, Kafka, Éluard e, além de outros, Mallarmé como carro chefe) em Vanguarda e subdesenvolvimento não seriam as observações que se têm hoje em dia da poética pós-moderna, onde a arte se afastou de questões sociais, perdeu sua função didática, de conscientização, enfim, de veicular um significado, uma ideia que enriqueça e dê alento e perspectiva a alma das pessoas? Não estamos em pleno de esvaziamento, de niilismo, de significantes sem significados? Não teria a arte se refugiado, esquecido do seu papel diante aos problemas da sociedade? Ou melhor, não pretende ser a arte apenas – ad aeternum – auto-problematizadora, sem vistas a soluções, esquecida num mundo imaginário e só seu? Não estaria a arte se autocontemplando como Narciso às avessas (porque não tem mais o ideal do belo) e dando às costas para o mundo, apenas se refletindo em insights, em lapsos de memórias descritivos, substantivando-a sem a aposição de nenhum adjetivo? Talvez Gullar, com esse poema, já estaria prevendo esse futuro com o que já tinha visto no passado. E até ele mesmo tenha sido vítima de sua “própria” filosofia. 

Não é novidade para quem o acompanha que Gullar passou por várias fases, ele mesmo se orgulhava disso, com falhas ou não era um ser pensante. De qualquer modo, é no livro Dentro da noite veloz que condensa a memória com os momentos duros vividos. E é neste livro também, junto com o poema “Não há vagas”, que sua didática, com alto teor de ironia, se concretiza, fazendo da poesia algo não estéril, mas de imensa utilidade para conscientização do homem oprimido da época, mas que, infelizmente, atravessa séculos.



Prof. Ivonilton G. de Souza




Bibliografia:

GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz; Poema sujo. Círculo do Livro: São Paulo, sem data.

______________ Vanguarda e subdesenvolvimento. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1978

______________ Ferreira Gullar: seleção e apresentação Alfredo Bosi. Global: São Paulo, 2004

VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno. Editora UFRJ: Rio de Janeiro, 1996