terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Esfigmomanômetros 



O

relógio

         de 

         pulso


parou.


Mas não o de sol

                 o de padre

                 o de pássaro

                 o de empresário

                 o de chá sobre a mesa

                 o de imóvel tabelião no cartório

                 o de metal da pá que a terra revolve


e devolve

(agora já sem a impulsividade atroz das horas)


o de pó

e principalmente um outro

                       sem ponteiros:


o da imensidão da paz.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Dia após dia...


De manhã, lindo, o sol se levanta,

E vem a noite, a lua no fim do dia

A contar mil merdas do sacripanta.

Ainda assim, venceremos a covardia!


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Poema escroto

 

                                   e s t u p r o

                                e s t u p r o

                             e s t u p r o

                                   e s t r u p í c i o

                                   estúpido

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Celebração final


A vida é uma grandiosa festa,

que segue do grosso intestino

ao flácido cu que, sem arrimo,

libera o que tudo corre às pernas.


A vida é uma grandiosa mesa.

Lá nobilíssimos convidados

exibem jóias e engravatados

vermes jantam o que foi beleza.


Uma grandiosa alegria é a vida.

Pois da primeira até a última lauda

contida é no tecido da fralda.


E é só então na derradeira rima

que se espatifa na laje fria,

e se vê como rosa mais alta.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Sobre a idade, a ilusão e a realidade


É romântico dizer que tem 80 com cabeça de 20, ou que a criança já é esperta como adulto. São ilusões e deslocamentos porém, que em nada ajudam na tessitura do presente e do real, alheados num mundo de nuvens - que um dia despencam como a mais terrível tempestade em plena caminhada no deserto da vida.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Pedido de oração


Com trejeito feminino mas, ao contrário do que se pensa, sem os traços da vulgaridade, o jovem com rímel, lápis na sobrancelha, cabelos longos, tingidos de loiro e escorridos numa curva chanel até a nuca entrou no púlpito (ou palco) da igreja evangélica no momento em que o Pastor convoca os fiéis para pedido de oração. E, levantando as mãos com seu terno marrom, de três botões, um tanto desgastado e curto, disse radiante:

- Glória Deus! Aleluia! Já vejo que Jesus tocou seu coração! E Ele já me cantou... Quer se libertar, né irmão?
- Quero.
- Senhor, meu Deus! Liberta esse homem! Aleluia! Diga Aleluia.
- Aleluia!
- Diga: creio em Deus todo Poderoso!
- Eu creio em Deus todo Poderoso!
- Diga: eu quero me libertar!
- Eu quero me libertar!
- Diga: eu quero me libertar do homossexualismo, eu quero a cura gay!
- Mas Pastor...
- Vamos lá, irmão! Só Jesus salva!!!
- Pastor... É que...
- Força, irmão. Deus é maior. Vamos, aceita Jesus no seu coração. E repita comigo: EU ACEITO E QUERO ME LIBERTAR!
- Ai Pastor! Quero isso não, homem de Deus... O que quero mesmo é uma oração para curar minhas hemorróidas... E me liberar para sair com meus bofes!

Pego de surpresa, a única e última arma do Pastor era sentenciar num grito que fez saltar as veias:

- Sai desse corpo, Demônio! Em nome de Jesus!

E, discretamente, gesticulou com os dedos para os obreiros - verdadeiros armários gigantes e da fé - que o levaram para os bastidores, longe das câmeras e de olhares curiosos. Mas não sem gemidos de ui ui do vaidoso jovem, cujo propósito no templo é, na mesma medida que uma verdade exterior se vale de uma mentira implícita, até hoje questionado por muitos. O que torna, salvo o grotesco embuste, a diligência - sem preceitos morais - entre a verdade e o ceticismo tarefa dificílima.

De qualquer modo, leitores, somos obrigados, infelizmente, a parar por aqui... Pois quem viu e conta esta história se abstém de qualquer julgamento se eram gemidos de dor ou satisfação.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

 Pérola


Como Ivanir tinha que emagrecer por recomendações do cardiologista, sua esposa de muitos anos, sentada no sofá e lendo o bestseller de 1 milhão de exemplares vendidos "Cristais, mística e intuição feminina", olha por cima dos óculos de meia taça para seu marido e diz numa conclusão mágica:


- Posso te dizer uma coisa?

- O quê?

- Não perde a barriga não.

- Por quê?

- Porque quem perde a barriga fica parecendo bicha. Macho mesmo tem barriga.

- ...


Em meio a isso tudo, foi assim que, depois de bater a sola do pé no chão, cruzar e descruzar os braços, coçar o queixo e resmungar que só tem merda na televisão, Ivanir comunica - com um certo cansaço na voz - que vai comprar uns cigarros no botequim. E ela arremata com mais energia e determinação:


- Mas também não pode se entupir de cigarros e chegar bêbado em casa.


Ele desiste de tudo e vai dormir. Ou tenta. O coração palpitava...

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Dobradiças


Tenho muitos colegas 

alguns de 20

outros de 18

e outros até de 16

(não importa,

a geração é outra

e a janela é aberta). 

E muitos já pensam

tal sóbrios quarentões:

sem batuques na rua

sem violas e festas

sem luas indiscretas

nem bosques violados.

Uma pena, 

                     talvez.


Já outros... de 50,

48 ou, quem sabe, 46 

(não importa,

a geração é a mesma

e a janela se fecha).

Estes, amigos,

nem parecem

ter completado 

ao menos seus 16. 

Pois, de tanto tocar, 

não se tocam ainda

que a vida passou

tal vez.

              Uma pena!

sábado, 5 de setembro de 2020

No tecido da noite


Foi nesse dia nu de areia fina

que bem soube ele que era sua vez:

da lua branca, esbelta, alta e cheia

na bracura imóvel da sua tez.


Nesse dia soube também amar

como o mar ama e lascivo quer

a virgindade secreta das rochas

e a voz inquietante de cada grão.


Porém... Diz, meu bem, como amar preso?

Entre os ossos dos tijolos da casa,

através do intransponível peso

do vidro surdo e opaco da janela?


Ama-se sem se ver realidade bela?

Foi por isso que assim resolveu

- não como quem simplesmente resolve

comparar poesias ao mistério do eu.


Foi por bem que com coragem resolveu, 

como quem se resolve livre voar

nas asas noturnas e etéreas do ar,

como mariposa rumo à luz no breu.


Foi então, no ofuscado luzir do amor, 

ao limite do penhasco e seu vão.

Não se jogar. Pois isso, senhor,

é coisa de jovem com depressão.


Mas iria lá por bem fotografar

a foto nunca vista, linda e bela,

do céu na lua, da lua lá no mar:

gotinhas de luz em escura tela.


Mas na liquidez sórdida da noite

terrivelmente e crua sombra surge:

- Passa bem cá, rápido e pra já

a carteira, relógio e seu celular.


Pois bem. Carteira o jovem não tinha.

Se a tinha, era de pouquíssima valia,

nem mesmo um centavo a mais sequer

do alto valor de sua violada da vida.


Do rapaz (cujo único desejo lá

era à bela namorada postar

a agulha do tempo em redes sociais)

ficou o pesar em páginas de jornais.


E o sonho do selfie com o céu

veio apenas como mais um grão

entre as pegadas cruas da vida.

E a pálida areia da lua jaz em paz


tecendo o frio da noite no chão.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Nadar


Quem nada tudo

                       não

                       morre

                       na praia


Claro,

ao menos pega um sol

que logo

                nos afaga


                vivo

                        num sonho

                        morno alado

                        que ao fim

e ao nada

                   e ao solo

                   assim se espraia

 


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Refluir


O poeta está sempre in-paz:

acende sombras atrás do oeste.

Pois já mal a palavra amanhece

iniludivelmente não quer mais.



quinta-feira, 23 de julho de 2020

O dia de amanhã - diário da pandemia


Já não bebo há alguns meses. Os motivos? São diversos. Mas um há de primeira ordem: não se arriscar em bebedeiras perigosas pela rua em plena crise epidêmica. Pois bem. Ontem, depois de malhar no Aterro do Flamengo à noite, pela primeira vez após a abertura do comércio, em julho deste estranho ano de 2020, fui tomar uma Coca num bar. Sentei-me numa cadeira bem afastada, na calçada. Neste bar estava um senhor que já me ridicularizou na frente dos seus amigos por causa da minha boemia e supostas loucuras noturnas. Ele estava lá. Sorridente. Várias garrafas na mesa, sem máscara  (pelo menos a real, pois ali via a nudez escancarada da sua face), falando e gesticulando numa roda bem alegre, espontânea e fechadinha de amigos. Mais do que isso, de cúmplices, não só de concordância da mulher mais gostosa da área, mas também de atitudes que se precipitavam no abismo da insensatez. Riam e gargalhavam palmo a palmo, cangote no cangote, bafo no bafo. Entre eles, entre os centímetros de atmosfera extasiante que os separavam, perdigotos acróbatas davam piruetas pelo ar, numa ironia sutil e faceira. Podia chegar lá, junto aos seus amigos, e falar o que pensava no momento, dar-lhe uma lição de moral. Mas não. Não foi preciso. Minha saliva, mesmo que contaminada de revanche e raiva, não seria maior - agora me regogizo - e mais prudente do que um rápido olhar (de dardo certeiro) que lancei a ele. E vi então em meu alvo um sorriso desmanchando como um lenço que cai no chão. Acho que, dessa vez, o que ele pensou não pensou alto - pensou só pra si. Olhou a concha do seu coração e não quis revelar seu segredo. Amanhã, se se lembrar, com a cara amarrotada, confessaria tudo ao espelho. Mas, espera um pouco, amanhã já não pode ser tarde? Que isso, amigo! Sejamos otimistas, amanhã é dia 24 e desejo toda sorte do mundo ao nosso boêmio senhor - de tão bons conselhos.

sábado, 11 de julho de 2020

Em plena pandemia


Uma mulher com cabelos tingidos de loiro (nada contra com quem tinge o cabelo, viu?), batom escarlate e sem máscara entra na farmácia um tanto, vamos dizer... "alegre" (nada contra com quem fica "alegre", viu?) e rebolando (nada contra com quem rebola, viu?), pega um desodorante e entra na minha frente na fila, mais do que cordial, humanitariamente, me afasto, e diz, em tom "alegre" e alto, como se sua boca escarlate fosse o próprio spray do desodorante, e diz ninguém vive sem desodorante (nada contra com quem usa desodorante, viu?), ao entregar para registro e dar o dinheiro para compra, o senhor do caixa diz que falta mais 5, e ela diz como mais 5, e o senhor, 10 sai cada um só se levar três, ela, como assim? tá escrito lá, ele, desculpe-me, olha direitinho, ela, tá dizendo que não sei ler?!, ele, não, senhora, tô dizendo que esse preço é de promoção, a loira volta, aperta os olhos diante a etiqueta de preço, pega mais dois e diz, não mais como sua boca fosse um spray escarlate, mas como um jarro de viro grotesco que se espatifa no chão da cozinha, diz VOU PAGAR COM CARTÃO, CRÉDITO!, o senhor faz o registro, entrega-lhe o produto, encaminha-lhe a máquina, ela digita e... erro, digita e... erro, digita pela terceira vez e... a bolinha da máquina fica girando num silêncio galático, como numa reza para as estrelas, e... e... pronto, transação não autorizada (nada contra com quem tá sem crédito, viu?), a loira, sem máscara, com batom escarlate, boca de spray e que não vive sem desodorante, joga-os contra o senhor dizendo essa farmácia fede, e sai rebolando ao ar com suas bundas voadoras (nada contra, mas...).

sexta-feira, 3 de julho de 2020

"No final, o que tememos é nosso vazio coletivo", Rollo May

O motorista do Bronx

Na década de 50
um jornal noticiou
que um motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e rotina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
dirigiu até a Flórida.

Na década de 50
um jornal alertou
que um motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e rotina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
fugiu até a Flórida.

Na década de 50
um jornal alardeou
que o motorista
de ônibus no Bronx,
cuja rota e retina
não ultrapassava
alguns quarteirões,
se viu lá na Flórida.

E quando voltou,
ainda que preso,
já não era apenas
motorista do Bronx.
Era homem livre.

sábado, 20 de junho de 2020

A consulta


Saio de casa.
As paredes
bem verdes.
Os tijolos
inóspitos.
As vozes
dos garfos
amassados
por dentaduras
vorazes
nos pratos
já vazios.
Absurdamente
insatisfeitos!
Com fome
não se sabe
de quê
de quem
por quê.
No noticiário
um crime e
mais um time
de futebol
campeão.
Um ladrão
injustiçado
e pobre.
O pop star
pedófilo
- notícia do dia.
E o sofismo
oco e inócuo
do respeitável
político.

Saio de casa.
O grito
estridente
do vizinho.
As ordens.
As queixas.
As contas
a pagar.
A sujeira
da casa
dos móveis
do vidro
da janela
do quarto
do armário
do ladrilho
do colchão
da louça
na cozinha.
- Quem vai
lavá-la, irmão?!

Saio de casa.
Sem rumo
Sem rosto
Sem posto
Sem ter onde
nem saliva
pra cuspir.
Sigo por ali
e por aqui,
e acabo
num campo
aberto com
uns arbustos
e gramado.
Caio no céu
e grito ao
infinitíssimo
das estrelas:
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAI...!!!!

Talvez uma ou outra ave
estranharam o incidente.
Um pequeno agito se fez
de asas e galhos e pios
como se, em sussurro,
concluíssem numa só voz:
Acalme-se,  bom rapaz.
Depois da fagulha breve,
se segue a eterna a paz.

E o que dizem as estrelas?...
A estrelas, meu caro amigo,
nada dizem. Não há comoção.
São apenas charutos nos dedos
do fundo escuro do consultório.

Volto para casa.
E a casa já dorme.
Todos estão bem.
(Amanhã é quarta,
e terei mais sorte.)
Boa noite e amém.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O ser e o nada


Prefiro pequenas dúvidas
a mil verdades estúpidas

Prefiro andar descalço
a usar botas de cadafalso

Prefiro o cheiro do capim
a perfumarias de jasmim

Prefiro o mistério do grilo
a me grilar sozinho, contigo

Prefiro as asas da borboleta
a seta mortal da certeza

Prefiro a palavra alada
a velha dicção engasgada

com a bunda sentada no sofá.

sábado, 13 de junho de 2020

Romântico

Seu tolo,
que recite amor
ou incite poesia,
nada vai mudar
no pós-pandemia.

Porque o homem
do reino do cu,
rico, roto e morto,
é assassino de si,
e assina sua sina
de objeto escroto:
carniça de urubu.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Barroco: Gregório de Matos


O Barroco brasileiro dentro da literatura (em um outro texto falaremos das artes plásticas, que aliás desencadeou essa expressão estética) surgiu neste contexto: os ideais clássicos e os ideais da Igreja. Num conflito entre a razão e a espiritualidade, entre a terra e o céu; entre os prazeres da carne e a sublimação do espírito. Todos esses conflitos vão ser transfigurados em figuras de linguagem nos poemas. Desse modo, o estilo da escola barroca é cheio de antíteses, paradoxos, inversões sintáticas, preciosismos de linguagens  (rebuscamento), figuras sonoras, metonímias, colorações e sonoridades. É um estilo que não é claro e linear, pois traz toda a agonia do tempo, da salvação e do pecado. Muito se discutiu se o Barroco não era um Classicismo. Mas, devido a esse estilo conflitante - apesar de ainda trazer aspectos do Classicismo -, chegou-se a conclusão de que estávamos diante de outra escola, de um estilo de época não tão límpido,  sereno e claro  quanto do mundo clássico.


Um de seus principais escritores foi Gregório de Matos Guerra, apelidado de Boca de Inferno. Isso porque além das poesias amorosas e religiosas, cultuava também a poesia satírica, colocando na mira comerciantes desonestos, nobres e até os negros e mulatos da Bahia, cidade onde nasceu em 1633, seguindo para Portugal onde se formou em Direito. Mas volta para o Brasil. Retorna em 1680 de novo a Portugal, mas arruma problemas e vem para o Brasil e se casa. Mas não satisfeito colhe muitos desafetos, talvez devido às suas sátiras e é obrigado a se exilar em Angola. No final da vida retorna a Recife em 1695. Morre um ano depois. Com isso fica claro o porquê do apelido. Ele não poupava ninguém, mas por outro lado, nas suas poesias religiosas, parecia se redimir disso tudo e sentia o peso do poder punitivo de Deus. O que, em contrapartida, não o impedia de descer ao mundo do sensualismo amoroso em algumas de suas belas poesias. Assim, de certa forma, sua personalidade se coaduna com o espírito inquieto do tempo, tendo ele levado uma vida mais intensa, impetuosa e talvez até ser mais debochado que outros poetas.

Mas antes desse lado satírico, vamos ver mais de perto uma de suas poesias que traz um refinamento mais filosófico e conceitual (há textos barrocos que são conceptistas, ou seja, trabalha com conceitos). Ei-la:

À inconstância das cousas do Mundo


Nasce o Sol e não dura mais que um dia:
Depois da luz, se segue a noite escura;
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas e alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto, da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na luz falta a firmeza;
Na formosura não se dê constância:
E na alegria sinta-se a tristeza.

Começa o mundo, enfim, pela ignorância;
E tem qualquer dos bens por natureza,
A firmeza somente na inconstância.


Vamos agora colocar uma lupa e analisar mais de perto este belíssimo texto. Talvez vocês já tenham escutado o termo "Carpe Diem", que literalmente significa "curta o dia" em latim clássico . Há vários jovens que hoje em dia andam com essas camisas pela cidade. Traz na acepção moderna um sentido de otimismo, de alegria de viver intensamente o dia, de prazer. Mas nem sempre foi assim. Esse termo na Roma antiga, por volta do século III, tinha um sentido negativo. O real sentido de se viver o dia era porque a vida é breve, passa rápido e logo a morte estará batendo a nossas portas. Curta o momento, porque não pode haver o amanhã, o que, evidentemente, pode trazer muita angústia. É nesse sentido que se enquadra o soneto de Gregório, já que "Nasce o Sol e não dura mais que um dia". Sol aí está representando a passagem rápida das coisas, da vida. E acaba se questionando, melancolicamente, sobre a luz, que é tão formosa, "por que não dura?/ Como a beleza assim se transfigura?". Ou seja, como uma coisa pode mudar tão rapidamente de estado? É, sem dúvida, uma pergunta existencial. O que nos leva a refletir sobre um pensador grego, Heráclito, que dizia que "Ninguém entra no mesmo rio duas vezes". Não entra porque tudo muda, tudo é devir, o rio muda e você muda a todo instante. Nada é eterno. É nesse sentido que esta poesia é conceptistas, conceitual, pois trabalha com a ideia do passar do tempo, pois temos "A firmeza somente na inconstância".

Inconstância essa que está bem representada nas suas figuras de linguagem, nas suas antíteses e paradoxos. Explicando. Antítese é a figura de linguagem que realça as oposições de ideias (tese e anti-tese). Assim temos no decorrer do poema várias delas, bem ao gosto Barroco: Luz / noite escura; tristezas / alegrias; acaba o Sol / nascia. Esses pares opositivos que vão sublinhar o gosto barroco, o desequilíbrio, a tensão existencial. E o poeta arremata com um paradoxo (figura de linguagem que coloca dois opostos num mesmo ser), como se disséssemos que a neve é fria e quente ao mesmo tempo. O paradoxo está sempre a desafiar a lógica e nos imputar um absurdo insolúvel, deixando-nos somente com o fluir da imaginação numa tangente intocável. Veja o último verso: "A firmeza somente na inconstância". Como pode algo ser firme, mas inconstante? Na poesia, fruto da imaginação, tudo se torna possível, pois nos leva aos caminhos mais insondáveis da alma. E se é uma alma barroca, o labirinto é mais cheio de mistérios e detalhes.


Passando para outro poema de Gregório de Matos, vamos ver que ele também trazia um sentimento de culpa. Como se fosse a culpa de Adão de não ter respeitado às regras de Deus. Culpa que carrega durante sua vida um tanto depravada, como nos indica suas várias deportações (ser expulso da Europa e do Brasil). Aliás, essa culpa não é só dele, mas do espírito da época, quando a Santa  Inquisição da Igreja Católica perseguia os hereges (pecadores, homossexuais, quem era de outras religiões, bruxas, cientistas etc.). Mas é em Gregório e sua vida que isso melhor se exemplifica. Ele pede clemência ao Senhor diante de tanto desvairios, como se vê:

Soneto a Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história.

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Recobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


Aqui está presente também as antíteses "Porque quanto mais tenho DELINQUIDO / Vos tem a PERDOAR mais empenhado".  Há nesses versos também uma inversão sintática, indicando uma sintaxe tortuosa, pois na ordem exata seria: Vos tem mais empenhado a perdoar. Como se vê a própria estrutura do soneto traz essa marca de sofrimento, de falta de clareza, com um vocabulário rebuscado e difícil, apesar de estarmos vendo um soneto de um português antigo. Por fim, as alusões a Bíblia ("Como afirmamos na sacra história") são comuns nos textos barrocos,  devido a um recrudescimento da Igreja. O que fica ainda de clássico (pois, como vimos o Barroco mantém muita coisa do Classicismo) é a forma do soneto, com dez sílabas métricas neste caso. Lembrando que o soneto é uma forma que vem da Itália, muito usada pelo poeta clássico Petrarca. Há, neste tipo de composição, 14 versos divididos em 4 estrofes (dois quartetos e dois tercetos finais). Essa forma clássica no Barroco é acompanhada com outra temática (religiosa, apesar de haver também deuses pagãos) e com uma linguagem mais truncada, burilada, artificiosa, com antíteses e inversões, como vimos.


Bem. Mas nem tudo em Gregório é só tristeza e sofrimento. Talvez ainda aqui haja esses aspectos, mas ele consegue, através da ironia, da piada, da sátira, contornar um imediato pessimismo e criar o grotesco e o riso. Enfim, a crítica social. Antes de qualquer explicação,  vamos ver um dessas suas peças satíricas primeiro.

Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro!

Em cada porta um bem freqüente olheiro
Que a vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados:
Todos os que não furtam, muito pobres:
 Eis aqui a cidade da Bahia.


Então? O que acharam? Em alguma parte não faz nos lembrar nossos dias?  Não há algo de universal, mesmo que esteja datado o poema naqueles seiscentos da Bahia? Não fala sobre a ambição dos poderosos? E não há sempre, em todas as épocas quem ambiciona por poder e fortuna? Por isso, talvez, o poema tenha esse caráter universal, de estar em todos os lugares, mesmo que seja restrito a um lugar só. A Bahia de sua época. Explorada pela corte portuguesa. É bom lembrar que nessa época Portugal havia perdido o monopólio de comércio com as Índias Orientais. O açucar, cultivado no nordeste brasileiro, sofria concorrência das colônias inglesas. Então a corte portuguesa começou a sobretaxar, cobrar impostos dos colonos. E a crise se instalou no Brasil. É bem provavel que muitas dessas circunstâncias tenham impelido a sátira do nosso poeta. Sátira repleta de malidicência:

"A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro!"

Mas Gregório não tem só como alvo os governantes. Vivíamos numa época de escravidão. E ser mulato (mistura de português com negro) era sinal de baixa classe social e assim deveria se portar, por isso vai criticar:

"Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia."

E termina dizendo que há muita "usura nos mercados", ou seja, ganha-se com juros, aumento dos preços e que quem não rouba continua pobre na sua cidade natal:

"Estupendas usuras nos mercados:
Todos os que não furtam, muito pobres:
 Eis aqui a cidade da Bahia."

Esses e outros deboches de Gregório lhe custaram caro, pois teve que ser deportado de Portugal e do Brasil. Mas, no final das contas, todos ficaram no esquecimento e sua poesia atravessou séculos. Aliás, suas sátiras, que retratam o cotidiano e as mazelas das cidades, continuam muito vivas até hoje.


Por fim, veremos sua lírica amorosa. O que nos reporta ao seu lado material, carnal, sensual, erótico até. Muitas vezes nem poupava palavrões. Mas essa sensualidade, para muitos pesquisadores, aliada às observações da Bahia em suas sátiras (verdadeiras crônicas do seu tempo), já delineiam uma poesia que se afasta, gradativamente de Portugal, desenhando, ainda que de forma incipiente, uma cultura nacional, Brasileira.  Pondo em evidência as características do nosso povo, da nossa cultura e costumes.

De qualquer forma, é um erotismo que se tensiona com os compromissos da fé, que gera conflito e amarguras, que ora se expõe e ora se arrepende. É uma enfervecência que o leva à vida dos prazeres mas ao mesmo tempo à degradação moral. Enfim:

À mesma D. Ângela

Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, da rama florescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.


De imediato percebemos o trocadilho com o nome Angélica e Anjo. Mas o que está por trás disso? Representam as duas faces da mesma moeda: a espiritualidade e a tentação da carne, pois:

"Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda."

Desse modo, o par Angélica/Anjo representa um paradoxo. Ao mesmo tempo que inspira a pureza ("Anjo no nome"), inspira sensualidade (Angélica na cara"). É um Anjo dos "altares", como diz no nono verso, que está a altura da beleza espiritual, mas também física.

Para fechar o comentário, lembramos que Platão colocava o conhecimento em duas esferas: o mundo das ideias (que seria a essência, a razão, o verdadeiro, a perfeição, o eterno, por isso, dê certo modo, espiritual) e o mundo da cópia das ideias, (que seria o mundo que vemos com os sentidos, enganoso, onde tudo muda, nada é eterno; tudo é imperfeição, cópia). Há ainda também o mundo da representação da cópia, da arte (seria a cópia da cópia, por isso seria mais imperfeito do que o mundo sensível, dos sentidos). Todos esses conceitos Gregório conhecia, pois era doutor e era assunto muito estudado na época. Assim não me arriscaria a dizer que Anjo seria o mundo das idéias, sublime; Angélica, o mundo dos sentidos imediatos (ver, tocar, ouvir) e sua poesia, sendo cópia da cópia (mera representação) tentaria chegar ao supremo belo - ambição de qualquer poeta - utilizando-se do par Anjo/Angélica com ideal de beleza, seja espiritual (em forma de ideia, conteúdo, significado) ou esteticamente (em forma de estrutura, plasticidade, significante). Enfim, essa dualidade, usada pelo poeta fica mais evidente nestes primeiros versos de um outro soneto lírico, que dá continuidade ao seu êxtase a Ângela:


Retrata o autor à D. Ângela

Debuxo singular, bela pintura,
Adonde a Arte hoje imita a Natureza,
A quem emprestou cores a Beleza,
A quem infundiu alma a Formosura.
(...)

De maneira mais explícita aqui, a Arte entra como fator surpresa e fundamental. Pois a Arte é capaz de dar alma, de vivificar, de emprestar cores, num movimento à Natureza, e também, junto com a Formosura, de ceder alma, conforme  o verso "A quem infundiu alma a Formosura". Em ordem direta: a Formosura infundiu alma... a Natureza".  Assim, a arte, que seria a cópia da Natureza (que por sua vez é cópia do belo eterno, do mundo ideal) tem seu protagonismo como criadora e reveladora autêntica, almejando a perfeição da forma no retato que faz de Ângela, invertendo todo pensamento platônico. E, consequentemente, no final do poema, nos colocar, ludicamente, num jogo de espelhos, num duelo entre a verdade e a aparência:

"Pois, ou bem sem engano, ou bem fingida;
No rigor da verdade, estás pintada,
No rigor da aparência, estás com vida."

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Saudades

Quando de mim sentir falta
e eu estiver longe, bem longe...
abrace uma árvore
como se nela sentisse
as veias do meu corpo.
Siga suas raízes
como se nelas apanhasse
as linhas da minha mão.
Assopre suas folhas
como se nelas apaziguasse
o que de rebelde há em meus cabelos.

Mas se o tronco é enorme
e não conseguir abraçá-lo,
se as raízes espetam profundas
e não der para segui-las,
se o inverno estala a seco
e toda verde rebelião acabou,
me procure na estrela mais distante,
que sempre ao vê-la, nesse canto,
estarei, sim, piscando os olhos.
Longe, mas bem pertinho de você.

sábado, 18 de abril de 2020


A Pedro Menezes

Os ósculos

Agora tenho esses óculos pra ver
de mais perto todas coisas que não via.
Sim, óculos de senhor, e de respeito.
Para olhar aquilo que não se lê ainda.

Vi, por exemplo, outro dia, na página
de um livro de gramática, uma formiga
perdida e só na brancura das palavras.
Aí entendi a gramática das formigas.

Pois, se perder no mundo das formigas,
e não poucas felizmente se perdem,
é ato infinitamente mais gigantesco
do que a mínima palavra de ordem.

A geografia das cores no mapa-mundi,
dentro de esquadros tão bem regulados,
ficou nítida quando as lentes viram
diluídos líquidos nas cores das mãos

das crianças. Que pintam sinceros clichês
de mães "sensatas" nos varais das escolas
de papéis. Cores que vazam pelas saias
das ruas e ao limite azul-mar de paetês.

Ajeitando as lentes, mais de perto vi a pedra,
e que a pedra dava alimento, água e ar
a um delicado veludo azul e verde
e que o azul-verde a protegia com manto.

Como um manto sobre um velho febril,
como um manto que veste toda dor
de um homem de bigodes sérios num bar,
manto que veste a pedra de água e terra.

Levantei-os para captar o melhor detalhe
da geometria da erva no cego concreto
armado de calibres letais. Mas que:
nem tão metais nem durões invencíveis.

Na verdade, o que se erguia ali era terra
sobreposta à terra sobreposta. Até o céu,
perfurando a paz estoica e leve das nuvens...
Mas de farpa, a erva-nó-arame virou flor.

Vi gigante árvore e nomeei-a de Gigante
por não ter outro que cabia melhor.
Mas, nos tendões de seus pés, vi capim.
E perto, aquele pequeno era mais gigante

que a Gigante que já não cabia em mim.
Aos pés do capim vi minúsculo mosquito.
Mas o minúsculo ia de dentro pra fora.
E crescia mais que o capim e a Gigante.

Foi assim que, com meus já velhos óculos,
vi, aos pés bem pequeninos do mosquito,
um imenso silêncio que existe e não se vê,
que nos cega por excesso ou falta de sol.

Tirei os óculos. Vi-me no seu refletir.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Quarentena

Já arranquei todos pelos do peito.
Agora cutuco em fundo lugar.
(- Mas, cara, não é bem aquilo, hein?)
E com a estupidez desse feito
conto as dores do tempo nu e cá.

sexta-feira, 27 de março de 2020

A Jéssany dos Anjos Lira

Carta para uma aluna


Suas dúvidas,
suas incertezas,
seus receios
                      do desconhecido.
Seu jeito calado
(e tímido)
de questionar o mundo.
Tudo isso
e mais ainda aquilo
que não se disse
mas ainda persiste
num bocejo de ostras e pérolas
num mar
                 profundo
amadureceu
e evoluiu.
Se trans
               bordou.
Como o calor do sol
que transborda os lares em pleno meio dia.
Como o plenilúnio das marés
que ultrapassam as                das cidades
                                    margens
e enchem nossos corações de desejos e nostalgias.

Amadureceu.
Tomou sua forma na Natureza,
tal como as cores
definem as formas
                                  das asas
                                  das borboletas
ao saírem das crisálidas
já feitas: plenas e abertas.

Mas tudo isso não dissuade de vez
(como um branco sonolento no varal
sob o sol desértico do pátio
não dissuade todo avesso da quietude).
Não dissuade das dúvidas o ziguezague
dos destinos incontáveis e cegos dos ventos.
E talvez - quem sabe? - haja uma            de dados
                                                            chuva
de quatro lados com cinco faces escancaradas de dentes
e seis-número-algum.

O voltear,
o ir e vir,
a reticência do melhor campo,
da flor com o "mais melhor'
néctar,
o deixar-se escorregar na gangorra da brisa,
ou na impetuosidade do vendaval.
O descansar em paz...
Fingindo-se de morto sobre uma pedra
(o ser pedra para não ser presa),
                                      o rabiscar, o rasurar, o rodopiar...
O ar num balé de riscos
                            de risos.
O ar branco do papel-existência (!)

A cada etapa da vida
as certezas são feitas de dúvidas diferentes.


Por isso, nunca pare de tê-las;
nunca pare de se questionar.
De se imaginavoar pelos

ares
com as asas da poesia, principalmente.
Só assim, pois, enxergamos
a verdade diária
                              das borboletas
que nascem dentro de nós.

     

domingo, 19 de janeiro de 2020

Céu


Dia após dia,
as ferrugens dos portões
dos finais de tardes e das casas
recolhem seus céus
em aposentos
de sussurros brancos
e de porões.

Até escorregarem
na realidade única
e azul da manhã.