sábado, 11 de agosto de 2018

A  Maria Angélica

Substantia

    − Silêncio, por favor!

    Gritou o professor já num desespero total. Mas de nada adiantava. Já atrás dois alunos brincavam ou brigavam em pé com golpes. Do lado direito pra esquerda cruzou um supersônico feito de papel no ar. A retaliação, da direita, era uma artilharia de Tomahowks  de bolinha de papel, o coitado do faxineiro limpava depois. Em outro canto, garotas sentadas nas mesas tiravam selfies, se arrumavam com cabelos e batons cada qual no seu estilo e diziam péra aí. Tudo isso ritmado por batuques de funk e MCs no meio da sala de aula. Era essa a funesta vida do professor Arinaldo.

    Arinaldo, então, voltava-se para o quadro e fingia não escutar, não se aborrecer mais. Vou lançar a matéria e isso basta!- remoia. E escrevia  escrevia. Por vezes o fingimento era sincero como pedra autêntica. E o valor era tanto, que se esterilizava numa aula surda e muda. Pra dentro. Na solidão de suas palavras desenhava no quadro. No diálogo concebível só entre eles dois. Num monólogo. Num tudo com sem, apagava um trecho que acabara de escrever. Assim fica melhor, pensava. Não, assim. Resolvia desresolvendo uma, duas, três, quatro vezes...  até achar a melhor colocação do termo. Uma exatidão inexata, que dilui, que tenta o fracasso. (Ih... a lá... o professor não sabe escrever). Foi esse parêntesis de deboche, crudelíssimo – para cismar antigamente, careta – foi esse parêntesis sem conclusão, enfático, decisivo! Que o fez esquecer todas as regras gramaticais, ortográficas, de sintaxe e estilo. Que troca dois esses por cecidilha e xis por ge e por zê, friccionando fricativas num só zunido de abelha e ouvido. Que o fez arranhar o giz no quadro com o mesmo barulho que se arranha um prego de vidro num espelho de metal. Rispidamente. Até trincá-lo. Até pendurar a palavra, feri-la num estampido seco e amargo como se ela batesse na agulha de um revólver, como ela fosse chicotear a batida de asas de um pombo assustado, num beco sem saída, sem céu onde pudesse descansar sem ninguém falar mal. E observar de lá de cima como são apressados os homens aqui em baixo, afoitos, como são afoitos. Como são crianças.

   Mas de todos os barulhos ensurdecedores, de todos os barulhos já embaralhados, números e naipes aleatórios, compactados, misturados, entrelaçados como dedos que se contorcem, como dedos que não são hábeis com as cartas,  mas que, por isso, se misturam mais ainda e mais e mais e enrolam o fiapo da barba, de tanto arranhar e esfolam, e alisam, afastam chumaços de cabelos como um pente, como um garfo ou um tridente, boquiaberto e banguela. Velho e tenebroso. Cansado.

   De todos  um se destacou. Foi um assobio. Alto e estridente. E o professor se assustou tanto que rabiscou o quadro. E imediatamente todo seu texto apagou-se, todo seu monólogo com as palavras se esvaiu. Caiu em si. Olhou pra turma e energicamente disse:

   − Quem foi?!

   E como a turma não lhe desse atenção, berrou:

   − Quero saber quem foi?!

   Todos se silenciaram. Ele virou pro quadro e continuou a escrever. Novamente veio o assovio, que agora soava como uma sirene de ambulância, ia e vinha, ia e vinha, ia e vinha grave e agudo, alto e baixo, do lado esquerdo e direito, direito e esquerdo. Antes fosse um canto de seriema, mas era um som manicomial, ensurdecedor. Virou pra turma de novo. E pairou o silêncio novamente. Quem foi!? Quem foi?! E todos riam. Riam pra dentro. Riam com as mãos na boca, como se comessem o riso, como se o riso paralisasse numa maquiagem cristalizada, interrompida, fotografada num sarcasmo malévolo.

   O professor virou pro quadro então de novo, mas dessa vez pronto para rapidamente voltar seu rosto pra turma.  Pro bando de palhaços! − resmungava entre os dentes. Pronto para pegar no bote, num assalto inesperado, fulminante.

   − Agora eu vi! – e apontou para o Paulinho Vilela..
   − Eu, professor?... O que que eu fiz?...
   − Não se faça de desentendido. É você que está assoviando – e arregalou os olhos, que pareciam saltar.
   − Eu não fiz nada. Foi ele!   e apontou para um colega, que logo apontou pra outro que por sua vez apontou pra outro e outro e mais outro.

   Não foi à toa que o professor acusou Paulinho. Paulinho já havia colado chicletes no cabelo de uma garota, já havia posto uma mochila de um colega no ventilador, já havia levantado a saia de uma professora e fora pego vendo mulheres nuas no celular. Não, não fora à toa.  E vinha sua mãe dizer que seu filho não fazia nada disso, que era um bom filho.

   − Eu sei, minha senhora, é que...
   − Não. O senhor não sabe.
   − Mas ele...
   − Ele é um ótimo rapaz. Você é que não sabe ensinar direito. Acha que eu não sei o dia que você trocou “s” por “z”, o dia que você soltou um palavrão, o dia que você...
   − Eu sei minha senhora... quer dizer... esses lapsos....
   − O senhor estudou, por acaso?!
   − Estudei, claro. E na...
   − Não parece!
   − Eu tenho até...
   − Tem é falta de educação, como pode?
   − Até, até Mestrado. E isso é muito...
   − É muita cara de pau sua.
   − É... muito difícil...
   − Difícil é ter que deixar meu menino  aqui contigo. Presta atenção, hein?!
   − Eu...
   − Sim. O senhor. Se não vou denunciar você ao Ministério da Educação. Entendeu?!
   − Eu sei, eu sei.

   O professor bufou. E seria muita redundância, seria um pleonasmo, ou qualquer palavras dessas que se queira inventar a essa altura do campeonato, porque bufar é bufar e nada mais. Encheu-se como um sapo no brejo, um sapo acuado, com medo, bufar era a única defesa, resposta, solução. Bufou diante de outros sapos, diante de vários sapos que engolia e  enchiam suas papas, pronto para estourar. Ela tem que vir só, única, sincera, sem adjetivos que tirem sua gravidade, seu peso, seu estado de ser plena e arrebatadora. A palavra bufar já diz tudo quando não se tem mais nada para dizer. Quando só o silêncio incendeia, queima por dentro, se abandona, com lábios tremulejantes, numa oração sem sentido e pra si. Que não é mais ódio: é piedade e resignação. É abandonar-se a uma entidade superior, mágica, porque nada mais pode ser feito, como uma senhora que, diante da chama de uma vela e num silêncio místico, pedisse a cura inexorável de uma doença, de um câncer. Com os lábios ininteligíveis, as mãos crispadas, e veias que se contorcessem nas angulosidades do tempo.

   Foi então que Paulinho Vilela sussurrou no ouvido do colega ao lado, que por sua vez sussurrou para o outro ao lado, que sussurrou ao outro e outro  e assim por diante. Até que, em  sussurros, todos da turma ficaram sabendo e selaram um pacto, uma disputa. Pairou o silêncio. Um silêncio abissal, sem fim. Sem nenhuma palavra, sem nenhum riso pra fora, só se podia pra dentro, só se podia engoli-lo, silenciosamente. Era um silêncio branco como as paredes, atravessava-a e ia parar no  Himalaia, entre o infinito do céu e a neve. Um pacto de silêncio. Quem falasse perdia o jogo. Ali, só o silêncio tinha respeito agora, só ele ditava as ordens,  imperava, pronunciava, sussurrava. E os pequenos barulhos ficaram gigantes. Um arrastar do pé no chão, um roer da cadeira, um toque da caneta na mesa, um estalar dos ossos, um zunido que se deparou com a vidraça. Os pequenos barulhos, os pequenos rangidos: o roçar, o estalar, o bater os dentes, o piscar de olhos faziam sua grande sinfonia, ditavam o ritmo sob a vista atenta de Paulinho Vilela. Quem quebrasse esse protocolo estava fora da brincadeira. Desclassificado.

   No início o professor, que não desconfiava da aleivosia, gostou. Enfim eles me escutaram! Suspirou,  agora bem mais leve. Inspirou o ar no pulmão e soltou-o pela boca vagarosamente, e pode escutar esse leve gesto, de alívio e esperança. Escutou-o plenamente como se estivesse auscultando seu próprio pulmão.  O ar penetrou e saiu como sai o ar de um balão de borracha que esticamos seu bocal medindo o agudo de seu barulho. Fora isso, era o giz no quadro nesse momento que pontuava, arredondava um a apoiado numa perninha, fazia meia lua num c, molhava um lh delicioso, cortava um t e pontuava novamente. As idéias  fluíam... fluíam... revoavam como andorinhas no final da tarde sob uma brisa leve e refrescante. E o traçado no quadro ditava a conexão do pensamento, a conjunção da lógica, da gramática bem torneada, num estilo impecável e belo.

   O traçado do giz no quadro ditava o pensamento e o pensamento ditava o traçado do giz. Mas agora o silêncio disputava com o pensamento e só era pontuado pelo riscar do giz e o seu tracejar, rabiscando as linhas da lógica, da razão. Mas o silêncio era infinito e oco. Ecoava como uma sirene surda, hospitalar, de álcool e éter. Sim, o professor começava a estranhar aquela mudez toda, aquela mudez exterior, aquela mudez ausente. E achou estar surdo. Achou estar longe dali, numa ilha feita de areia e deserta, feita de vento e neblina. Achou não estar ali e em lugar nenhum. Achou não estar no seu corpo e ter evolado-se pelo ar. Achou não estar em si. Sentia falta. Sentia falta de algum som que o acolhesse. Que não fosse só as vozes vindas da profundeza de seu ser. Onde estão os alunos? Onde estão os risos, os cantos, as gargalhadas? Sentia falta. Mas falta de quê? Deixa assim que está bom. Deixa como está! E se irritava com o silêncio. Sentia falta. O que foram feito deles? Do batuque na mesa, das queixas inúmeras, do fulano me bateu, do pegaram minha caneta, dos posso ir ao banheiro, da mochila voadora, da caneta rabiscada na mesa, do assoviar. Do assoviar!!! Mas agora ele não tinha que descobrir quem assoviava. Não tinha com quem reclamar, não tinha com quem chamar a atenção para exercer sua superioridade. Era, pelo ao contrário, era submisso àquilo tudo, àquela loucura de silêncio e mistério, de solidão com as palavras que orbitavam dentro de si, num solilóquio íntimo e confuso.

   Voltou-se então para a turma e perguntou:

   − Então quem tem alguma coisa para dizer.

   E como todos permanecessem quietos, insistiu:

   − Ninguém quer falar nada. Tá vendo aqui – apontando o quadro –, substantivo é isso aqui, é aquilo que nomeia o ser, tudo que existe tem um nome, seja primitivo ou derivado, seja simples ou composto, seja próprio ou comum, seja concreto ou abstrato.

   Ficou um tempo olhando para o nada, talvez para a aresta da construção, e num rompante como um raio que ilumina as trevas declara:

   − Substantia, substantia!...  Sub, estare. Estar por baixo, entenderam?...  Entenderam!? Alguém diz alguma coisa, por favor!

   E, ao ver que a turma não se manifestava mas trazia um sorriso escondido sob as mãos, arrematou já se contorcendo,  já quase virando os olhinhos:

   − Substantivo é nome que nomeia tudo que existe, o ser, a existência e a não existência das coisas, mas que existem, porque dizer que algo não é já é afirmar a existência do não ser. E o substantivo que também é um substantivo faz tudo isso. O substantivo também tem direito de ser algo, tem direito de ter, no mínimo, dignidade. Entenderam, ou não?  Então vou explicar de uma vez:  substantivo é a coisa que dá coisa às coisas. O substantivo é uma COISA!!!

   Recuou para trás, afrouxou a gola da camisa de botão e listrada, buscou ar pela garganta, botou as mãos no rosto puxando a flacidez de suas bochechas que beiravam os 50 anos, se jogou na cadeira que, com seu peso,  se inclinou para trás, ficando apenas com os dois pés, num equilíbrio milagroso e quase trágico, atirou seu tronco e cabeça sobre a mesa. E tudo rodou. Era como se tudo fosse uma ciranda e ele no centro. A turma toda dava as mãos e giravam em torno dele e cantavam e riam e gozavam e saltitavam. Então percebeu que aquele silêncio todo não existia, nunca existiu. Mas o que não existe tem que existir: é uma substantia. E esse termo se afastava aos poucos sendo sobreposto por gargalhadas, muitas vozes, todas as vozes do mundo... E tudo ficou calmo de novo, silenciou narcoticamente, como uma luz vermelha embaçada que vai se apagando até se extinguir.


   Acordou com o Paulinho Vilela fazendo-o aspirar algo forte e úmido num pano. Ia dar um grito, mas se resignou. Em seguida veio o diretor do colégio

   Depois do acontecido, ficou de licença médica durante algum tempo, mas não voltou mais. Conseguiu uma aposentadoria por invalidez. Se sentia bem melhor agora! Arranjou uma atividade para passar o tempo. Pescaria, adorava  pescaria e, quando o dia era bom no mar, reunia seus amigos e fazia um bom jantar.

   Só tinha a obrigação de ter que ir periodicamente ao psiquiatra. Havia pouco mais de dez anos já se tratava com o mesmo. Mas um dia, ao ligar para marcar a consulta, a secretária disse que seu psiquiatra havia morrido - infarto fulminante, uma pena! - e fora substituído por outro de inteira confiança.

   − Muito bom por sinal. Posso agendar pro senhor dentro de uma semana?
   − Claro, tudo bem. Confio em você.

   Passada uma semana, tomou um banho demorado, colocou o melhor perfume, calça jeans, tênis e uma camisa pólo listrada. Tudo isso para apresentar uma boa aparência e pegarem leve no clamante. Da Tijuca chegou de metro em Copacabana na hora prevista. Enquanto subia o elevador do prédio comercial, dizia algumas amenidades para quebrar a apatia desse ambiente tão formal. Cumprimentou a jovem secretária com um belo sorriso, pensando como a juventude é bela e que também já foi belo e teve bonitas garotas. Deu-lhe ainda uma caixa de bombom, ao menos para cortejar sua amizade. Ela, por sua vez, disse que ele estava muito bem e que era só esperar um instante que o doutor ia atender.

   Não demorou mais que quinze minutos e ela falou que podia entrar. Arinaldo ajeitou a camisa e com segurança se encaminhou à porta. Quando abriu a porta demorou um pouco para que tudo se clareasse. Mas aos poucos tudo era muito óbvio e  nítido. Sentiu um calafrio. Era verdade. O gesto, a fisionomia, com sardinhas no rosto, magro, nariz arrebitado, cabelos ruivos, e  principalmente a voz sarcástica o cumprimentando  (− Como vai, professor?), não desmentia. O doutor era Paulo Vilela, o Paulinho.

   Arinaldo tentou balbuciar alguma coisa. Talvez um substantivo próprio. Que entalou na garganta. Deu meia-volta e foi embora com as mão sobre a cabeça já calva e abaixada. Os passos eram inseguros mas determinados e rápidos. Seguiu pela orla, no calçadão, meio sem rumo. E depois do susto, ria, dava gargalhadas sozinho. Tão intensas que as pessoas que passavam estranhavam. E até hoje não se sabe se esse riso era de satisfação, perplexidade ou loucura.


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Noite de chuva: frio, silêncio e paz


Por que o tempo não se congela hoje
nessa noite de chuva distraída
no telhado, por entre o vão da calha,
abrindo finos poros pelo chão?

Por que o tempo não se congela hoje,
nesse dizer claro mas invisível
que, pingo por pingo de vão destino,
se contradiz mesmo assim de si mesmo?

Porque não se congela hoje, Chuva,
se tudo aqui é tão bom como está?
O frio vagaroso e sussurrado
de sílabas íntimas e molhadas.

Se essa chuva não pode congelar,
guardo-a no momento da memória.
E amanheço já em outra história
- de pétalas azuis rodeadas de sol.