Substantia
− Silêncio, por
favor!
Gritou o professor
já num desespero total. Mas de nada adiantava. Já atrás dois alunos brincavam
ou brigavam em pé com golpes. Do lado direito pra esquerda cruzou um
supersônico feito de papel no ar. A retaliação, da direita, era uma artilharia
de Tomahowks de bolinha de papel, o
coitado do faxineiro limpava depois. Em outro canto, garotas sentadas nas mesas
tiravam selfies, se arrumavam com cabelos e batons cada qual no seu estilo e
diziam péra aí. Tudo isso ritmado por batuques de funk e MCs no meio da sala de
aula. Era essa a funesta vida do professor Arinaldo.
Arinaldo, então,
voltava-se para o quadro e fingia não escutar, não se aborrecer mais. Vou
lançar a matéria e isso basta!- remoia. E escrevia escrevia. Por vezes o fingimento era sincero
como pedra autêntica. E o valor era tanto, que se esterilizava numa aula surda
e muda. Pra dentro. Na solidão de suas palavras desenhava no quadro. No diálogo
concebível só entre eles dois. Num monólogo. Num tudo com sem, apagava um
trecho que acabara de escrever. Assim fica melhor, pensava. Não, assim.
Resolvia desresolvendo uma, duas, três, quatro vezes... até achar a melhor colocação do termo. Uma
exatidão inexata, que dilui, que tenta o fracasso. (Ih... a lá... o professor
não sabe escrever). Foi esse parêntesis de deboche, crudelíssimo – para cismar
antigamente, careta – foi esse parêntesis sem conclusão, enfático, decisivo!
Que o fez esquecer todas as regras gramaticais, ortográficas, de sintaxe e
estilo. Que troca dois esses por cecidilha e xis por ge e por zê, friccionando
fricativas num só zunido de abelha e ouvido. Que o fez arranhar o giz no quadro
com o mesmo barulho que se arranha um prego de vidro num espelho de metal.
Rispidamente. Até trincá-lo. Até pendurar a palavra, feri-la num estampido seco
e amargo como se ela batesse na agulha de um revólver, como ela fosse chicotear
a batida de asas de um pombo assustado, num beco sem saída, sem céu onde
pudesse descansar sem ninguém falar mal. E observar de lá de cima como são
apressados os homens aqui em baixo, afoitos, como são afoitos. Como são
crianças.
Mas de todos os barulhos ensurdecedores, de todos os
barulhos já embaralhados, números e naipes aleatórios, compactados, misturados,
entrelaçados como dedos que se contorcem, como dedos que não são hábeis com as
cartas, mas que, por isso, se misturam
mais ainda e mais e mais e enrolam o fiapo da barba, de tanto arranhar e
esfolam, e alisam, afastam chumaços de cabelos como um pente, como um garfo ou
um tridente, boquiaberto e banguela. Velho e tenebroso. Cansado.
De todos um se
destacou. Foi um assobio. Alto e estridente. E o professor se assustou tanto
que rabiscou o quadro. E imediatamente todo seu texto apagou-se, todo seu
monólogo com as palavras se esvaiu. Caiu em si. Olhou pra turma e energicamente
disse:
− Quem foi?!
E como a turma não lhe desse atenção, berrou:
− Quero saber quem foi?!
Todos se silenciaram. Ele virou pro quadro e continuou a
escrever. Novamente veio o assovio, que agora soava como uma sirene de
ambulância, ia e vinha, ia e vinha, ia e vinha grave e agudo, alto e baixo, do
lado esquerdo e direito, direito e esquerdo. Antes fosse um canto de seriema,
mas era um som manicomial, ensurdecedor. Virou pra turma de novo. E pairou o
silêncio novamente. Quem foi!? Quem foi?! E todos riam. Riam pra dentro. Riam
com as mãos na boca, como se comessem o riso, como se o riso paralisasse numa
maquiagem cristalizada, interrompida, fotografada num sarcasmo malévolo.
O professor virou pro quadro então de novo, mas dessa vez
pronto para rapidamente voltar seu rosto pra turma. Pro bando de palhaços! − resmungava entre os
dentes. Pronto para pegar no bote, num assalto inesperado, fulminante.
− Agora eu vi! – e apontou para o Paulinho Vilela..
− Eu, professor?... O que que eu fiz?...
− Não se faça de desentendido. É você que está assoviando –
e arregalou os olhos, que pareciam saltar.
− Eu não fiz nada. Foi ele!
− e apontou para um colega, que
logo apontou pra outro que por sua vez apontou pra outro e outro e mais outro.
Não foi à toa que o professor acusou Paulinho. Paulinho já
havia colado chicletes no cabelo de uma garota, já havia posto uma mochila de
um colega no ventilador, já havia levantado a saia de uma professora e fora
pego vendo mulheres nuas no celular. Não, não fora à toa. E vinha sua mãe dizer que seu filho não fazia
nada disso, que era um bom filho.
− Eu sei, minha senhora, é que...
− Não. O senhor não sabe.
− Mas ele...
− Ele é um ótimo rapaz. Você é que não sabe ensinar direito.
Acha que eu não sei o dia que você trocou “s” por “z”, o dia que você soltou um
palavrão, o dia que você...
− Eu sei minha senhora... quer dizer... esses lapsos....
− O senhor estudou, por acaso?!
− Estudei, claro. E na...
− Não parece!
− Eu tenho até...
− Tem é falta de educação, como pode?
− Até, até Mestrado. E isso é muito...
− É muita cara de pau sua.
− É... muito difícil...
− Difícil é ter que deixar meu menino aqui contigo. Presta atenção, hein?!
− Eu...
− Sim. O senhor. Se não vou denunciar você ao Ministério da
Educação. Entendeu?!
− Eu sei, eu sei.
O professor bufou. E seria muita redundância, seria um
pleonasmo, ou qualquer palavras dessas que se queira inventar a essa altura do
campeonato, porque bufar é bufar e nada mais. Encheu-se como um sapo no brejo,
um sapo acuado, com medo, bufar era a única defesa, resposta, solução. Bufou
diante de outros sapos, diante de vários sapos que engolia e enchiam suas papas, pronto para estourar. Ela
tem que vir só, única, sincera, sem adjetivos que tirem sua gravidade, seu
peso, seu estado de ser plena e arrebatadora. A palavra bufar já diz tudo
quando não se tem mais nada para dizer. Quando só o silêncio incendeia, queima
por dentro, se abandona, com lábios tremulejantes, numa oração sem sentido e
pra si. Que não é mais ódio: é piedade e resignação. É abandonar-se a uma
entidade superior, mágica, porque nada mais pode ser feito, como uma senhora
que, diante da chama de uma vela e num silêncio místico, pedisse a cura inexorável
de uma doença, de um câncer. Com os lábios ininteligíveis, as mãos crispadas, e
veias que se contorcessem nas angulosidades do tempo.
Foi então que Paulinho Vilela sussurrou no ouvido do colega
ao lado, que por sua vez sussurrou para o outro ao lado, que sussurrou ao outro
e outro e assim por diante. Até que, em sussurros, todos da turma ficaram sabendo e
selaram um pacto, uma disputa. Pairou o silêncio. Um silêncio abissal, sem fim.
Sem nenhuma palavra, sem nenhum riso pra fora, só se podia pra dentro, só se
podia engoli-lo, silenciosamente. Era um silêncio branco como as paredes, atravessava-a
e ia parar no Himalaia, entre o infinito
do céu e a neve. Um pacto de silêncio. Quem falasse perdia o jogo. Ali, só o
silêncio tinha respeito agora, só ele ditava as ordens, imperava, pronunciava, sussurrava. E os
pequenos barulhos ficaram gigantes. Um arrastar do pé no chão, um roer da
cadeira, um toque da caneta na mesa, um estalar dos ossos, um zunido que se
deparou com a vidraça. Os pequenos barulhos, os pequenos rangidos: o roçar, o
estalar, o bater os dentes, o piscar de olhos faziam sua grande sinfonia,
ditavam o ritmo sob a vista atenta de Paulinho Vilela. Quem quebrasse esse
protocolo estava fora da brincadeira. Desclassificado.
No início o professor, que não desconfiava da aleivosia,
gostou. Enfim eles me escutaram! Suspirou, agora bem mais leve. Inspirou o ar no pulmão e
soltou-o pela boca vagarosamente, e pode escutar esse leve gesto, de alívio e
esperança. Escutou-o plenamente como se estivesse auscultando seu próprio
pulmão. O ar penetrou e saiu como sai o
ar de um balão de borracha que esticamos seu bocal medindo o agudo de seu
barulho. Fora isso, era o giz no quadro nesse momento que pontuava, arredondava
um a apoiado numa perninha, fazia
meia lua num c, molhava um lh delicioso, cortava um t e pontuava novamente. As idéias fluíam... fluíam... revoavam como andorinhas
no final da tarde sob uma brisa leve e refrescante. E o traçado no quadro
ditava a conexão do pensamento, a conjunção da lógica, da gramática bem
torneada, num estilo impecável e belo.
O traçado do giz no quadro ditava o pensamento e o
pensamento ditava o traçado do giz. Mas agora o silêncio disputava com o
pensamento e só era pontuado pelo riscar do giz e o seu tracejar, rabiscando as
linhas da lógica, da razão. Mas o silêncio era infinito e oco. Ecoava como uma
sirene surda, hospitalar, de álcool e éter. Sim, o professor começava a
estranhar aquela mudez toda, aquela mudez exterior, aquela mudez ausente. E
achou estar surdo. Achou estar longe dali, numa ilha feita de areia e deserta,
feita de vento e neblina. Achou não estar ali e em lugar nenhum. Achou não
estar no seu corpo e ter evolado-se pelo ar. Achou não estar em si. Sentia
falta. Sentia falta de algum som que o acolhesse. Que não fosse só as vozes vindas
da profundeza de seu ser. Onde estão os alunos? Onde estão os risos, os cantos,
as gargalhadas? Sentia falta. Mas falta de quê? Deixa assim que está bom. Deixa
como está! E se irritava com o silêncio. Sentia falta. O que foram feito deles?
Do batuque na mesa, das queixas inúmeras, do fulano me bateu, do pegaram minha
caneta, dos posso ir ao banheiro, da mochila voadora, da caneta rabiscada na
mesa, do assoviar. Do assoviar!!! Mas agora ele não tinha que descobrir quem
assoviava. Não tinha com quem reclamar, não tinha com quem chamar a atenção
para exercer sua superioridade. Era, pelo ao contrário, era submisso àquilo
tudo, àquela loucura de silêncio e mistério, de solidão com as palavras que
orbitavam dentro de si, num solilóquio íntimo e confuso.
Voltou-se então para a turma e perguntou:
− Então quem tem alguma coisa para dizer.
E como todos permanecessem quietos, insistiu:
− Ninguém quer falar nada. Tá vendo aqui – apontando o
quadro –, substantivo é isso aqui, é aquilo que nomeia o ser, tudo que existe
tem um nome, seja primitivo ou derivado, seja simples ou composto, seja próprio
ou comum, seja concreto ou abstrato.
Ficou um tempo olhando para o nada, talvez para a aresta da
construção, e num rompante como um raio que ilumina as trevas declara:
− Substantia, substantia!...
Sub, estare. Estar por baixo, entenderam?... Entenderam!? Alguém diz alguma coisa, por
favor!
E, ao ver que a turma não se manifestava mas trazia um
sorriso escondido sob as mãos, arrematou já se contorcendo, já quase virando os olhinhos:
− Substantivo é nome que nomeia tudo que existe, o ser, a
existência e a não existência das coisas, mas que existem, porque dizer que
algo não é já é afirmar a existência do não ser. E o substantivo que também é
um substantivo faz tudo isso. O substantivo também tem direito de ser algo, tem
direito de ter, no mínimo, dignidade. Entenderam, ou não? Então vou explicar de uma vez: substantivo é a coisa que dá coisa às coisas.
O substantivo é uma COISA!!!
Recuou para trás, afrouxou a gola da camisa de botão e
listrada, buscou ar pela garganta, botou as mãos no rosto puxando a flacidez de
suas bochechas que beiravam os 50 anos, se jogou na cadeira que, com seu
peso, se inclinou para trás, ficando
apenas com os dois pés, num equilíbrio milagroso e quase trágico, atirou seu
tronco e cabeça sobre a mesa. E tudo rodou. Era como se tudo fosse uma ciranda
e ele no centro. A turma toda dava as mãos e giravam em torno dele e cantavam e
riam e gozavam e saltitavam. Então percebeu que aquele silêncio todo não
existia, nunca existiu. Mas o que não existe tem que existir: é uma substantia. E esse termo se afastava aos
poucos sendo sobreposto por gargalhadas, muitas vozes, todas as vozes do
mundo... E tudo ficou calmo de novo, silenciou narcoticamente, como uma luz
vermelha embaçada que vai se apagando até se extinguir.
Acordou com o Paulinho Vilela fazendo-o aspirar algo forte e
úmido num pano. Ia dar um grito, mas se resignou. Em seguida veio o diretor do
colégio
Depois do acontecido, ficou de licença médica durante algum tempo, mas
não voltou mais. Conseguiu uma aposentadoria por invalidez. Se sentia bem
melhor agora! Arranjou uma atividade para passar o tempo. Pescaria, adorava pescaria e, quando o dia era bom no mar,
reunia seus amigos e fazia um bom jantar.
Só tinha a obrigação de ter que ir periodicamente ao
psiquiatra. Havia pouco mais de dez anos já se tratava com o mesmo. Mas um dia,
ao ligar para marcar a consulta, a secretária disse que seu psiquiatra havia
morrido - infarto fulminante, uma pena! - e fora substituído por outro de
inteira confiança.
− Muito bom por sinal. Posso agendar pro senhor dentro de
uma semana?
− Claro, tudo bem. Confio em você.
Passada uma semana, tomou um banho demorado, colocou o
melhor perfume, calça jeans, tênis e uma camisa pólo listrada. Tudo isso para
apresentar uma boa aparência e pegarem leve no clamante. Da Tijuca chegou de
metro em Copacabana na hora prevista. Enquanto subia o elevador do prédio
comercial, dizia algumas amenidades para quebrar a apatia desse ambiente tão formal. Cumprimentou a jovem secretária com um belo sorriso, pensando como
a juventude é bela e que também já foi belo e teve bonitas garotas. Deu-lhe
ainda uma caixa de bombom, ao menos para cortejar sua amizade. Ela, por sua vez,
disse que ele estava muito bem e que era só esperar um instante que o doutor ia
atender.
Não demorou mais que quinze minutos e ela falou que podia
entrar. Arinaldo ajeitou a camisa e com segurança se encaminhou à porta. Quando
abriu a porta demorou um pouco para que tudo se clareasse. Mas aos poucos tudo
era muito óbvio e nítido. Sentiu um
calafrio. Era verdade. O gesto, a fisionomia, com sardinhas no rosto, magro, nariz arrebitado, cabelos ruivos, e principalmente a voz
sarcástica o cumprimentando (− Como vai, professor?), não desmentia. O doutor era Paulo Vilela, o Paulinho.
Arinaldo tentou balbuciar alguma coisa. Talvez um
substantivo próprio. Que entalou na garganta. Deu meia-volta e foi embora com
as mão sobre a cabeça já calva e abaixada. Os passos eram inseguros mas determinados e rápidos. Seguiu pela orla, no calçadão, meio sem rumo. E depois do susto, ria, dava gargalhadas sozinho. Tão intensas que as pessoas que passavam estranhavam. E até hoje não se sabe se esse riso era de satisfação, perplexidade ou loucura.
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