quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Lembranças de nascer


Foi poeta - sonhou - e amou na vida
                         Álvares de Azevedo


Que ponham minha cama ao ar livre
na grama, onde as árvores possam cuidar de mim.
E a brisa ninar o sonho que ainda não sonhei
nesse dia em que meus finos cílios
secam, como as nuvens, seus orvalhos
no fluido e macio azul do céu.

Que ponham minha cama onde um dia...
eu possa lembrar-me de ver
o sussurro do ar peneirando as folhas mais maduras,
aquelas que têm a singeleza de fazer mudos estalos;
igual aos passos que caminham pela aléia, surdos.

A minha cama deverá ter lençóis brancos,
limpos, de uma assepsia indiferente.
Tal como estas palavras sem tédio, indiferente
como o amor de seu maior inimigo.
Ter tédio, meu amigo, é algo. E o consueto autista...
só e sem pranto?

Que essa etérea cama
traga a tenra lembrança
da amizade que iremos selar.
E que ela seja justa e sincera,
mesmo nas entrelinhas
inter-calantes dos nossos sentimentos.

Que nessa cama, estéril de lembrança
sinta, no meu rosto, parir o beijo
da minha mãe - rica mãe
meiga, convidando-me para o mundo.

Que essa cama, matéria vazia e pura
se lembre de não se esquecer
do beijo - não da virgem
- do amor, que ainda não conheceu.

Ainda não trago uma só saudade
destas sombras do vale e noites da montanha.
Que elas deixem, enfim
como o beija-flor do meio-dia,
iluminar-me o sol a cama.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sítio urbano


A população cresce a cada dia.
A cada dia, há solidão.
Um milhão, um bilhão, um não
de pessoas esparsas
disfarsam-se
num disforme espaço quadrado,
na harmonia da ameaça.

Na cidade não cabe mais gente;
não cabe mais árvore
nem flor
nem calor.

Na cidade os negócios crescem;
prédios e favelas emergem.
A propriedade invade o esgoto.
Feito de loucos desvairados é o esgoto.
O esgoto que não esgota;
o esgoto que não morre,
mas mata.
O esgoto que engorda,
mas é magro.
O esgoto magro e amargo
invade a margem da cidade.

No computador está a inteligência;
nas máquinas, o braço;
no coração, marca-passos;
nos passos apressados:
tensão, medo deflagrado.

Cuidado!
Um assalto à mão armada.
A arma pode ser de qualquer espécie.
Desde canivete de moleque,
até um granada,
revólver ou pistola,
metralhadora com baioneta,
arma nuclear,
ou mesmo: uma caneta
de tinta espessa e vermelha.
A arma está no olhar de ódio.
Arma-se muros no espaço
trancado da cidade.

Presos pelo desejo de liberdade,
unidos por uma comunicação muda e fria,
esquecem-se do flutuante azul do dia
e respiram e transpiram e conspiram
um cinzento cimento
os cidadãos da cidade.


Publicado em 2002 no Jornal Arte e Política.
Obs.: Há umas poucas modificações, sendo este o texto definitivo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

UM POEMA BEM ALUSIVO

EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
EVASIVO
DISCURSIVO

sábado, 23 de outubro de 2010

CENSURA

Cuidado! Pensar é perigoso!
Veja só: Sócrates e Lamarca,
Robespierre e Che Guevara,
e Thomas Morus não esqueço.
Todos, todos estão mortos.

Cuidado! Não escreva mais poesias,
não gaste rimas em utopias.
Isso é perigoso, muito perigoso.

Não duvide dos jornais e da televisão.
Não há permissão para questionar.
Não chore! E nem sinta mais emoção,
pois, para lamentação, tempo não há.

Se tem fome
encolha o abdomen
Se tem dor
enrusta o terror
Se tem ódio
engula seu colóquio.

E siga tácito e submisso
sua vida miserável.
Siga seus impostos e compromissos
e forje um sorriso afável,
como se você achasse graça
da desgraça da sua existência
que (por prudência)
deve silenciar.
Pois pensar é perigoso.
É perigoso ter ideias!
Quem já as teve
ou já não vive
ou está louco.
Na sarjeta, meu irmão
rosto no esgoto.

Já o disse
e não repito de novo:
há muito perigo
em não ser comedido.
Trago a palavra amor

Trago ela como um cigarro.
Trago ela como um cuspe amargo.
Trago ela como um filme pornô.

Porque amor
não é cigarro
nem cuspe amargo
e menos ainda pornografia.

O amor é a dor
de quem não tem amor

mas ama.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A esterilidade fecunda do ser


O seu olhar
é um plástico
que boia no mangue

centenas de anos...

É uma trepada com camisinha
que não estoura e sem história pra contar.

Estéril fecundidade do esperma.

Amor, seu olhar
é um cristal solto no meu intestino
que fica flatuendo milhares de anos...

É uma trapaça sem filhos.
Mas tenho vigorosos ossos
que, duros, cegos e alvos como porta,
se de-compõe rosto a rosto contigo.

- E nossos filhos?...
Olha-os, são os lírios.

Frágeis como o vidro.
Flácidos como o plástico.
Instantâneos como o grito.
E como o pântano, orgânicos.

Cristalizados num singular silêncio eterno.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A montanha e o rio


Lá longe a montanha
tão calma,
imobilizada no tempo.

Aqui perto um córrego
que escorrega,
se enviesa pelo tempo.

A montanha lá longe
não tem tempo.
Se perpetua impassível...
Mas diante do céu
não se faz sacramento.

E nem é intempestiva à tempestade,
à inundação do rio
que ora nos invade.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cristal líquido

Pois então não chores menina.
Já que ainda nem sabes amar.
Aproveite, pois tempo ainda há.
Esse longo novelo de vida...

Depois, não chores; pois não és menina.
E cumpristes toda tarefa do amar.
Vai, aproveite o tempo que ainda há,
novelo que um dia... um dia termina.

Mas... se chorares, haverá um choro só.
Todos são feitos da mesma água e pó.
Adubo. O choro é como o amor.

E o amor é parte do corpo que cai,
dedinho de criança que se liquefaz.
E assim vai sendo natimorta flor.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Tempo

Só te encontro em fotos antigas.
E eu nem sabia que estavas ao meu lado.
E como sorrias...
E como eras tão presente...

Hoje sei que tu andas lado a lado comigo.
Mas não te vejo no espelho,
meu grande e fiel amigo.

Enquanto houver tempo te imagino no futuro,
mesmo que tu reveles o passado
e se cale neste instante.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Momentos (in)comuns

Um dos motivos mais importantes para a consagração de um escritor é ter um estilo próprio, inconfundível. Então, ao percorremos as páginas de Deu vaca, deparamo-nos com a singularidade de Catarina Cunha. Sua concisão remete-nos ao dia-a-dia. Entretanto, nesse lugar-comum o insólito se insurge. O olhar dela é uma câmera fotográfica registrando flagrantes. E deles extraindo o inusitado.

Assim, no começo da história Deu vaca o narrador afirma sua missão de “relatar os fatos” e que, apesar de não ter “o lastro jornalístico”, tem o dever “testemunhal”. Isso nos traz a impressão de mais uma crônica; “porém infinitamente mais espinhosa”, nos previne. O cotidiano é surpreendido com a aparição de uma vaca se banhando num chafariz. Tal evento se agiganta cedendo lugar ao estranho, na fronteira do realismo fantástico.

Mas seu olhar documental – e literário – não fica aí. Nele encontramos uma hipocondríaca que flerta com a imaginação; um poeta que só consegue escrever na presença de uma galinha, satirizando o ato poético; um passageiro que tem medo de voar, mas sonha ser sobrevivente famoso; uma trocadora de ônibus, representando a mulher moderna (publicado no JB); e, entre outras, a premiada Placa da sorte.

Vale ainda lembrar que, se Clarisse Lispector busca uma profundidade psicológica nos seus personagens, Catarina um instante, porém com intensidade existencial, como em O mar de Beth, no qual a protagonista frustrada pelo trabalho e com “os olhos marejados, foi para a praia conversar com o mar”.

Enfim, é um livro que traz reflexão sobre o ser humano com a graça e humor; é dinâmico como a vida contemporânea; enxuto como uma nota de jornal; e altamente poético, trazendo uma beleza inesperada para o nosso dia-a-dia. Essas são as tônicas do seu estilo.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Há certas lágrimas que fazem cócegas na gente.
Então, se ri tanto
que se esquece
do tanto que se está chorando.

terça-feira, 23 de março de 2010

Desapropriação

Se lá fora chovia
e não chove mais.
Se lá fora fazia frio
e não faz mais.
E se aqui dentro
chove, é frio e sem sentido,
não.
Não se arrependa da poesia que você escreveu,
não a amasse,
não a jogue fora.

Tacitamente deixo-a vagar pelas ruas da cidade.

Se você a ver por aí,
com seu mais belo vestido,
tomando um chope com outro no Lamas,
não tenha pranto,
e nem a reclame aos outros,
pois tal poesia não mais te pertence.

Você só a tinha
enquanto aquela sinuosa linha
te insinuava sem ponto final.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A Leonardo Canabrava

REVERTERE AD LOCUM TUUM


Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.
Eclesiastes, 30:20


1.

Vai à janela!
Decida-se
se tu viras ave
ou se viras carne.
A ave vai afora,
a carne cai: fruta madura.
A ave fura o ar,
e seu sentido
é sentido sem sentido;
a carne tropeça no ar,
e já sem sentido
vira matéria adormecida.

Vira matéria adormecida
nessa infinistesimal despedida
de ave que ganha a vida,
ou muda o norte a ave
da matéria estendida.

Ela estende as asas sobre a terra,
seu voo longo e curto
alcança longa vastidão.
E flertando com o céu
repousa leve sobre o chão
que a acolhe nos seus seios.
E então, vivas veias de árvores
sugam-lhes todo viscoso leite
de ave ou vícera adormecida.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa cá, voa para cá,
que aqui é teu lugar.


2.

Vai à janela!
A janela é uma corda bamba.
Se olhas para baixo,
do topo deste penhasco,
fina linha que se estica,
pêndulo pronto pra partir,
tudo roda.
Roda como tambor de bala,
que roda para e dispara.
Roda como tambor de hora,
que roda para e dispara
que roda para e dispara
que roda, para, e dispara,
que roda... para... e diz... para...
que roda... para... e diz:
Para quê?
Para que, amor, para quê?
Para que, homem, para quê?
Para que dor, para quê?
Para que se consome, para quê?
Para que, Shakeaspeare, para quê?
Para que, espelho, para quê?
Para que ser, para quê?

O seu peito não para só,
só no parapeito não
(Cruz e Souza bem o sabia).
Pode parar num mármore
ou, num vislumbre, vasar na vasta vastidão.
O parapeito da janela
é o estreito orifício da ampulheta.
O edifício
é a ampulheta inteira.
É o chão empurrando o céu
que, como torre de babel,
é feito de pedra, mito e razão.
Porém, seus pilares de vidro
(quem sabe não os colaremos de novo?)
estilhaçaram-se. Agora, cortantes letras
espinhos de rosas
papéis rasgados
jogados pela janela.
As estrelas brotam no céu,
lentamente caem,
e brilham na terra.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa lá, voa para lá,
que lá é teu lugar.


3.

Vai à janela!
A janela é o limite.
Como a faixa amarela é o limite,
como a pele, o corpo é o limite.
Mas da poesia ela não o é.
Nela, penetra-lhe o sol e a brisa,
e ela em seus poros
secreta a secreta voz do suor.
A janela são nossos olhos.
É o primeiro romper do óvulo.
É o que vemos pra dentro e pra fora.
É o que vemos sem podermos ver.
É o primeiro romper da crisálida.
É o hímen que se parte.
É o Homem que se parte.
É ave que se parte.
É carne que se parte.
É fruto maduro, arremessado pelo ar.
É um rasgo no ar, na carne do céu.
É um corte, uma ferida.
É o retalho da vida
sempre a se costurar.

A janela é o limite.
Medida de desmedida,
é lapso de tempo,
esquecimento de si.
É o confundir o aqui
com o fora daqui.
É a hora que o relógio se esquece,
que você se esquece,
que o mundo se esquece.
É a hora da roptura, fissura
nuclear: explosão!!!
É a hora do ar.
É a hora do chão.


Numa árvore uma ave anunciava:
- Voa cá, voa para cá,
que aqui é teu lugar.


4.

Vai à janela!
Bem ali, ela te espera.
Sair por ela é evolar-se,
e por aí ir... mar azul sem fim...
É conferir o que de ti está além,
onde ainda, vivente, não podes chegar.
Sair por ela é romper a placenta,
é saltitar no novo mundo que há.
E voltarás ao seio que te alimenta, homem,
e haverás de amar.
E voltarás ao seio que te acalenta, nenem,
e haverás de amar.
E voltarias ao meio que te sustenta, ser,
e haveria de ser
se tal-vez... alguém.

Tal como a Palavra,
arte que tropeça na janela,
que se equilibra pelo ar
e retorna, sim, à carne, à terra;
até, enfim, se (des)integrar.


Numa árvore uma ave assim cantava:
- Voa voa que já não podes parar...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Diário

O sol, amor, nos aquece todo dia.
Aí vem a noite e só nos deixa
com a terra fria.
A palavra é como o passar do tempo:
tem dia que se esquece,
tem dia que se anuncia.