sábado, 31 de julho de 2021

À beira


De bruços pro mundo
bem olho lá fora
e tudo me embota
quanto o mais circundo.

               *
Descarto o soluço
junto ao calendário.
De julho já saio,
mas ainda debruço.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Oitivas

Roeu tanto as unhas
que todos os dentes
ora se acham ausentes.
Já elas, testemunhas.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Mãe


Fui no quarto.
Ela dormia nesse
e acordava em outro.

Outro ao lado
cuja vigília - vê-se -
era foto em repouso.

Que no de baixo
pousa lembrança. De três
quartos - e meio - não ouso

chamá-la ao fato.
Se é sanha não sei,
para um século há pouco.

Fui no quarto.
Ela dormia de vez.
Era só sonho. Era criança.

domingo, 25 de julho de 2021

Cabides

Antes de sair à missa
no próximo domingo,
Maria, passa na frente,
já que espelho não mente:
pois, se já é curta a vida,
bem pior em desalinho.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Seu Francisco


No hospital da ordem terceira de São Francisco 
                                                                [da Penitência
tudo parece dormir.
As paredes recolhem as vozes do dia.
Fantasmas de pijamas bocejam no pátio 
                                                          [do esquecimento.
Sequer o breu das árvores serve-lhes 
                                                                [como estímulo.
Na capela, Jesus Cristo olha para o vazio sem olhos.
                                                                           [Sem dor
e esperança, duvida de si próprio.
Já seu Francisco encaminha-se para uma
                                                                     [enfermaria
e, como se orasse, repousa os pés para cima.
Sem solução
e cansado de tanto bater perna por aí,
não vê a hora de ir pra casa, tomar um banho 
                                                                          [e dormir
na tão sonhada paz de Deus.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Corporal


Patético seria te prometer
Que na carne não rasga a veia
Que na veia não rasga o sangue
Que no sangue não rasga a vida
Que a vida não se rasga em estética.

E depois, de cara bem lavada
ainda dizer que não serve pra nada!

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Classe média

...notei que ela me agradecia, 
revelando melhor sua delicada composição, Drummond


Entre sacos, garrafas
de vidro, latas
de coca, cacos
de lares guardados
em caixas de rivotril.

Entre o acúmulo
diário da fofoca
varrida, de pelos
de gato, cão, restos 
de pele, unhas roídas,
bandaids de tédios.

Entre o gozo asfixiado
numa borracha, entre
o espiar cego da escada,
que queda em dominós,
ou o alçar súbito, veloz.

Entre códigos de barras,
o consumo atroz da classe
média. Das portas atrás
das casas. Das casas atrás
dos desejos. Dos desejos atrás
dos medos. E os medos atrás
das farpas na pontas dos dedos.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se vê
e ainda o que à deriva vai
como submerso iceberg
apartado de nossas vidas
polares, em inexorável fluir
as fugas dos sons dos ecos
nas paredes do céu e do mar.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se crê,
creia-me: eu achei (talvez
comprada às pressas,
tal como o vazio diário
lotado de bugigangas,
plásticos, calças, marcas,
cabides sem fala ou destino,
tal como o frio alvejado
das prateleiras sob o ar-
condicionado-a-ser-coisa
em toda humana causa).

Eu juro! Não foi um furto
de poeta ou anjo torto.
Em vaso, achei-a na terra,
que nos abraça aos pés
e encharca o dia e a alma.
De resistência singela
era pura, era bela, era flor.
Se fora descarte de lixo,
hoje bem a rego. E sou.
Feliz, sou homem. Rico.