quinta-feira, 1 de julho de 2021

Classe média

...notei que ela me agradecia, 
revelando melhor sua delicada composição, Drummond


Entre sacos, garrafas
de vidro, latas
de coca, cacos
de lares guardados
em caixas de rivotril.

Entre o acúmulo
diário da fofoca
varrida, de pelos
de gato, cão, restos 
de pele, unhas roídas,
bandaids de tédios.

Entre o gozo asfixiado
numa borracha, entre
o espiar cego da escada,
que queda em dominós,
ou o alçar súbito, veloz.

Entre códigos de barras,
o consumo atroz da classe
média. Das portas atrás
das casas. Das casas atrás
dos desejos. Dos desejos atrás
dos medos. E os medos atrás
das farpas na pontas dos dedos.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se vê
e ainda o que à deriva vai
como submerso iceberg
apartado de nossas vidas
polares, em inexorável fluir
as fugas dos sons dos ecos
nas paredes do céu e do mar.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se crê,
creia-me: eu achei (talvez
comprada às pressas,
tal como o vazio diário
lotado de bugigangas,
plásticos, calças, marcas,
cabides sem fala ou destino,
tal como o frio alvejado
das prateleiras sob o ar-
condicionado-a-ser-coisa
em toda humana causa).

Eu juro! Não foi um furto
de poeta ou anjo torto.
Em vaso, achei-a na terra,
que nos abraça aos pés
e encharca o dia e a alma.
De resistência singela
era pura, era bela, era flor.
Se fora descarte de lixo,
hoje bem a rego. E sou.
Feliz, sou homem. Rico.


6 comentários:

Simone disse...

Grande poema belo texto adorei grande amigo

Estação das Letras disse...

Belíssimo poema ! Vou tentar postar no me fb ( embora pouco saiba dessas coisas) . Parece um rap mas melhor , mais sofisticado..

Ivo de Souza disse...

Obrigado Simone! Sempre carinhosa comigo.

Ivo de Souza disse...

Sim, tem essa pegada veloz e urbana. Muito feliz pelo comentário. Aliás, a Estação tem me ensinado muito. Obrigado!

Aloysio Neves disse...

Parabéns pelo olhar agudo, ágil e sutil...🎶🌍🍀

Ivo de Souza disse...

Oba amigo. Obrigado!