sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

        Aos colegas do Colégio Herbert Moses


Despedida


Caros Amigos, ia deixar abraços.

Mas deixo apenas as simples lembranças

dos tempos que, agora livres de tranças,

atavam os fios ao rubor dos laços.


Queria deixar um beijo. Bem suave.

Mas, veloz, escapa aos lábios a cor

das asas inquietas do beija-flor.

Fica o vulto. Arrepio que não se sabe.


Queria deixar pelo menos um gesto,

aperto de mão, umas poucas palavras.

Um único adeus, um gracejo sem graça.


Ou até mesmo o silêncio circunspecto

das copas das árvores. Bem discreto

queria sair, mas sem a dor do que passa.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Samuel Heisenberg Gonsalez


Numa casa de uma família de industrial no Morumbi.


- Pai!

- O quê, meu filho?

- Vou fazer vestibular.

- É... Que bom! De quê?

- Licenciatura em Artes.

- O quê?!!!

- É, pai. Não é legal?

- Não!!! Samuel, você tem que virar médico, engenheiro, doutor! Pode até fazer administração, economia, gerenciar nossos negócios.

- Mas é que eu gosto, pai.

- Não repete isso. Se não vai entrar no cacete - já botando a mão no cinto. - Isso é culpa da sua mãe, que fica te mimando. Te dando livrinhos, te levando a museus. 


No dia seguinte o pai chamou o filho.


- Meu filho, aqui estão as passagens. Vou financiar seus estudos fora. Havard. Tudo pago. Não precisa se preocupar com nada.

- Mas eu não quero ir, pai.

- Filho, pense bem na oportunidade. Você vai herdar tudo isso. Tem que estar preparado. A vida não é nada fácil - insistiu se esforçando para ser paciente.

- Eu quero fazer arte, pai.

- Seu vagabundo! Preguiçoso! Comunista!

- Além disso, estou apaixonado, pai.

- Ahhh... Agora entendi. Tem uma paixão, né? Meu menino! Quem sabe não levamos também. Quem é ela? É de família? Qual é o nome?

- Não é ela não, pai. É ele. Seu nome é João!


O pai nem pensou. Arrancou o cinto e deu no couro do rapaz.


- Fora de casa! Rua! Vou te deserdar!


Foi quando tocou o interfone. E antes que o pai soubesse quem era, a empregada já havia pedido para subir. Era o João com sua mãe.


Enquanto o filho se recompunha no quarto, o pai, Dr. Mathias Müller Heisenberg , foi recebê-los na sala. A mãe de João, Sra. Carmem Albuquerque Gonsalez, veio falar sobre o namoro do seu filho com João, dizendo que consentia. Que, se o filho era feliz, ela também ficava. Que era melhor ser assim do que se arriscar com desconhecidos. Por isso, apenas queria conhecer o pai de Samuel. Para verificar se tudo ia bem. Que não se opunha até com um casamento. Disse também que era dona de uma das maiores redes de joalheria do Brasil, com representação até no exterior e que, enfim,  daria todo apoio no que precisasse.


Dr. Mathias ficou uma semana pensativo. E aos poucos foi mudando a ideia de obrigar seu filho a estudar fora. Que a faculdade de Artes nem seria tão mal. E que, apesar de tudo, casar seu filho com João até que... até que não seria tão ruim. Afinal...


Passado um ano, quando Samuel já estudava Artes, festejaram num cartório o tão esperado enlace matrimonial. Houve até padre que, mediante alguns entendimentos, concordou que a Igreja tinha que ser renovada e preparou um cerimônia. Bem reservada, claro.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Final de semana


Segunda-feira. Sala de escritório. O chefe sentado na cadeira atrás da mesa assinando papéis. Duas cadeiras menores à frente. O empregado entra e fica em pé.


(Chefe, sem olhar)

Trouxe os documentos?

(Empregado)

Não. O problema é que tá guardado num armário lá em cima em casa.

(Chefe, ainda sem olhar, com sorriso no canto da boca)

Essas coisas você deixa pra fazer final de semana...

(Empregado, com olhar baixo, dizendo para si em sussuros)

Eu não tenho final de semana.

(Chefe, para de assinar e olha sobre os óculos)

O quê?!

(Empregado)

Nada não, senhor... Amanhã eu trago.


Dia seguinte. Na mesma sala.


(Chefe)

Trouxe os documentos?...

(Empregado)

...

(Chefe)

Trouxe ou não?!

(Empregado)

Final de semana vejo isso, chefe.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Dezembro


Entro pois no fim 
sem sair eu do meio.
E o que pesa em mim
é o tempo sem freio.

               *

Do acúmulo dos dias
o que há de proveito?
A empáfia do respeito
ou o chá que esfria?

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Educação pela bolha


Plaf plaf. Plaf plaf.
Passei a vida a estourar
com dedos didáticos
bolhinhas de plástico.

Mas quando me vi 
por inteiro pressionado
rebolei longe pelos ares. 

domingo, 14 de novembro de 2021

Os trabalhos e os dias

Segunda foi um dia cansativo
Terça foi um dia cansativo
Quarta foi um dia cansativo
Quinta foi um dia cansativo
Sexta foi um dia cansativo
Sábado foi um dia cansativo
Domingo, que era um dia pra descansar,
sentiu uma dor no peito
e descansou em paz.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Finados

Como folha seca  
que se desprende
num baile insolente
em terra já deita

outubro e os desejos.
Na lápide, a rosa
é só o último beijo.
Novembro nasce, ora.

domingo, 10 de outubro de 2021

Lições sobre o tempo 

Uma das vantagens de um adolescente ter um animal de estimação, desses que só vivem 15 anos, é que já se aprende  - e domestica - de maneira bem real as relações afetivas que temos com o começo, o meio e o fim. 

sábado, 2 de outubro de 2021

Migração

Se o inverno se foi,
vai junto setembro.
Mas ainda tem um vento
atrás da orelha, boi.

              *

Outubro já mexe
orelhas de elefante
ao pouso leve
do voo distante.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Paiol


Uma árvore é mais bela que a palavra árvore.
A palavra árvore é bem mais que qualquer arma.
Mas a palavra arma também se faz bela ou feia.
(Como qualquer paixão pode ser feia ou bela.)
Por exemplo: armo-me de ódio ou medo ou flor.

Por isso, às vezes, é melhor deixá-la bem guardada
entre minerais e páginas de sono. Nos dicionários.
E só sacá-la quando for útil... Ou muito necessária.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

sábado, 4 de setembro de 2021

                              A Simone Conforto

O baile das saias


Ando nas estrelas
porque andar por baixo
anda muito chato.
Só verniz não espelha
solas de sapatos.

Curvo os arcos-íris
porque a curva do Homem
vai muito fechada.
Não flui, contradiz.
É ponta de faca.

Bailo de saias líquidas
porque pesa a armadura
do tédio e disfarces.
Bailo em núpcias
nos seios nus dos mares.

Das nuvens recolho
a lã que transborda
tardes cor de rosa.
E borda num sopro
a paz que renova.

Essa paz sou eu.
Em parte. Pois a outra
faz parte do breu.
Lua cheia. Lua nova.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

As chaves


Não saio de agosto
como quem sai de casa
sem chave que abra
memórias de bolso.

                *

Se setembro se abre
- portas invisíveis -
e o horizonte se fez,
vem por dentro a chave.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Divisão social do trabalho


O assaltante assaltou o professor
que estudava crimes.
Os crimes eram punidos, na forma da Lei, pelo juiz.
Que tinha livros de Ética e Direito Penal,
comprados na livraria tal, perto de casa,
e editado por famosa editora,
cuja secretária, solteira e assalariada,
tinha uma linda garota.
E assustada com as notícias dos jornais
- entre elas a do nosso perigoso assaltante -
queria que sua única flor se casasse com o juiz,
que, não se sabe por que questão
 - classe, orgulho ou paixão? -
acabou mesmo foi com a promotora.
Porém a moça, já bela e universitária, 
teve uma quedinha
- como quedas d'águas puras e cristalinas
mas, rio abaixo, arrastam cipós, terra e coração -
pelo professor.
Que, além de muitas outras histórias,
contou sobre o assalto e seu assaltante,
que - acredite! - ao final das contas se deu bem.
Pois nas mãos da garota 
- agora mulher, madura e escritora pródiga -
virou personagem de romance.
De best-seller internacional!
E assalto mesmo, meus bons leitores,
só na imaginação...
 
Posto que aqui tudo é paixão:
seria crime, não fosse ficcional.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nas prateleiras dos jornais


Certa vez, num dia de calor, um jornalista meu conhecido estava desesperado porque ia fechar a redação e não tinha arrumado matéria nenhuma. Então me chamou para entrar num ônibus com ele, dar uma entrevista e falar que estava "passando mal" por causa da temperatura. Desconversei e, para ele não ficar aborrecido, disse que estava atrasado para algo que tinha que fazer.

É sobre isso que quero comentar. A mídia precisa de um produto para vender. E esse produto tem que causar impacto. Sensação. Para isso tem que ser hiper-valorizado. Extraordinário. Mas um extraordinário que logo caia no esquecimento. Por isso é preciso de uma cadeia diária e incessante de eventos extraordinários.

Conheço gente que não sai de casa quase nunca (à noite então nunca) com medo de ser atacado por assaltantes ou seja lá o que for. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo aqueles noticiários policiais grotescos (e muitas delas são agressivas com parentes no próprio lar). Conheço gente que provavelmente vai ficar com medo do corona vírus para o resto da vida. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo noticias sobre a pandemia. Conheço pessoa que tem TOC de limpeza e higiene em casa, que, mesmo não trabalhando fora, nunca tem tempo pra nada. Água sanitária na pia da cozinha a todo momento, fervura na louça, pano com veja na casa umas três,  quatro vezes por dia etc. Quando não está limpando, fica à tarde inteira assistindo programas domésticos. Conheço gente (e muitas) que acreditam que todos, invariavelmente todos os políticos só roubam, mas não entende o que é esquerda, direita, fascismo, burguesia, sindicato, a história do Brasil e nem mesmo qual é a atribuição de um deputado federal, por exemplo. Essa mesma pessoa pode ter um comércio e na maioria das vezes sonega uma nota fiscal ou pede um empurrãozinho de alguma autoridade pública para resolver algo particular. Ela assiste o dia inteiro os escândalos dos políticos, seja no rádio indo trabalhar, no almoço assistindo o jornal pela tv no restaurante, ou brigando com o filho à noite porque está o atrapalhando. E ainda não satisfeito assiste tudo de novo antes de dormir e nem dá atenção a...vamos dizer... umas carícias antes de dormir para animar o casamento.

Enquanto isso indústria do jornalismo vende. Manipula bolsas. Quebra propositalmente o país para atender demandas de investidores que compram tudo a preço de banana, transforma instituições estratégicas e vitais (como saúde, energia, segurança, transportes e educação) em negócio privado, dando uma forcinha para os anunciantes, como se uma mão lavasse a outra. Derruba presidentes, elege seus queridinhos. E, para usar um clichê já conhecido no meio acadêmico, IN-FORMA, ou seja, formata as pessoas de fora pra dentro, jogando todos os padrões de costumes, de consumo desvairado e fútil na grande parcela humilde da população, almas vulneráveis sem o mínimo de senso crítico, acreditando que toda autoridade do mundo é um apresentador que ganha - diga-se de passagem - na casa das centenas de milhares de reais por mês. Assim a mídia cria seus próprios mitos, transformando-os em super-homens. irretocáveis, honestos, justos.

Os problemas diários no país e no mundo existem. Não podemos negar. O vírus existe. A violência contra os negros existe. O roubo do político existe. O aquecimento global existe. Mas o que quero dizer é que esses problemas são tratados como mercadoria. São colocados sem uma ótica crítica. Sem as causas primeiras ou contextualizados. Sem a parcela de culpa que o próprio capitalismo tem nisso tudo. Não há esforços nenhum para resolver esses problemas. Porque, ao resolvê-los, não haverá mais notícia. Não haverá mais mercado. E toda roda gigante para de girar.

Por fim, o que vemos, nesse histerismo todo da mídia, é o fortalecimento de mais um mercado: o da indústria farmacêutica. De esquizofrênicos. De compulsivos. De depressivos. De neuróticos. De pessoas com pânico. Violentas. Assustadas. Com todos os distúrbios psiquiátricos que se possa imaginar. Ela molda uma massa sem capacidade de reação ou resposta: apática. Ela impõe sua ordem do discurso: de poder. Ela não quer cidadãos conscientes, por mais que diga ao contrário. Pois ter consciência para mídia é fazer as pessoas acreditarem que o único modo de viver seria do jeito que a ela lhe é conveniente, Idolatrando seus eternos Robertos Carlos; fazendo acreditar que a democracia se resume num voto no domingo de quatro e quatro anos e o resto seria por conta da autoridade indiscutível do governante; curtir a seleção brasileira, como se isso se resumisse no maior espírito de nacionalidade possível. E orar, admitindo a culpa e incapacidade, para as coisas melhorarem. Na verdade, companheiros e companheiras, ela não está nem aí para você, para sua humana dignidade. O que você pensa, a dor que você sente é descartável. Você é o próprio produto em série nas prateleiras das casas (que nem esse valor é mais) de 1,99. É só não vir com defeito ou quebrar. Se não, lixo.

Ivo de Souza





sábado, 21 de agosto de 2021

O dentro e o fora: o território

                         A Leonardo Canabrava


Você diz ter viajado à Europa,
ter conhecido o Louvre,
mas mal a Monalisa lhe sorri
veio-lhe a vontade (que galopa!)
de fazer um belo e nobre xixi.

Já eu fiquei por aqui.
Desenhando musas sob lençóis,
colhendo flores das toalhas
sobre as mesas. E das marcas
do tempo, um penico bem já diz.

Já no metrô alemão indaga-se
o que faz, qual pátria o traz ali.
- Pois não. Latino de todos lares,
manhãs de todos os destinos.
Do Rio, persigo o mar sem fim.

Mas eu fiquei por aqui.
Fiz do teto a areia das horas,
relógio cego ao sol do Saara.
Das paredes, largas escarpas,
fóssil, mármore, memória.
Do ventilador, córregos, exílio
que renova e faz o que sou.
Das vozes quietas, livros-pilastras
aos vastos sótãos sem véus,
ou aos calabouços do metrô.

Diz que Nova York beijou a Rússia,
que sexo e carícia não tem país
nem língua, raça ou mesmo raiz.
Que de Kremilin aos pés da Liberdade
flertou com a ruiva cor que invade.

Já eu... bem... fiquei por aqui.
Beijei a piteira do cigarro,
fiz do fio esguio da fumaça
a sereia dinamarquesa.
E como Prometeu Acorrentado
roubo o fogo à humana proeza.

*     *     *

Os territórios são nascentes
de cristal. Brotam de ossos,
da vaidade são rios só nossos
e tocam o ar, ilimitadamente.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Aquela prosa


Não ri não que é sério, cara. Sempre honrei meus compromissos, sempre fui firme e certeiro. O que falam por aí é mentira. Temos disciplina, método, organização e, por mais que pareça absurdo, até uma hierarquia própria. Realmente não sei o que aconteceu, se cedi, se fui além dos limites. Mas naquele dia, já no primeiro sopro da madrugada, saindo da única e já condenada casa da rua, espremida por prédios residenciais de classe média em Laranjeiras, onde tive a reunião decisiva, parei numa praça em frente, frequentada por jovens da Zona Sul. Um pouco afastada de um casal lascivo, pronto para o sexo, e sob ruídos de cantorias desafinadas de Caetano Veloso, violão, e tudo mais, conheci uma moça. Vestia uma estampa indiana solta no corpo. A etiqueta desengonçada pra fora, numa pequena ondulação na nuca desprovida, denunciava a marca conhecida e cara. As sandálias deixavam visíveis as unhas sem esmaltes mas bem tratadas e nas axilas de neve surgiam umas granulações, de talvez um ou dois dias por fazer, não mais que isso - como fino pó numa pia de mármore.   

Como me viu fumar um Marlboro, repentinamente veio e, num ziguezague elástico na voz e no corpo malabarista, me pediu isqueiro. Com um copo descartável transbordando numa das mãos, bebida que parecia uma mistura de coca-cola e cachaça, e na outra um cigarro enrolado, disse, depois de um tempo de conversa, mas não suficiente para uma intimidade maior, pelo menos para quem não reparasse nos seus seios pequeninos, desprovidos de sutiã, que  escorregavam numa suave curva até os bicos, e talvez estimulados - bem rígidos, prontos para germinar - ao roçar o fino tecido da roupa e do desejo. Disse com todo brilho das pupilas negras, dilatadas, num sorriso desmedido e orgulhoso, cuja falta de um único dente atrás, apesar de ainda nova, era um detalhe  insignificante, mas que, surpreendentemente, fazia-lhe até um certo charme. Disse, enfim, com toda sonoridade jovial e aberta das vogais, que era anarquista.

Então, mais que interessado, com uma leve recaída talvez, deixei-me levar pela sua prosa, ainda que meio embaralhada, como quem sai de um expediente de trabalho extenuante  sexta-feira para falar bobagens, e perguntei, num tom cordial mas firme (como exigia o assunto), o que ela achava de Mikhail Bakunin.

- O quê?
- Mikhail Bakunin.
- Fala de novo?
- Bakunin. Entende?

Um raio partiu o velho mastro em mar de ressaca! E seu espírito de paz e amor esvaneceu-se num estampido seco e surdo:

- O quê! Bacanal?! Tá achando o quê! Que só porque somos anarquistas e tá tudo liberado. Respeita, hein? Isso é muito sério! Exijo respeito. Sou revolucionária! E você?! Quem pensa que é?!...

Tentei emendar mais uma vez, mas já era tarde. Ela me chamava de velho babão. (Nunca imaginei que aos 40 já seria velho babão.) E toda alegria melada e amarga do seu copo já escorria pelo meu rosto até o bolso interno do blazer, onde guardava as únicas coordenadas, escritas num papel de caderno - prova única e que seria queimada ao fim de tudo. 
 
- Puta merda! - desabafei. A essa altura já sozinho e olhando pro copo abandonado na calçada.

Tirei o rascunho e tava tudo borrado. Ilegível! Como  explicaria pro chefe que perdi as instruções. Nunca em minha vida cometera uma falha! Mas agora tudo desmoronou:  o mapa, os horários, a quantidade de dinamite, absolutamente tudo! Como explicaria que o atentado no jantar do banqueiro com o ministro da fazenda amanhã - oportunidade única e imprescindível para a paz e conquista do povo - foi cancelado por uma hippie?! Anarquista!

- Puta merda! - chutei o plástico ordinário, que se espatifou mas não saiu do lugar, enquanto segurava o coldre da 45 no peito encharcado, ao lado esquerdo, escondido sob a costura, que tecia o preto. 

sábado, 31 de julho de 2021

À beira


De bruços pro mundo
bem olho lá fora
e tudo me embota
quanto o mais circundo.

               *
Descarto o soluço
junto ao calendário.
De julho já saio,
mas ainda debruço.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Oitivas

Roeu tanto as unhas
que todos os dentes
ora se acham ausentes.
Já elas, testemunhas.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Mãe


Fui no quarto.
Ela dormia nesse
e acordava em outro.

Outro ao lado
cuja vigília - vê-se -
era foto em repouso.

Que no de baixo
pousa lembrança. De três
quartos - e meio - não ouso

chamá-la ao fato.
Se é sanha não sei,
para um século há pouco.

Fui no quarto.
Ela dormia de vez.
Era só sonho. Era criança.

domingo, 25 de julho de 2021

Cabides

Antes de sair à missa
no próximo domingo,
Maria, passa na frente,
já que espelho não mente:
pois, se já é curta a vida,
bem pior em desalinho.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Seu Francisco


No hospital da ordem terceira de São Francisco 
                                                                [da Penitência
tudo parece dormir.
As paredes recolhem as vozes do dia.
Fantasmas de pijamas bocejam no pátio 
                                                          [do esquecimento.
Sequer o breu das árvores serve-lhes 
                                                                [como estímulo.
Na capela, Jesus Cristo olha para o vazio sem olhos.
                                                                           [Sem dor
e esperança, duvida de si próprio.
Já seu Francisco encaminha-se para uma
                                                                     [enfermaria
e, como se orasse, repousa os pés para cima.
Sem solução
e cansado de tanto bater perna por aí,
não vê a hora de ir pra casa, tomar um banho 
                                                                          [e dormir
na tão sonhada paz de Deus.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Corporal


Patético seria te prometer
Que na carne não rasga a veia
Que na veia não rasga o sangue
Que no sangue não rasga a vida
Que a vida não se rasga em estética.

E depois, de cara bem lavada
ainda dizer que não serve pra nada!

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Classe média

...notei que ela me agradecia, 
revelando melhor sua delicada composição, Drummond


Entre sacos, garrafas
de vidro, latas
de coca, cacos
de lares guardados
em caixas de rivotril.

Entre o acúmulo
diário da fofoca
varrida, de pelos
de gato, cão, restos 
de pele, unhas roídas,
bandaids de tédios.

Entre o gozo asfixiado
numa borracha, entre
o espiar cego da escada,
que queda em dominós,
ou o alçar súbito, veloz.

Entre códigos de barras,
o consumo atroz da classe
média. Das portas atrás
das casas. Das casas atrás
dos desejos. Dos desejos atrás
dos medos. E os medos atrás
das farpas na pontas dos dedos.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se vê
e ainda o que à deriva vai
como submerso iceberg
apartado de nossas vidas
polares, em inexorável fluir
as fugas dos sons dos ecos
nas paredes do céu e do mar.

Entre todas essas coisas
e ainda o que não se crê,
creia-me: eu achei (talvez
comprada às pressas,
tal como o vazio diário
lotado de bugigangas,
plásticos, calças, marcas,
cabides sem fala ou destino,
tal como o frio alvejado
das prateleiras sob o ar-
condicionado-a-ser-coisa
em toda humana causa).

Eu juro! Não foi um furto
de poeta ou anjo torto.
Em vaso, achei-a na terra,
que nos abraça aos pés
e encharca o dia e a alma.
De resistência singela
era pura, era bela, era flor.
Se fora descarte de lixo,
hoje bem a rego. E sou.
Feliz, sou homem. Rico.


quarta-feira, 30 de junho de 2021

Em junho


Ao final do outono
segue-se o inverno.
Recolho-me em sonho
e entrego-me aberto.

                *

Os cacos dos dias
reúno em mosaico.
Se durmo em vigília,
dos sonhos não saio.

domingo, 20 de junho de 2021

Carta sobre o Novo Ensino Médio


Ilustres,

Peço um minuto para algumas palavras necessárias e importantes sobre a proposta do Novo Ensino Médio promovida, na calada da noite, pelo governo estadual do Rio sem a consulta aprofundada dos envolvidos e da sociedade.
 

Para não dar ar de aborrecido diremos SIM à pergunta: Vale a pena fazer um novo ensino médio? Mas seguem-se importantes ressalvas, que  -  saindo da aparência enganosa da publicidade  -  darão um sentido autêntico e honesto ao termo NOVO. Aí sim começaremos com o fundamental, já que tratar algo como "novo" através de truques velhos, além de má fé, tem cheiro podre de campanha política.

Senão vejamos como ficaria um verdadeiro NOVO - com ares frescos da manhã. Em um turno as matérias tradicionais; no outro, cursos de habilidades específicas. Assim, os alunos não vão sair perdendo, pois:

- terão os conhecimentos de humanidades e de ciências necessários para boa formação;
- terão aprimoradas habilidades específicas para quem quiser logo ingressar no mercado de trabalho, sem perder a perspectiva de um curso superior; 
- ficarão ocupados em dois turnos, evitando os perigos da rua e não dando trabalho aos pais. 

Em contraparte, os professores também sairão ganhando: 

- irá se contratar mais profissionais da educação;
- irá incentivar a formação de mais profissionais, incrementando a vida nas universidades (seja particular ou pública); 
- dará uma vida única ao profissional, não tendo que dividir com outras atividades para compor sua renda;
- além de aumentar a autoestima não só dos docentes mas de todos envolvidos.


Mas infelizmente, através de cortes com o falseamento do termo interdisciplinariedade, tirando a obrigatoriedade do ensino integral de Biologia, Química, Física, Espanhol, História, Sociologia, Filosofia e Educação Física, as únicas obsessões do governo são:

- tirar o acesso das camadas mais baixas a um ensino amplo e de qualidade;
- empurrá-los para um mercado de trabalho, cuja mão de obra é barata;
- aculturá-los de toda questão social e política - e ainda éticas e afetivas -, tornado-os acríticos e meros serviçais automatizados; 
- extinguir professores concursados e colocar terceirizados, com garantias trabalhistas precárias;
- reduzir seus salários com a pressão de contingentes de desempregados;
- moldá-los numa aula dirigida e estéril, sem debates vivos e críticos; 
- criar disputas internas em nome de uma "pseudo-meritocracia";
- evitar reivindicações, como as  greves, previstas pela Constituição; 
- sufocar o amplo debate democrático sobre a condução pedagógica.


Diante disso, é hora dos pais, alunos, profissionais da educação (de merendeiras a diretores)... enfim, é hora de TODOS dizerem NÃO ao "Novo Ensino Médio" sem o amplo e imprescindível debate popular.


Grato pela atenção,

Prof. Ivonilton Gonçalves de Souza

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Psicanalítico


Poderia rimar maio
à palavra desmaio.
Mas fazê-lo? Pra quê?
Não é poesia, é apelo.
Dramalhão de tevê.

                *        

Em desmaio de sonso
é mais sábio dormir.
Mais verdade no sonho
que o sapo o verbo polir.



sexta-feira, 28 de maio de 2021

O depois das coisas


Sim. Haverá certo dia
que não se deseja mais
que a exata lucidez do sol
a esquadrinhar as sombras
entre as paredes e memórias
da sua tênue descida.

Sim. Haverá certo dia
que irá valer muito mais
a nudez sem voz do azul
descortinado do céu
que a policromia veloz
do beija-flor audaz.

Sim. Haverá certo dia
que basta uma simples brisa
pra se ter mais aventura
que no cume do Himalaia.
E a lassidão da preguiça
vem pôr fim a bruta luta.

Esse dia será tão certo 
como o curso das formigas,
o rezar contas do terço,
o inabalável metal
do sino às seis da tarde
e a fluidez da vogal

sem palavra. Já no berço
circunspecto da idade,
emenda-se os fios da vida
com a certeza da saudade.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Mão de obra excedente


A mão de obra excedente (desempregados) é um grande negócio para o capitalismo. Abaixa os salários, pressiona quem está trabalhando a produzir como um cordeiro, que não se sabe realmente se é de Deus, "justifica" a não implementação de benefícios trabalhistas, pois "não teria pra todos". E agora serve como cabo eleitoral de Bolsonaro para atacar as necessárias medidas de isolamento contra a Covid, em vez de dar suporte social. 

O que  há é uma grande mentira quando o poder executivo, fantoche dos megas empresários, diz que quer solucionar o desemprego. Não quer! O capitalismo, da maneira avassaladora que é dado, precisa dele como escudo para reivindicações trabalhistas, conquanto que esse nível não fique fora de certos limites, o que acarretaria distúrbios  sociais e, pior que isso, um endividamento que teria efeito cascata, atingindo até os credores. 

Mesmo assim parece que a resiliência, a passividade dos brasileiros (até certo ponto justificável por um "salve-se quem puder" mas com complexo de vira-lata), sob comando de igrejas de má fé, entusiasma a alta burguesia a suportar mais que um limite razoável de miseráveis, levando sem piedade - e pondo toda culpa na falaciosa meritocracia - muita gente para o céu bem antes do que se imagina. Multiplicando mais fome do que pão. Mais desesperança que confraternização.

terça-feira, 11 de maio de 2021

O encontro


Como se fechasse botões pelo chão
a vida, meu caro e nobre amigo
é agulha frágil como uma formiga.
Mas com braços de aço quando suporta
em suas costas a folha verde e espessa.

Até então encontrar o invisível ponto
caminho da tinta fresca, uma bota.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Só mas aerossol


Apesar de abril
dentro ainda trancado.
Mas bem que o sol viu
um coração alado.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Sobre amigos antigos


A impressão de que certos amigos de longa data te evitam nos leva a pensar que querem se livrar de ti por alguma incompatibilidade de espírito ou mesmo preconceito moral. Mas numa observação mais profunda podemos levantar a suspeita de que, inconscientemente ou não, querem, na verdade, se livrar do próprio passado num gesto instintivo - como se tivessem receio de haver uma testemunha viva de atos que lhes causam, para usar um termo ameno, incômodos na consciência. Todavia, posso - num regozijo dilacerante - confortá-los lembrando que a reciprocidade é a mesma.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Por trás da história


Hoje vi um preto correndo!
Olhava pra trás pra trás...
E sumia na cruz da esquina.
Mas veja: não era o ladrão!!
Era o porém. Era a vítima.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

O cara sem crédito

                     "O poeta é um fingidor", Pessoa



Fui desacreditado quando nasci.

Me jogaram no orfanato dos homens

já crescidos, cujas faces sérias

tecem sombras e vários mistérios.


Fui desacreditado na escola.

- Seu filho tem déficit de atenção. 

Não lê. Não escreve. Não ata cordas 

da vida nem mesmo as dos sapatos.


Fui desacreditado no primeiro amor.

No segundo no terceiro... E no quarto

descobri a pálida nudez das paredes:

mais tesão que a palavra emplumada.


Fui desacreditado por vizinhos:

- É um cara muito, mas muito esquisito!

No trabalho:

- Está sempre, mas sempre atrasado!

Por colegas:

- Por aí vai... sem pé, cabeça ou destino!


Enfim, fui desacreditado até neste poema.

Por bem! Pois só assim podemos, irmãos

fingir juntos - e acreditar em alguma coisa.



sábado, 10 de abril de 2021

Barroco



Se me coloco no lugar do outro,

não sei com quem sou, perco-me já.

Mas se sigo com a bunda no sofá,

num excesso só meu, estarei louco.


Se parte de mim se parte no mundo,

cabe-me dentro a metade confusa,

aquela que me pertence e não muda.

E por ser tão inteiro até me confundo.


Cada um tem seu ser e sua metade;

cada metade de um que, por completo

ser, por silencioso e tão discreto:


é concha no mar que aqui dentro invade.

Sob céu, somos sol e lua, cada estrela.

Universo - e eternidade rasteira.


domingo, 28 de março de 2021

                              Inspirado na música No Céu da Tarde, de Aloysio Neves.


                              Para  Aloysio Neves


Nuvem que passa


Poderia ser um poema

sobre aquele primeiro beijo,

que estalava louco no pátio

do desejo que se desvenda.


Poderia ser um projeto

cujas escalas musicais

violam cordas do horizonte,

atrás do pássaro liberto.


Poderia ser um discurso

com capas, capelos e palmas

ecoadas no ar etílico

da aura do tempo, ao fim do curso.


Poderia ser um pedido

de noivado sob luz de lua,

testemunha silente do ato

em sua permuta de destinos.


Poderia ser uma carta

do filho-bronze que não veio,

do amor de prata que se foi,

do leito da dor que indaga.


Poderia ser sim: o fim.

A falsificação da resposta,

a punhalada do abismo,

cota-céu sob os pés de Caim.


Cenho sem senhas. Fantasia,

antigos carnavais. O pó,

halo sem luz, lustre sem sala.

Nó que pende. Tudo podia!


Porém, nesse dia que invade,

sentado ao ócio da varanda,

só olhava a nuvem que sumia.

E era branca, no céu da tarde.




sábado, 20 de março de 2021

Páthos


Bebe um copo d'água
vai à janela
abre-a
deixa o sol invadir seu corpo, plenamente
o ar os pulmões
o verde as árvores
o azul seu espírito oblíquo e nu.

Que quando então terminar este poema
(isso é um poema?)
a vida não terá terminado ainda
e o assunto da faca...

À chave, bem trancado na gaveta da confissão.

domingo, 7 de março de 2021

                       A Suzana Vargas

Meu igual



Nicolau gostava de se enterrar

na areia e ficar com a bunda no sol.

Como centro gravitacional do corpo,

dizia toda energia vinha dali.

Essa abundância brutal o faz sorrir.


Já Maria bebia água com purpurina.

Dizia que assim teria o infinito

dentro de si. Todas as estrelas-luz:

cometas e luas e planetas-pós.

Sim. Tê-lo-ia guardado quando bem só.


Eduardo andava de costas na rua.

Pois, para ele, andar de costas é estar

frente a frente com o que já passou.

É ter o futuro bem ali atrás,

como quem cutuca e rouba-lhe a paz.


Mas Maria, Eduardo e mesmo Nicolau,

que nunca se viram, eram iguais.

Separados, juntos na diferença

que equipara já os homens desde cedo:

o medo de se ver outro no espelho.

sábado, 6 de março de 2021

Sobre as profissões


Não basta dentro de uma universidade haver formação técnica. Advogados, engenheiros, dentistas, administradores, designers etc. só serão verdadeiros profissionais quando, além do saber fazer prático e objetivo, tratarem seus clientes não apenas como mais um negócio, mas como seres humanos que, além das necessidades materiais, são, sobretudo, preenchidos - da mesma forma que colorimos desenhos no papel - por sentimentos e afetos.

segunda-feira, 1 de março de 2021

espelho


existe

de tudo


na poesia


do todo

existo

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Em casa


Não leve isso como um poema,

já que hoje não quis escrever.

Quis o branco do teto no quarto, 

desabafar aos dedos dos pés,

inquirir um mosquito que distrai,

contar planos aos travesseiros.

E inscrever-me na paz da solidão.


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Bukowski e a literatura


Outro dia um amigo sociólogo (detalhe que pode nos ajudar) comentou que a literatura tinha que ser objetiva. E citou Bukowski como exemplo. Ora, se o papel da literatura é ser objetiva, ela perde sua razão de ser. Pelo menos no sentido pleno do termo. Mas por quê? Porque o papel da literatura não é dar respostas prontas a problemas. Assim ela não se confunde com o discurso religioso, com a sociologia, com a filosofia, com a ciência, com a psicologia, com retórica jurídica. Ela possui, portanto, um estatuto próprio, uma singularidade. Singularidade que, claro, se interpenetra em outros saberes, mas não é nenhum deles. Não cabe ao texto literário afirmar, mas sim sugerir o que poderia ser, cuja decisão está mais nas mãos do leitor, tornando-o ativo e, de certa maneira, co-autor da obra. Prova isso o fracasso de Bentinho (ex-seminarista e advogado) de descobrir a verdade de Capitu, cabendo a suposta responsabilidade a quem lê o romance de Machado de Assis.


Teria sido mais fácil, se não era esse o propósito da afirmação, dizer que a literatura deveria ser simples. Nesse sentido podemos concordar. Tendo em vista que uma mensagem simples pode ser extremamente bem sucedida e trazer experiências sinceras, vivas e imediatas. E ainda assim, não perder todo caleidoscópio semântico tão característico ao texto literário. Cite-se como exemplo uma Adélia Prado, um "No meio do caminho", de Drummond, ou mesmo uma crônica de Rubem Braga...


Mas vamos, enfim, ao tão famoso Bukowski. Evidentemente que a crítica literária não se esgota nela mesma. Depois da crítica biográfica, sociológica, positivista e impressionista, teve seu estatuto definido com o Estruturalismo e A nova crítica, passando nos tempos atuais por desconstruções e mergulhando num jogo infindável de significacões, espelhamentos e transversalidades com outras disciplinas. E o que isso tem a ver com o citado autor? Simples. Se a obra literária autêntica revela-se através de várias significacões, quanto mais ela for rica nesse sentido mais possibilidades interpretativas se abrem. E mais uma vez: isso não se confunde com simplicidade, pois uma "pedra" no poema famoso de Drummond  pode ter vários sentidos, sendo uma construção extremamente singela. O mesmo, porém, não se pode dizer de Bukowski. Seu caráter direto e objetivo, como quer meu amigo, não nos leva a grandes voos da imaginação. A não ser a um mundo capitalista com valores deteriorados e consumistas (por isso é pop). Talvez o mais importante nesse autor seja justamente essa sátira. Essa representação do "American way of life". Nada mais que isso. Já ouvi dizer, muito bem colocado, aliás, que a literatura europeia (Proust, Camus, Sartre etc) estaria mais preocupada com questões ontológicas e a Norte Americana com questões práticas, pragmáticas. Isso bem o mostra Umberto Eco em "Apocalípticos e Integrados", onde, comparando Proust com Hemingway, diz que as emoções de "Em busca do tempo perdido" se passam de maneira mais lenta, de indas e vindas, demoram a amadurecer, aos poucos vão construindo sentimentos e sensacões, que a qualquer momento podem escapar; enquanto no livro "O velho e o mar", do outro autor, tudo se dá de uma maneira mais rápida, mais consumível, mais fugaz. E por isso mesmo mais impactante.


Mas nem tudo está perdido para Bukowski. Se não traz riqueza interpretativa, labirintos da alma, questionamentos existenciais, matafísica, pode se servir muito bem para uma análise contundente do modo de vida americano e do homem moderno em geral. Por isso, se presta sim a uma análise mais sociológica, como um Zola de outros tempos ou uma sátira religiosa de Voltaire, do que propriamente literária. Se presta mais a traçar perfis de uma sociedade, de tipos e de uma época do que enquadrá-la em riquezas de imagens e metáforas. Não há muitos rumos aonde seguir. Os personagens são planos, óbvios, as ações secas, os propósitos bem definidos. A linguagem surpreende por um coloquialismo audaz para época. Mas nada de revolucionário como um Guimarães Rosa ou Joyce. Nada que fuja muito ao senso comum. Com excessão de uma dose de aventura, rebeldia e sarcasmo, acompanhados naturalmente com algumas garrafas de whisky. E isso já diz tudo.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, Paulo Freire


Os livros e a parede


Com celular numa das mãos e no meio de uma obra, seu Jorge, 39 anos, 4a série incompleta (ou melhor, por completar junto com o reboco de seu barraco), pedreiro de profissão - e olha que diziam ser bom nisso - coçava a cabeça com um metro e tentava explicar. Mas...

- Pois então, seu Jorge. Na parede. Tá muito feio, entende?

- Sei. Mas é que...

- Tenho uma certa pressa. Tá tudo mofado. Infiltração, entende?

- Sei... É que agora...

- Meu filho tá com asma, minha mãe tá com renite. E minha esposa não para de reclamar, entende?

- Sei... Como eu ia dizendo....

- É bem atrás da estante. E tem livros. Muitos livros. Alguns raros até. É bem atrás deles. Uma mancha enorme... E preciso dos livros inteiros. Tenho que terminar meu doutorado, entende?

- Sei. Mas...

- E ando meio sem dinheiro, seu Jorge. Mas tenho que resolver isso urgentemente. Acho que vem do banheiro, do cano do banheiro. É uma mancha que caberia duas pessoas, entende?

- Sei. Olha...

- Então, seu Jorge. Você sabe como resolver isso e por quanto vai ficar?

- Sei... É o que eu tava tentando te dizer... 

- Então diga logo, seu Jorge, diga... Por quanto, bem baratinho, por favor... Por quanto sai?...

- Aí... dr. Arnaldo... não sei...

- Como não sabe?!

- É que eu tenho que ir aí estudar.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Nômade


já andei com playboy

já andei com bandido

já andei com hippie

e bicha macumbeiro


hoje não ando com ninguém

e me encontro

                           por inteiro

domingo, 24 de janeiro de 2021

                                         A Cláudia Rocha


Poema dos sete erros


Ainda que o juízo, amor

seja sinuoso tal rio

que dos altos vales cai

e se biparte - igual setas 

de relógio - por lâminas

afiadíssimas de pedras,

ainda é isso: mangue e calor.


Ainda que seja estranho,

ainda é juízo sim: a raiz

do raio que reparte o céu

da erva que reparte terra

da terra que reparte homens

dos homens desajuizados

cujo ar é de chumbo e estanho.


Há juízo ainda em borboleta

sem rumo certo, na concha

do coração nu e profundo,

nos nós cegos dos seus dedos,

das mãos cujos alvos ossos

rangem como velha porta

de casa escura, à espreita.


Há juízo ainda na revolta

dos mares, na tempestade

sem perdão (lâmina arisca),

e ainda na fome infinita

de quem não tem nem sol, paz

e pão. Mas peito aberto na fé

pois o que prende um dia solta.


Tal piscar de vagalume,

vi mais juízo na gramática

etílica e vil dos poetas,

a vasculhar sal e silêncios

nos passinhos das formigas,

do que o pisar (des)botado

que sentencia - e resume.


Tal relâmpago no bosque,

vi mais juízo da criança

sentada ao meio-fio do mundo

em contar pingos na poça

do que o general de estrelas

contar vitórias e baixas,

igual baiacu que incha e explode.


Se me pedes juízo, amor

te digo que ainda prefiro

um erro seguro na mão 

a dois acertos voando.

É claro, não como pássaros

mas como míssil balístico

de precisão incerta e dor.



domingo, 10 de janeiro de 2021

O poema e o varal


Sim! Escrever um poema

é bem mais fácil, amiga,

do que desvendar o esquema

de barbantes varal acima.


Para montar um varal

tem que bem entender da arte

que divide o fio em igual

cujo gancho alça sua parte.


Mas para escrever um verso

basta a força plena, corpo.

De dentro sai como feto

e ganha alma, nome e rosto.


Se o varal procura regra

o poema é, após forte chuva,

úmido arfar, suor da terra

ao sol e à palavra oculta.


Se o varal é de vidro, quebra,

o poema é duro, de pedra.

Se o varal é cálculo, lógico,

o poema é fagulha, só ócio.


Diante tudo isso, senhora,

melhor mandá-lo consertar.

E enquanto ainda há sol lá fora,

estender versos sob o ar.

domingo, 3 de janeiro de 2021

 

O dentro e o fora: o tempo

 

 

No dia 20 de outubro

ela parou de marcar seu calendário.

 

Parou como o azul

para na gaivota.

 

Parou como o monte

para na névoa.

 

Parou como o oceano

para na geleira.

 

Parou como o infinito

para no instante.

 

O ano? – agora não importa mais.

Se era manhã ou tarde, não importa.

Se era frio ou calor, não importa.

Se desatino ou dor, não importa.

Se cristã era, não se sabe: tanto faz.

 

Foi no dia 20, mês de outubro,

bem atrás da porta, no armário

cujas roupas de lã, luto e veludo

(ou de alguma rima da infância)

que ela se fechou na lembrança

bem juntinha ao seu calendário.

 

Talvez percebesse que, daí em diante, todos os dias seriam dia 20 de outubro.

Ou de qualquer outro mês.

 

Como todas moscas nas mesmas xícaras de café ao amanhecer

como todo vento em folhas secas é silêncio de chuva e saudade

como todo morder de maçã é como pá que escava e fere a terra

como todo mato é afiadíssimo como facas apontadas para o céu

e todo céu é escudo de chumbo antes da tempestade chegar

e ainda toda impotência das buzinas na av. Presidente Vargas (teria trabalhado lá?)

                                                                              [ao sol da tarde, a mesma de séculos

e os séculos os mesmos a cada gesto intolerante e inafiançável

                                                                                         [do homem na natureza.

                                                                                           

 Foi assim que no dia 20 de outubro

ela parou de marcar seu calendário.

 

Mas no dia 21...

Bem... esse dia...

Esse um não existia mais.