segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Nas prateleiras dos jornais


Certa vez, num dia de calor, um jornalista meu conhecido estava desesperado porque ia fechar a redação e não tinha arrumado matéria nenhuma. Então me chamou para entrar num ônibus com ele, dar uma entrevista e falar que estava "passando mal" por causa da temperatura. Desconversei e, para ele não ficar aborrecido, disse que estava atrasado para algo que tinha que fazer.

É sobre isso que quero comentar. A mídia precisa de um produto para vender. E esse produto tem que causar impacto. Sensação. Para isso tem que ser hiper-valorizado. Extraordinário. Mas um extraordinário que logo caia no esquecimento. Por isso é preciso de uma cadeia diária e incessante de eventos extraordinários.

Conheço gente que não sai de casa quase nunca (à noite então nunca) com medo de ser atacado por assaltantes ou seja lá o que for. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo aqueles noticiários policiais grotescos (e muitas delas são agressivas com parentes no próprio lar). Conheço gente que provavelmente vai ficar com medo do corona vírus para o resto da vida. Essa pessoa passa o dia inteiro vendo noticias sobre a pandemia. Conheço pessoa que tem TOC de limpeza e higiene em casa, que, mesmo não trabalhando fora, nunca tem tempo pra nada. Água sanitária na pia da cozinha a todo momento, fervura na louça, pano com veja na casa umas três,  quatro vezes por dia etc. Quando não está limpando, fica à tarde inteira assistindo programas domésticos. Conheço gente (e muitas) que acreditam que todos, invariavelmente todos os políticos só roubam, mas não entende o que é esquerda, direita, fascismo, burguesia, sindicato, a história do Brasil e nem mesmo qual é a atribuição de um deputado federal, por exemplo. Essa mesma pessoa pode ter um comércio e na maioria das vezes sonega uma nota fiscal ou pede um empurrãozinho de alguma autoridade pública para resolver algo particular. Ela assiste o dia inteiro os escândalos dos políticos, seja no rádio indo trabalhar, no almoço assistindo o jornal pela tv no restaurante, ou brigando com o filho à noite porque está o atrapalhando. E ainda não satisfeito assiste tudo de novo antes de dormir e nem dá atenção a...vamos dizer... umas carícias antes de dormir para animar o casamento.

Enquanto isso indústria do jornalismo vende. Manipula bolsas. Quebra propositalmente o país para atender demandas de investidores que compram tudo a preço de banana, transforma instituições estratégicas e vitais (como saúde, energia, segurança, transportes e educação) em negócio privado, dando uma forcinha para os anunciantes, como se uma mão lavasse a outra. Derruba presidentes, elege seus queridinhos. E, para usar um clichê já conhecido no meio acadêmico, IN-FORMA, ou seja, formata as pessoas de fora pra dentro, jogando todos os padrões de costumes, de consumo desvairado e fútil na grande parcela humilde da população, almas vulneráveis sem o mínimo de senso crítico, acreditando que toda autoridade do mundo é um apresentador que ganha - diga-se de passagem - na casa das centenas de milhares de reais por mês. Assim a mídia cria seus próprios mitos, transformando-os em super-homens. irretocáveis, honestos, justos.

Os problemas diários no país e no mundo existem. Não podemos negar. O vírus existe. A violência contra os negros existe. O roubo do político existe. O aquecimento global existe. Mas o que quero dizer é que esses problemas são tratados como mercadoria. São colocados sem uma ótica crítica. Sem as causas primeiras ou contextualizados. Sem a parcela de culpa que o próprio capitalismo tem nisso tudo. Não há esforços nenhum para resolver esses problemas. Porque, ao resolvê-los, não haverá mais notícia. Não haverá mais mercado. E toda roda gigante para de girar.

Por fim, o que vemos, nesse histerismo todo da mídia, é o fortalecimento de mais um mercado: o da indústria farmacêutica. De esquizofrênicos. De compulsivos. De depressivos. De neuróticos. De pessoas com pânico. Violentas. Assustadas. Com todos os distúrbios psiquiátricos que se possa imaginar. Ela molda uma massa sem capacidade de reação ou resposta: apática. Ela impõe sua ordem do discurso: de poder. Ela não quer cidadãos conscientes, por mais que diga ao contrário. Pois ter consciência para mídia é fazer as pessoas acreditarem que o único modo de viver seria do jeito que a ela lhe é conveniente, Idolatrando seus eternos Robertos Carlos; fazendo acreditar que a democracia se resume num voto no domingo de quatro e quatro anos e o resto seria por conta da autoridade indiscutível do governante; curtir a seleção brasileira, como se isso se resumisse no maior espírito de nacionalidade possível. E orar, admitindo a culpa e incapacidade, para as coisas melhorarem. Na verdade, companheiros e companheiras, ela não está nem aí para você, para sua humana dignidade. O que você pensa, a dor que você sente é descartável. Você é o próprio produto em série nas prateleiras das casas (que nem esse valor é mais) de 1,99. É só não vir com defeito ou quebrar. Se não, lixo.

Ivo de Souza





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