Nômade
já andei com playboy
já andei com bandido
já andei com hippie
e bicha macumbeiro
hoje não ando com ninguém
e me encontro
por inteiro
A Cláudia Rocha
Poema dos sete erros
Ainda que o juízo, amor
seja sinuoso tal rio
que dos altos vales cai
e se biparte - igual setas
de relógio - por lâminas
afiadíssimas de pedras,
ainda é isso: mangue e calor.
Ainda que seja estranho,
ainda é juízo sim: a raiz
do raio que reparte o céu
da erva que reparte terra
da terra que reparte homens
dos homens desajuizados
cujo ar é de chumbo e estanho.
Há juízo ainda em borboleta
sem rumo certo, na concha
do coração nu e profundo,
nos nós cegos dos seus dedos,
das mãos cujos alvos ossos
rangem como velha porta
de casa escura, à espreita.
Há juízo ainda na revolta
dos mares, na tempestade
sem perdão (lâmina arisca),
e ainda na fome infinita
de quem não tem nem sol, paz
e pão. Mas peito aberto na fé
pois o que prende um dia solta.
Tal piscar de vagalume,
vi mais juízo na gramática
etílica e vil dos poetas,
a vasculhar sal e silêncios
nos passinhos das formigas,
do que o pisar (des)botado
que sentencia - e resume.
Tal relâmpago no bosque,
vi mais juízo da criança
sentada ao meio-fio do mundo
em contar pingos na poça
do que o general de estrelas
contar vitórias e baixas,
igual baiacu que incha e explode.
Se me pedes juízo, amor
te digo que ainda prefiro
um erro seguro na mão
a dois acertos voando.
É claro, não como pássaros
mas como míssil balístico
de precisão incerta e dor.
O poema e o varal
Sim! Escrever um poema
é bem mais fácil, amiga,
do que desvendar o esquema
de barbantes varal acima.
Para montar um varal
tem que bem entender da arte
que divide o fio em igual
cujo gancho alça sua parte.
Mas para escrever um verso
basta a força plena, corpo.
De dentro sai como feto
e ganha alma, nome e rosto.
Se o varal procura regra
o poema é, após forte chuva,
úmido arfar, suor da terra
ao sol e à palavra oculta.
Se o varal é de vidro, quebra,
o poema é duro, de pedra.
Se o varal é cálculo, lógico,
o poema é fagulha, só ócio.
Diante tudo isso, senhora,
melhor mandá-lo consertar.
E enquanto ainda há sol lá fora,
estender versos sob o ar.
O dentro e o fora: o tempo
No dia 20 de outubro
ela parou de marcar seu calendário.
Parou como o azul
para na gaivota.
Parou como o monte
para na névoa.
Parou como o oceano
para na geleira.
Parou como o infinito
para no instante.
O ano? – agora não importa mais.
Se era manhã ou tarde, não importa.
Se era frio ou calor, não importa.
Se desatino ou dor, não importa.
Se cristã era, não se sabe: tanto faz.
Foi no dia 20, mês de outubro,
bem atrás da porta, no armário
cujas roupas de lã, luto e veludo
(ou de alguma rima da infância)
que ela se fechou na lembrança
bem juntinha ao seu calendário.
Talvez percebesse que, daí em diante, todos os dias seriam dia
20 de outubro.
Ou de qualquer outro mês.
Como todas moscas nas mesmas xícaras de café ao amanhecer
como todo vento em folhas secas é silêncio de chuva e
saudade
como todo morder de maçã é como pá que escava e fere a terra
como todo mato é afiadíssimo como facas apontadas para o céu
e todo céu é escudo de chumbo antes da tempestade chegar
e ainda toda impotência das buzinas na av. Presidente Vargas
(teria trabalhado lá?)
[ao sol da tarde, a mesma de séculos
e os séculos os mesmos a cada gesto intolerante e inafiançável
[do homem na natureza.
ela parou de marcar seu calendário.
Mas no dia 21...
Bem... esse dia...
Esse um não existia mais.