domingo, 31 de janeiro de 2021

Nômade


já andei com playboy

já andei com bandido

já andei com hippie

e bicha macumbeiro


hoje não ando com ninguém

e me encontro

                           por inteiro

domingo, 24 de janeiro de 2021

                                         A Cláudia Rocha


Poema dos sete erros


Ainda que o juízo, amor

seja sinuoso tal rio

que dos altos vales cai

e se biparte - igual setas 

de relógio - por lâminas

afiadíssimas de pedras,

ainda é isso: mangue e calor.


Ainda que seja estranho,

ainda é juízo sim: a raiz

do raio que reparte o céu

da erva que reparte terra

da terra que reparte homens

dos homens desajuizados

cujo ar é de chumbo e estanho.


Há juízo ainda em borboleta

sem rumo certo, na concha

do coração nu e profundo,

nos nós cegos dos seus dedos,

das mãos cujos alvos ossos

rangem como velha porta

de casa escura, à espreita.


Há juízo ainda na revolta

dos mares, na tempestade

sem perdão (lâmina arisca),

e ainda na fome infinita

de quem não tem nem sol, paz

e pão. Mas peito aberto na fé

pois o que prende um dia solta.


Tal piscar de vagalume,

vi mais juízo na gramática

etílica e vil dos poetas,

a vasculhar sal e silêncios

nos passinhos das formigas,

do que o pisar (des)botado

que sentencia - e resume.


Tal relâmpago no bosque,

vi mais juízo da criança

sentada ao meio-fio do mundo

em contar pingos na poça

do que o general de estrelas

contar vitórias e baixas,

igual baiacu que incha e explode.


Se me pedes juízo, amor

te digo que ainda prefiro

um erro seguro na mão 

a dois acertos voando.

É claro, não como pássaros

mas como míssil balístico

de precisão incerta e dor.



domingo, 10 de janeiro de 2021

O poema e o varal


Sim! Escrever um poema

é bem mais fácil, amiga,

do que desvendar o esquema

de barbantes varal acima.


Para montar um varal

tem que bem entender da arte

que divide o fio em igual

cujo gancho alça sua parte.


Mas para escrever um verso

basta a força plena, corpo.

De dentro sai como feto

e ganha alma, nome e rosto.


Se o varal procura regra

o poema é, após forte chuva,

úmido arfar, suor da terra

ao sol e à palavra oculta.


Se o varal é de vidro, quebra,

o poema é duro, de pedra.

Se o varal é cálculo, lógico,

o poema é fagulha, só ócio.


Diante tudo isso, senhora,

melhor mandá-lo consertar.

E enquanto ainda há sol lá fora,

estender versos sob o ar.

domingo, 3 de janeiro de 2021

 

O dentro e o fora: o tempo

 

 

No dia 20 de outubro

ela parou de marcar seu calendário.

 

Parou como o azul

para na gaivota.

 

Parou como o monte

para na névoa.

 

Parou como o oceano

para na geleira.

 

Parou como o infinito

para no instante.

 

O ano? – agora não importa mais.

Se era manhã ou tarde, não importa.

Se era frio ou calor, não importa.

Se desatino ou dor, não importa.

Se cristã era, não se sabe: tanto faz.

 

Foi no dia 20, mês de outubro,

bem atrás da porta, no armário

cujas roupas de lã, luto e veludo

(ou de alguma rima da infância)

que ela se fechou na lembrança

bem juntinha ao seu calendário.

 

Talvez percebesse que, daí em diante, todos os dias seriam dia 20 de outubro.

Ou de qualquer outro mês.

 

Como todas moscas nas mesmas xícaras de café ao amanhecer

como todo vento em folhas secas é silêncio de chuva e saudade

como todo morder de maçã é como pá que escava e fere a terra

como todo mato é afiadíssimo como facas apontadas para o céu

e todo céu é escudo de chumbo antes da tempestade chegar

e ainda toda impotência das buzinas na av. Presidente Vargas (teria trabalhado lá?)

                                                                              [ao sol da tarde, a mesma de séculos

e os séculos os mesmos a cada gesto intolerante e inafiançável

                                                                                         [do homem na natureza.

                                                                                           

 Foi assim que no dia 20 de outubro

ela parou de marcar seu calendário.

 

Mas no dia 21...

Bem... esse dia...

Esse um não existia mais.