sexta-feira, 31 de maio de 2019

Crônica das palavras estranhas

   Tenho 12 anos, já estou na 7a série e tenho aprendido muitas coisas, mesmo algumas que não querem que a gente aprenda. Uma que logo percebi é que, quando vovô e vovó resmungam que as coisas antigas são melhores, é porque são mesmo. Não duvidem! Tipo assim: aqui em casa tenho trocado a lâmpada led do meu quarto em média de 6 em 6 meses. Mas a do corredor, que muitas vezes fica a madrugada inteira acesa (às vezes tenho medo de dormir no escuro) e ainda é das antigas, não é trocada tem muito e muito tempo, anos até, tanto é que o lustre está todo sujo, muito empoeirado mesmo. Essa vida dos produtos tem um nomezinho técnico (difícil de falar pra burro), que mais serve para disfarçar o que papai vive chamando de roubo: obsolescência programada. (Ufa... dessa vez consegui.)

   Bem, aí acho que todos meus amiguinhos já sabem que temos tecnologia para fazer uma lâmpada durar no mínimo cem anos. Mas como insistem em não fabricar para vender mais as defasadas (outro vocábulo que aprendi recentemente), me pergunto então se esse tal de desenvolvimento sustentável, que tanto escuto por aí, não é só uma palavra da moda, sem efeito nenhum, que tem somente como objetivo esconder - como se esconde poeira embaixo do tapete - outras práticas sujas e super bisonhas.

   Moral da história: em vez de moderna e avançada, nossa sociedade está ficando mesmo (agora vou soltar um palavrão), está ficando mesmo é programaticamente bisoleta.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Papel em branco


   Solteirão e perto de dobrar meio século de existência (os quase 30, só de magistério, já nos faz supor que a dedicação e disciplina  mais se assemelhavam, à essa altura do campeonato, a uma preguiça morna, daquelas que, há um razoável tempo, já não faz a cama nem os fios da barba, que lá e cá começavam a embranquecer, sem falar na roupa íntima... Enfim, deixa pra lá, que ninguém quer constrangimentos aqui). Bem, como ia dizendo, o professor Clodoaldo,  exasperado e esbugalhando os olhos, num último rompante de força, advertiu:
   - Fica quieto! Se não vou chamar a sua mãe...
   O aluno, que se agarrava  num ato um tanto incerto em outra, se desvencilhou e, apesar de seus verdes anos, disse com a mesma convicção do canto de um galo:
    - Te garanto que, se você for falar com ela, você vai pegar ela. Ela é bonita...
    - ...

    No final do dia, Clodoaldo pediu para a velha Armênia, secretária do colégio, chamar a mãe do menino no dia seguinte. Queria falar "algo sério com ela". E rapidamente veio a resposta afirmativa da mãe. "Para que se desse solução ao caso."
    Nosso professor não dormiu muito bem, não se descobriu por quê. Talvez tenha sonhado, quem sabe? Mas o que se sabe é que acordou suando, com o coração palpitando e com a sensação de que tinha perdido muito tempo, um longo tempo, o tempo de uma vida, uma eternidade! Mesmo assim, com a pressa de quem vai perder o último trem, fez a cama, aparou a barba, e colocou uma roupa nova (a de cima e a de baixo) que havia comprado ontem, ao sair do trabalho.
   Chegou no colégio mais cedo que o de costume. Deu bom dia a todos. Sim, era ainda um professor ativo, atento às questões pedagógicas, disciplinares, educativas. Sabia perfeitamente que um colégio funciona bem quando os diversos funcionários, a família, a comunidade em torno participam ativamente no processo de aprendizagem. Lembrou-se da faculdade, do debate que tivera com uma professora um tanto retrógada, e ele já com ideias de uma escola mais moderna, mais plural, mais dinâmica. Não se intimidou com o beliscar de lembranças incômodas, como a da jovem por quem se apaixonara mas o preteriu, ficando com seu melhor amigo. Pensou até em visitá-los. Afinal, passado é passado, não é?
   Sim, tinha um assunto para resolver, e tinha nesse momento a certeza de que iria dar cabo desse probleminha magistralmente. Com uma retórica fácil e maleável, com conselhos eficazes, com uma sedução elegante e discreta... Todavia, certeira.
   Cumprimentou a secretária Armênia e percebeu que ela não parecia ser tão velha assim. Poderia ser. Cabelos curtos e ondulados em algum salão de beleza, com um batom rosa bem tênue; fora com certeza um pouco mais alta, mesmo assim demonstrava certo porte ainda. Maquiada com a mesma leveza dos batons, vestia um vestido um pouco mais curto que o normal, onde batia nos seus joelhos. Faltava a aliança no dedo, mas que importa, dona Armênia! - pensou sem exitar. Há tempo para tudo nessa vida... Afinal, a idade entre eles dois só se afastavam em quinze anos apenas. Perderia ser, mas não. Pensou nessa possibilidade, mas a dispensou depois. Dispensou essa ideia como quem cospe um caroço de azeitona no prato, deixando-o bem num cantinho, bem discreto dos olhares alheios. Enquanto essas faíscas de pensamentos sondavam-no, dona Armênia, profissionalmente, levava-o ao lugar do encontro.
   - Por aqui, professor. Está naquela sala.
   - Obrigado, a senhora, melhor, você está muito elegante hoje.
   Ela riu meio sem jeito, esticando em seu tecido fino e frágil umas rugas, mas encrespando outras, como num mar revolto, em outro ponto da superfície e da alma. Talvez fizesse certo esforço para isso, para sorrir; talvez o que motivava esse esforço viesse de lembranças antigas, passadas. Quem sabe o riso espontâneo e natural já não estivesse escondido em algum baú ou gaveta de sua casa, sob a poeira do tempo amarelecido de alguma foto? Entretanto, talvez pela expectativa que o assaltava - como um gato salta numa indefesa rolinha -, Clodoaldo não percebera nada disso. Vivia a intensidade do presente com alianças no futuro.
   Abriu a porta da sala. E, num canto, o familiar do aluno se levantou.
   - Oi. Prazer, sou o pai do Régis. A minha esposa não pode vir. Ela é enfermeira, sabe? E  teve um plantão de emergência hoje. Além disso, tem certas coisas que é melhor os homens resolverem, não acha?
  E depois de um longo pigarro concluiu:
  - Mas diga... O que meu filho aprontou?...
  Perdidos, os olhos do professor se congelaram no dedo do homem e, enfim, titubeou:
  - Bem... É que... Seu filho disse ...
 
  Por alguns instantes o professor esqueceu o que o aluno dissera; se esqueceu até por que estava ali. Por isso, acho justo dar fim nesta história, que mal começou, logo. Antes que anoiteça e surgam outras lembranças sem início, meio e fim. Brancas.