segunda-feira, 18 de abril de 2022

Os cinco deslocamentos da bolha de sabão


O tema não se esgota com estes cinco deslocamentos, mas já servem como base para uma profunda reflexão e tomada de atitude dos problemas que assolam um mundo que se desfaz ao ar como frágil bolha de sabão. 

1. Toda discussão se deslocou da questão de luta de classes para questões identitárias e de costumes, não que não haja ainda essa luta mas ela é ideologicamente disfarçada em alguns setores mais tradicionais, haja vista que a defesa da família, por exemplo, só tem valor para a família da alta burguesia, a qual quer defender suas propriedades e status quo, pois, além de incutir esse valor para estimular a conformação do rebanho, trata as outras como meras peças das suas engrenagens, já que é quase nula a ascensão da família proletariada, além de desestruturá-la já na sua base. Por outro viés, a questão identitária (gays, negros mulheres, indígenas etc.) resolve, de maneira parcial, o problema de inserção social, isso quando o motivo não é usado apenas como fachada, mas não soluciona a distribuição de renda e a efetiva mudança de base econômica, com maior planificação da economia. Por isso mesmo que hipocritamente também é utilizado por setores de uma direita moderada e liberal. 

2. Há um profundo deslocamento no entendimento do que é esquerda. Tirando a ortodoxa, que é só meia dúzia, o sentido do que é esquerda, muitas vezes chamada de moderada, se confunde em muitos aspectos com a direita, já que: a) defendem uma economia de mercado; b) apoiam o capital público-privado, fazem alianças com parlamentares do chamado "centrão" no Brasil; c) não cogitam uma revolução de estrutura econômica mais radical; d) em vez da via revolucionária, apoiam-se amplamente na condições da democracia-burguesa para alçarem-se ao poder e fazer seus pleitos, com todo tipo de negociata possível; e) fazem concessões a banqueiros e ao capital internacional; f) agasalham discursos de filósofos  sem visão prática e concreta, descaracterizando Marx, senão omitindo-o totalmente em suas pautas ideológicas. O que não significa que haja, nem possa haver revisões bem sucedidas.

3. O sentido da história passou a ser entendido como narrativas. Ela não mais dita a verdade, nem mais seus documentos servem como dados últimos. Tudo está passível de ser falseado: vídeos, fotos, assinaturas, gravações, balanços financeiros, textos etc. Assim, sepulta-se a ideia de história em prol de "retóricas da conveniência" de certo setor ou grupo dominante com ajuda da propaganda em massa por meios de comunicação diversos, entre eles o peso alienante da mídia digital. Sem contar que não há mais o entendimento como um movimento contínuo de tese, antítese e síntese hegeliana, ou de dialética materialista. O espírito das ideias parece ter chegado numa síntese indissolúvel, cristalizada, e a dialética material ter chegado ao fim, o que faz com que a história passa a ter sentido apenas como avanços técnicos-científicos. Assim ela parece não mais contar a história do homem para o homem, mas apenas das máquinas para o homem, que não estando no hall privilegiado da elite intelectual de produção (e consumo) é roubado de sua condição ontológica e figura apena como mais uma máquina e ainda - de pouco valor agregado.

4. Não se faz mais gênios como antigamente. O que se quer dizer com isso? Isso quer dizer que o sentido dessa palavra também deslocou. Gênio agora é aquele que mais produz e, principalmente, consegue acumular mais dinheiro. Ficar rico! Se não acumulou, mas trabalhou muito, de gênio passa a ser parvo - o que é o caso da maioria, mas ninguém vai dizer, evidentemente. Gênio não é aquele como Baudelaire que praticamente escreveu uma obra única (Flores do mal) e se consagrou. Agora o escritor para ser gênio tem que escrever muito, ter um bom marketing pessoal e vender muito. Isso foi só um exemplo. Mas, se não o faltam na mídia romântica, faltam na vida real: são poucos aqueles que enriquecem de tanto trabalhar. Ou seja, se tornam gênios. Como se isso fosse o único aspecto da genialidade, ignorando-se, por exemplo, as relações pessoais e a sensibilidade. Incute-se o sucesso pessoal (no mesmo campo semântico de empreendedorismo pessoal) como genialidade e vendem essa ideia como se qualquer indivíduo, por conta própria, sem estrutura nenhuma, pudesse atingir os píncaros da glória. Se o há são bem poucos e em geral são fabricados pela mídia (e aí vem de novo as narrativas). Mas não são gênios no sentido de outrora, de espiritualidade, conhecimento lógico-racional e humanístico. Esse tipo de genialidade fracassou. Por isso não ganha mais o Óscar. Mas sim aquele que tem perfil exato para fábrica contemporânea de mitos: o sujeito batalhador, comportado, que não se mete com os poderosos chefões e que possa servir de modelo para aqueles que cogitam a ter uma atitude crítica do establishment. Só pra completar: há muito de neopentecostal nessa história. A ética protestante é a ética do trabalho desenfreado. Ou seja, enquanto para os católicos o encontro com Deus está no asceticismo, na meditação, para os protestantes a salvação está no trabalho. São Tomás de Aquino que se cuide...

5. Houve um deslocamento do sentido do trabalho, que não é mais visto com o propósito de construção de uma nação e com valor comunitário. Desloca-se das fábricas para as casas ou em qualquer lugar. Desse modo a rede de cooperação dos operários foi diluída e junto seu sentimento de classe, reconhecimento e representação. Trabalha-se ainda para grande corporações (agora do setor de informação digital), mas com o sentimento de que o projeto é pessoal e de que o sucesso de enriquecimento e bem estar é possível. Mas não é essa a realidade, com a perda de garantias sociais e o crescimento de desempregados (com crescente migração para esse setor de serviços) o valor recebido passa a ser cada vez menor, forçando as pessoas a uma jornada de 16 horas diárias (a mesma na época da revolução industrial!). Na verdade, o empreendedorismo pessoal, apenas é apenas um eufemismo grotesco para um novo tipo de exploração, dando ares de independência e autonomia. Não que não haja, mas muitas vezes a pessoa passa a ser forçada a trabalhar apenas para sobreviver. O termo empreendedorismo deveria no levar a ideia de ativos e passivos, de lucros e dividendos etc. Se assim o é, basta dizer que "os passivos da vida diária" sobrecarregam o sucesso do autônomo, impedem qualquer acumulação de lucro e dividendos para outros membros da família, também acionistas. Na verdade, sem desconfiar, esse "empreendedor", nem se dá conta de que o trabalhador "livre" é o próprio capital dos gigantes. 

Prof. Ivo de Souza