domingo, 27 de março de 2022

O uso das coisas e da alma


Quando pensamos em mau uso da internet, imaginamos logo em fake news, posts ofensivos, importunações etc. Mas há coisas extremamente desagradáveis que são muito mais simples do que os mistérios de Hamlet. Explico.

Outro dia precisei de um serviço que aqui vou inventar. Afinal, como estou na rede, não quero nem pretendo expor ninguém, certo? Pois bem. Precisava de um sapateiro para consertar um velho e bom sapato meu. Havia um que conhecia pessoalmente, não era íntimo dele mas de longe era estranho também, já que até outras pessoas, que conheci proximamente, faziam parte do nosso círculo. Vamos chamá-lo de Zé dos Sapatos. E eu via o progresso do Zé dos Sapatos na sua profissão. A ponto de ele, todo prosa, já ter me mandado fotos de madrugada de pares que tinha restaurado. E, com poucas ressalvas, disse que seu trabalho estava cada vez melhor. Zé dos Sapatos começava a se destacar no ofício. Não só eu cheguei a dar sapatos para ele restaurar mas, como agora todos confiavam nas suas hábeis mãos, outros também, donzelas e cavalheiros. Recomendei seu trabalho para um grupo seleto de clientes. E, em algum tempo, já fazia mais do que consertos: produzia até desenhos de calçados, conquistando gloriosamente as finais de um concurso de estilistas. Ótimo! Zé dos Sapatos não estava de bobeira.

Não estava, não fosse um lapso, um detalhe, um salto alto demais: a soberba. Pois então. Nesse dia, pedi, via Whatsapp, para consertar o meu. Isso foi sábado às 10h04. Seria cedo para sábado? - pensei. Mas depois me convenci que não, a não ser que ele tivesse ido pra balada no dia anterior, o que não seria muito difícil. Mas nós nunca podemos prever as baladas dos outros. E portanto era uma boa hora. Pelo menos grande parte da população já estaria acordada. Zé dos Sapatos, que a essa altura já tinha nome e sobrenome verdadeiros, não respondeu. OK. Talvez não tivesse visto ou estivesse ocupado com outra coisa ou mesmo dormindo... Por que não? Ele merece. De qualquer modo, desconfiei do fato de que, contrariando a suposição inicial, ele realmente vira o texto, mas como agora não era apenas Zé dos Sapatos e, ao que parece eu era um Zé Ninguém, resolveu deixar-me esperando propositalmente. Sem aflição. Afinal, o querer ansiosamente mais curtidas, mais visualizações, prontas respostas nas redes sociais está levando muita gente para o Rivotril, o que, sem prescrição, só faz as coisas piorarem. Desse modo, toquei minha vidinha...

No dia seguinte, quando estava saindo para trabalhar (detalhe importante, profissionais liberais em geral fazem um puxadinho aos domingos também, ainda mais quando a coisa tá preta), enfim, quando saía ele me respondeu. Disse que consertaria meu velho e bom sapato. Isso foi 10h25. Legal. Parei tudo que estava fazendo e perguntei alguma coisa do serviço às 10h35. Mas é aí que o salto cresceu. Programou no aplicativo uma daquelas respostas eletrônicas rápidas e frias, estéreis e robotizadas: "Caro cliente, estamos fora de serviço no momento. Por favor, entre em contato mais tarde". Achei estranho, ainda mais pelo fato de conhecê-lo. Como já estava com o dedo para solicitar, ou melhor, não me dando conta do grau de distanciamento que ele se punha diante a mim, "pedir" mais informações, perguntei sobre a dificuldade do restauro. Ufa! Dessa vez foi o Zé mesmo que respondeu: 

"Faço com cola de qualidade, é simples, vai ficar novinho." (10h47)

Então emendei, antes que perdesse um ser humano, vivinho:

"Tudo bem! Vou ver quando te entrego." (10h48)

"Blz." (11h09) 

Como eu dependesse desse serviço e, creio, ele dependesse do meu dinheiro, perguntei para me certificar como andava seu trabalho, se ia ainda bom das mãos:

"Você tem fotos do seu último trabalho." (11h33)

Mas o leitor esperto já percebeu, né?

"Caro cliente, estamos fora de serviço no momento. Por favor, entre em contato mais tarde." 

Porém, não vinha só isso na mensagem. Suas nobres habilidades e extrema destreza profissional, seja nos sapatos ou nos aplicativos, ainda fez com que acrescentasse a essa mesma o seguinte:

"Expediente:

De segunda à sexta: 10h às 19h.

Sábado: 9h às 12h." (11h33)

Ainda tentei esboçar um comentário, o qual nem reproduzo aqui. Um comentário do meu dia a dia, tosco, insignificante. Aliás, esse fragmento de frase - de suspiro! - ainda estava sendo escrito ou postado (não sei) quando só aí vi a última resposta do robô. Senti-me como um palerma. Um idiota que fala sozinho, pois não preciso dizer que nem retornou - em pessoa viva! Passou por cima. Como alguém que você estende a mão e te deixa no vácuo. Como um imbecil que fala sozinho.

Mas, ainda que eu estivesse perturbando-o (ou perturbado), algo não captei do seu profissionalismo. Senão vejamos. Disse que o expediente é sábado de 9h às 12. Ora, o primeiro contato foi sábado às 10h04. Depois me responde num domingo, quando eu até já tinha deixado pra lá. Ou seja, fora do seu expediente - mas dentro do meu! Afinal, não seria mais fácil dizer, em bom punho, um simples: liga amanhã!

O que fica disso tudo? Nada. Nem uma relação de amizade, que poderia se fortalecer, nem uma relação profissional. E (sem querer gastar suas preciosas horas, que a vida é corrida, eu sei!) nunca é demais lembrar que há muito tempo atrás a produção artesanal - genuinamente familiar, quando o homem ainda não era coisa e sentia-se pleno nela - foi substituída pela máquina. Em decorrência, a essência da espécie, que é o trabalho, se alienou de todo processo produtivo. Portanto, isso só traz esta verdade: o Zé dos Sapatos não é mais o Zé dos Sapatos. Talvez nem ele tenha se dado conta disso, já que a máquina furtou-lhe a alma, a sensatez e a virtude da sensibilidade. Mas a nossa sorte é que ainda há alguns bons sapateiros por aí. Não é mesmo?


  














quarta-feira, 2 de março de 2022

Trópico de Capricórnio


Era verão em São Paulo. Com a senhora minha mãe nos braços, minha esposa chegou em casa da igreja do bairro. Fechei o laptop onde via as últimas notícias. Aliás, tão pesadas como a tempestade que ameaçava. Ainda bem que chegaram, pensei sem ter muito certeza disso. E, como quem se esforça para afastar qualquer qualquer tentativa de interpretação maldosa, que faça manchar meu caráter com piadas sem graça - apesar de tudo -, tirei os óculos e perguntei com um semblante entre a esperança e consternação:

- Então... O padre deu alguma solução para guerra?

Um breve mas longo silêncio foi entrecortado pelo barulho nervoso e veloz do abrir e fechar do zíper da sua bolsa, onde vasculhou uma imensidão íntima, talvez até de palavras, antes, enfim, de responder abruptamente:

- Disse somente para orar.

Se, já com a camisola nos ombros magros, ela orou, não deu para perceber, foi no sussurro da alma. Mas lembro-me que, nesse dia, dormimos sobre a mesma cama como se houvesse uma fronteira imaginária entre nós. Depois, já não sei.