quarta-feira, 20 de maio de 2020

Barroco: Gregório de Matos


O Barroco brasileiro dentro da literatura (em um outro texto falaremos das artes plásticas, que aliás desencadeou essa expressão estética) surgiu neste contexto: os ideais clássicos e os ideais da Igreja. Num conflito entre a razão e a espiritualidade, entre a terra e o céu; entre os prazeres da carne e a sublimação do espírito. Todos esses conflitos vão ser transfigurados em figuras de linguagem nos poemas. Desse modo, o estilo da escola barroca é cheio de antíteses, paradoxos, inversões sintáticas, preciosismos de linguagens  (rebuscamento), figuras sonoras, metonímias, colorações e sonoridades. É um estilo que não é claro e linear, pois traz toda a agonia do tempo, da salvação e do pecado. Muito se discutiu se o Barroco não era um Classicismo. Mas, devido a esse estilo conflitante - apesar de ainda trazer aspectos do Classicismo -, chegou-se a conclusão de que estávamos diante de outra escola, de um estilo de época não tão límpido,  sereno e claro  quanto do mundo clássico.


Um de seus principais escritores foi Gregório de Matos Guerra, apelidado de Boca de Inferno. Isso porque além das poesias amorosas e religiosas, cultuava também a poesia satírica, colocando na mira comerciantes desonestos, nobres e até os negros e mulatos da Bahia, cidade onde nasceu em 1633, seguindo para Portugal onde se formou em Direito. Mas volta para o Brasil. Retorna em 1680 de novo a Portugal, mas arruma problemas e vem para o Brasil e se casa. Mas não satisfeito colhe muitos desafetos, talvez devido às suas sátiras e é obrigado a se exilar em Angola. No final da vida retorna a Recife em 1695. Morre um ano depois. Com isso fica claro o porquê do apelido. Ele não poupava ninguém, mas por outro lado, nas suas poesias religiosas, parecia se redimir disso tudo e sentia o peso do poder punitivo de Deus. O que, em contrapartida, não o impedia de descer ao mundo do sensualismo amoroso em algumas de suas belas poesias. Assim, de certa forma, sua personalidade se coaduna com o espírito inquieto do tempo, tendo ele levado uma vida mais intensa, impetuosa e talvez até ser mais debochado que outros poetas.

Mas antes desse lado satírico, vamos ver mais de perto uma de suas poesias que traz um refinamento mais filosófico e conceitual (há textos barrocos que são conceptistas, ou seja, trabalha com conceitos). Ei-la:

À inconstância das cousas do Mundo


Nasce o Sol e não dura mais que um dia:
Depois da luz, se segue a noite escura;
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas e alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto, da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na luz falta a firmeza;
Na formosura não se dê constância:
E na alegria sinta-se a tristeza.

Começa o mundo, enfim, pela ignorância;
E tem qualquer dos bens por natureza,
A firmeza somente na inconstância.


Vamos agora colocar uma lupa e analisar mais de perto este belíssimo texto. Talvez vocês já tenham escutado o termo "Carpe Diem", que literalmente significa "curta o dia" em latim clássico . Há vários jovens que hoje em dia andam com essas camisas pela cidade. Traz na acepção moderna um sentido de otimismo, de alegria de viver intensamente o dia, de prazer. Mas nem sempre foi assim. Esse termo na Roma antiga, por volta do século III, tinha um sentido negativo. O real sentido de se viver o dia era porque a vida é breve, passa rápido e logo a morte estará batendo a nossas portas. Curta o momento, porque não pode haver o amanhã, o que, evidentemente, pode trazer muita angústia. É nesse sentido que se enquadra o soneto de Gregório, já que "Nasce o Sol e não dura mais que um dia". Sol aí está representando a passagem rápida das coisas, da vida. E acaba se questionando, melancolicamente, sobre a luz, que é tão formosa, "por que não dura?/ Como a beleza assim se transfigura?". Ou seja, como uma coisa pode mudar tão rapidamente de estado? É, sem dúvida, uma pergunta existencial. O que nos leva a refletir sobre um pensador grego, Heráclito, que dizia que "Ninguém entra no mesmo rio duas vezes". Não entra porque tudo muda, tudo é devir, o rio muda e você muda a todo instante. Nada é eterno. É nesse sentido que esta poesia é conceptistas, conceitual, pois trabalha com a ideia do passar do tempo, pois temos "A firmeza somente na inconstância".

Inconstância essa que está bem representada nas suas figuras de linguagem, nas suas antíteses e paradoxos. Explicando. Antítese é a figura de linguagem que realça as oposições de ideias (tese e anti-tese). Assim temos no decorrer do poema várias delas, bem ao gosto Barroco: Luz / noite escura; tristezas / alegrias; acaba o Sol / nascia. Esses pares opositivos que vão sublinhar o gosto barroco, o desequilíbrio, a tensão existencial. E o poeta arremata com um paradoxo (figura de linguagem que coloca dois opostos num mesmo ser), como se disséssemos que a neve é fria e quente ao mesmo tempo. O paradoxo está sempre a desafiar a lógica e nos imputar um absurdo insolúvel, deixando-nos somente com o fluir da imaginação numa tangente intocável. Veja o último verso: "A firmeza somente na inconstância". Como pode algo ser firme, mas inconstante? Na poesia, fruto da imaginação, tudo se torna possível, pois nos leva aos caminhos mais insondáveis da alma. E se é uma alma barroca, o labirinto é mais cheio de mistérios e detalhes.


Passando para outro poema de Gregório de Matos, vamos ver que ele também trazia um sentimento de culpa. Como se fosse a culpa de Adão de não ter respeitado às regras de Deus. Culpa que carrega durante sua vida um tanto depravada, como nos indica suas várias deportações (ser expulso da Europa e do Brasil). Aliás, essa culpa não é só dele, mas do espírito da época, quando a Santa  Inquisição da Igreja Católica perseguia os hereges (pecadores, homossexuais, quem era de outras religiões, bruxas, cientistas etc.). Mas é em Gregório e sua vida que isso melhor se exemplifica. Ele pede clemência ao Senhor diante de tanto desvairios, como se vê:

Soneto a Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história.

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Recobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


Aqui está presente também as antíteses "Porque quanto mais tenho DELINQUIDO / Vos tem a PERDOAR mais empenhado".  Há nesses versos também uma inversão sintática, indicando uma sintaxe tortuosa, pois na ordem exata seria: Vos tem mais empenhado a perdoar. Como se vê a própria estrutura do soneto traz essa marca de sofrimento, de falta de clareza, com um vocabulário rebuscado e difícil, apesar de estarmos vendo um soneto de um português antigo. Por fim, as alusões a Bíblia ("Como afirmamos na sacra história") são comuns nos textos barrocos,  devido a um recrudescimento da Igreja. O que fica ainda de clássico (pois, como vimos o Barroco mantém muita coisa do Classicismo) é a forma do soneto, com dez sílabas métricas neste caso. Lembrando que o soneto é uma forma que vem da Itália, muito usada pelo poeta clássico Petrarca. Há, neste tipo de composição, 14 versos divididos em 4 estrofes (dois quartetos e dois tercetos finais). Essa forma clássica no Barroco é acompanhada com outra temática (religiosa, apesar de haver também deuses pagãos) e com uma linguagem mais truncada, burilada, artificiosa, com antíteses e inversões, como vimos.


Bem. Mas nem tudo em Gregório é só tristeza e sofrimento. Talvez ainda aqui haja esses aspectos, mas ele consegue, através da ironia, da piada, da sátira, contornar um imediato pessimismo e criar o grotesco e o riso. Enfim, a crítica social. Antes de qualquer explicação,  vamos ver um dessas suas peças satíricas primeiro.

Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro!

Em cada porta um bem freqüente olheiro
Que a vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados:
Todos os que não furtam, muito pobres:
 Eis aqui a cidade da Bahia.


Então? O que acharam? Em alguma parte não faz nos lembrar nossos dias?  Não há algo de universal, mesmo que esteja datado o poema naqueles seiscentos da Bahia? Não fala sobre a ambição dos poderosos? E não há sempre, em todas as épocas quem ambiciona por poder e fortuna? Por isso, talvez, o poema tenha esse caráter universal, de estar em todos os lugares, mesmo que seja restrito a um lugar só. A Bahia de sua época. Explorada pela corte portuguesa. É bom lembrar que nessa época Portugal havia perdido o monopólio de comércio com as Índias Orientais. O açucar, cultivado no nordeste brasileiro, sofria concorrência das colônias inglesas. Então a corte portuguesa começou a sobretaxar, cobrar impostos dos colonos. E a crise se instalou no Brasil. É bem provavel que muitas dessas circunstâncias tenham impelido a sátira do nosso poeta. Sátira repleta de malidicência:

"A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro!"

Mas Gregório não tem só como alvo os governantes. Vivíamos numa época de escravidão. E ser mulato (mistura de português com negro) era sinal de baixa classe social e assim deveria se portar, por isso vai criticar:

"Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés aos homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia."

E termina dizendo que há muita "usura nos mercados", ou seja, ganha-se com juros, aumento dos preços e que quem não rouba continua pobre na sua cidade natal:

"Estupendas usuras nos mercados:
Todos os que não furtam, muito pobres:
 Eis aqui a cidade da Bahia."

Esses e outros deboches de Gregório lhe custaram caro, pois teve que ser deportado de Portugal e do Brasil. Mas, no final das contas, todos ficaram no esquecimento e sua poesia atravessou séculos. Aliás, suas sátiras, que retratam o cotidiano e as mazelas das cidades, continuam muito vivas até hoje.


Por fim, veremos sua lírica amorosa. O que nos reporta ao seu lado material, carnal, sensual, erótico até. Muitas vezes nem poupava palavrões. Mas essa sensualidade, para muitos pesquisadores, aliada às observações da Bahia em suas sátiras (verdadeiras crônicas do seu tempo), já delineiam uma poesia que se afasta, gradativamente de Portugal, desenhando, ainda que de forma incipiente, uma cultura nacional, Brasileira.  Pondo em evidência as características do nosso povo, da nossa cultura e costumes.

De qualquer forma, é um erotismo que se tensiona com os compromissos da fé, que gera conflito e amarguras, que ora se expõe e ora se arrepende. É uma enfervecência que o leva à vida dos prazeres mas ao mesmo tempo à degradação moral. Enfim:

À mesma D. Ângela

Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, da rama florescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.


De imediato percebemos o trocadilho com o nome Angélica e Anjo. Mas o que está por trás disso? Representam as duas faces da mesma moeda: a espiritualidade e a tentação da carne, pois:

"Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda."

Desse modo, o par Angélica/Anjo representa um paradoxo. Ao mesmo tempo que inspira a pureza ("Anjo no nome"), inspira sensualidade (Angélica na cara"). É um Anjo dos "altares", como diz no nono verso, que está a altura da beleza espiritual, mas também física.

Para fechar o comentário, lembramos que Platão colocava o conhecimento em duas esferas: o mundo das ideias (que seria a essência, a razão, o verdadeiro, a perfeição, o eterno, por isso, dê certo modo, espiritual) e o mundo da cópia das ideias, (que seria o mundo que vemos com os sentidos, enganoso, onde tudo muda, nada é eterno; tudo é imperfeição, cópia). Há ainda também o mundo da representação da cópia, da arte (seria a cópia da cópia, por isso seria mais imperfeito do que o mundo sensível, dos sentidos). Todos esses conceitos Gregório conhecia, pois era doutor e era assunto muito estudado na época. Assim não me arriscaria a dizer que Anjo seria o mundo das idéias, sublime; Angélica, o mundo dos sentidos imediatos (ver, tocar, ouvir) e sua poesia, sendo cópia da cópia (mera representação) tentaria chegar ao supremo belo - ambição de qualquer poeta - utilizando-se do par Anjo/Angélica com ideal de beleza, seja espiritual (em forma de ideia, conteúdo, significado) ou esteticamente (em forma de estrutura, plasticidade, significante). Enfim, essa dualidade, usada pelo poeta fica mais evidente nestes primeiros versos de um outro soneto lírico, que dá continuidade ao seu êxtase a Ângela:


Retrata o autor à D. Ângela

Debuxo singular, bela pintura,
Adonde a Arte hoje imita a Natureza,
A quem emprestou cores a Beleza,
A quem infundiu alma a Formosura.
(...)

De maneira mais explícita aqui, a Arte entra como fator surpresa e fundamental. Pois a Arte é capaz de dar alma, de vivificar, de emprestar cores, num movimento à Natureza, e também, junto com a Formosura, de ceder alma, conforme  o verso "A quem infundiu alma a Formosura". Em ordem direta: a Formosura infundiu alma... a Natureza".  Assim, a arte, que seria a cópia da Natureza (que por sua vez é cópia do belo eterno, do mundo ideal) tem seu protagonismo como criadora e reveladora autêntica, almejando a perfeição da forma no retato que faz de Ângela, invertendo todo pensamento platônico. E, consequentemente, no final do poema, nos colocar, ludicamente, num jogo de espelhos, num duelo entre a verdade e a aparência:

"Pois, ou bem sem engano, ou bem fingida;
No rigor da verdade, estás pintada,
No rigor da aparência, estás com vida."