domingo, 7 de maio de 2017

Guerra

Se você for me matar
que não me mate à distância.
Com um tomahawk.
Que me mate de perto pra ver os seus olhos.
Se você for me matar
que não troque tiros comigo no corredor de qualquer edifício já bombardeado.
Que também não ache que seja blindado em bombas distantes.
Viróticas.
Mate-me. Mas não como o covarde que não sabe quem matou.
Mate-me sem trincheiras, sem assaltos, sem snipers, sem fuzil de 400 metros de distância.
(No mínimo.)
Nenhum fuzil vai assinar a conta.
Mate-me sem uma assinatura alheia, se é capaz.
Mate-me olhando na minha cara e dando um soco.
Para ver se estou morto.
Para cuspir na sua cara.
E você sentir o meu sangue.

sábado, 6 de maio de 2017



O Filósofo e a Verdade dos Fatos

A Marcos Zarahi


Depois de anos vasculhando os quatros cantos do mundo, um informante disse onde estava o paradeiro do Dr. Theófilo.

Pesquisador e professor emérito da Sorbonne, o Prof. Theófilo Ambrósio tem ampla pesquisa na área da Filosofia, que passa pela epistemologia, gnoseologia, ontologia, hermenêutica, cosmologia e metafísica. Seu último trabalho intitulado Infinitesianimalidade do Sujeito Cognoscente e o ser deixou perplexo o mundo. Estava preparando outro livro mais denso, que diziam ser muito mais esclarecedor. Parece que ia deslindar as passagens que causavam ainda muitas dúvidas e chegar a uma conclusão mais definitiva do ser.

Mas acontece que o Dr. Theófilo Ambrósio sumiu há 12 anos. A última vez que o viram, estava de mala e cuia no aeroporto. E disse, andando apressadamente, que tinha que se ausentar porque chegara ao momento mais importante de sua pesquisa. E especula-se que, com uma certa ansiedade e olhando o relógio, exclamou: "Meu Deus!". Essas foram, então, suas últimas palavras antes do sumiço. Dr. Theófilo Ambrósio, que sempre deixou em suspense seus leitores, não por sua excentricidade - que não era afeito a isso - mas talvez por um excesso de incompreensão, resolveu sair do mapa.

Desde esse momento, especularam muito sobre sua filosofia, surgindo vários seguidores de suas doutrinas. Disseram que elas teriam a resposta para o sofrimento, para a maldade, para a ansiedade, para a dor de cabeça e de dente, uma  verdadeira filosofia do autocontrole do corpo. Apesar de ter muitos oponentes, afirmaram inclusive que ele chegaria à descoberta de Deus, já que suas últimas palavras deixavam bastantes pistas. Além de numerosas associações que o estudam, há academias que levam seu nome, espaços culturais, bibliotecas, livrarias, bares, restaurantes, boutiques, e é até reverenciado numa campanha publicitária de um conhecido banco. Enfim, todos querem homenageá-lo.

Também sua família, que conseguiu comprovar na justiça que ele tinha morrido, depois que reconheceram o corpo de um mendigo pálido, magro e barbudo como o seu. Foi um momento de pranto e lágrimas para todos, inclusive para seus entes mais próximos, que não queriam acreditar nesse fim trágico. Mas  enfim... a vida é assim mesmo! E tiveram que se consolar. Afinal, todo disparato tem seu sentido e propósito. Sim. Consolavam-se com suspiros, dizendo que o Theofilozinho sabia o que estava fazendo. Não os abandonaria e os deixaria na penúria. Com os direitos autorais e de imagem conseguiram saldar suas dívidas e cada um ainda levaria o seu bom trocado.

Bem, o fato é que o mito ficou. Tal como Dom Sebastião. E  muitos acreditavam no seu regresso. Inclusive eu. Por isso nunca desisti de investigar seu paradeiro; até aparecer esse informante. Com uma boa matéria conseguiria sair dos bastidores do jornalismo e, quem sabe, virar até âncora do jornal.


Falei entusiasmado que nosso jornal queria marcar uma entrevista com ele. O informante só trouxe a resposta quase um ano depois. Falou que aceita.

- Mas não pode dizer seu paradeiro e só deverá ser feita uma pergunta de maneira bem objetiva.
- Ótimo! Vamos marcar para essa semana?
- Não. A entrevista deverá ser feita dentro de um ano.
- Um ano!!!
- É. Um ano.
- Mas eu nem sei se de dentro de um ano estarei neste jornal... Nem sei se estarei vivo!
- Compreendo. Mas essas são suas condições.
- Tá bom.

Passado um ano. Um ano não. Dois. Dois não. Doze, se contarmos a data de seu sumiço: 1 de abril de 1997. Enfim, passado esse tempão de expectativa, fui de encontro ao seu informante. Ia de van com minha equipe de produção e suas parafernálias todas de gravação para TV. O informante me disse que só eu poderia ter contato com ele.

Assim, fomos nós dois de ônibus até uma cidadezinha no interior do Brasil: Barbacena - MG. Chegamos numa casa bem simples e pequena, com rachaduras e reboco por fazer. Era  numa chácara, onde tinha algumas galinhas, uma horta de alfaces. E até o cão tinha uma fisionomia filosófica, veio cheirando meus sapatos e sentou-se calmo e contemplativamente. O informante me deixou no portão, passei por um caminho de cascalhos e entrei no pequeno casebre.

E lá estava ele! O filósofo. Dono de todo saber e mistério: Dr. Theófilo Ambrósio. Andava de um lado ao outro no interior da sala, curvado, pensativo, preocupado... A sós com ele, não vou dizer que não me emocionei e tive calafrios no corpo, mas me contive e preparei o gravador. Não me foi permitido fazer filmagens ou fotos. Mas só a voz já me bastava como prova. Ele me olhou rapidamente e disse para me sentar. Sentei-me. E ele, concentradamente, ia de ponta a ponta na sala, depois entrava no quarto, na cozinha (e esses eram os únicos cômodos, que simplicidade!). E andava, olhava com determinação para os objetos, botava a mão no queixo, resmungava algum pensamento, concluía, mas logo se abandonava em novas elucubrações. Sim, meu caro irmão, pensar não é uma coisa tão fácil como esses manuais de revistas de banca de jornais querem nos convencer. Há de ter persistência, há de contornar labirintos, há de recuar e seguir por outro rumo, há de duvidar de sua própria certeza. Só sei que nada sei, só sei que nada sei. Veio-me essa frase de Aristóteles, melhor, Platão. Sim, me preparara para esse grande momento. Num lampejo, tirou os olhos do chão e disse:

- Han?...
- Prazer em conhecê-lo, Dr. Ambrósio. Sei que o senhor tem muitas ocupações. E que prepara um último grande trabalho e...
- Diga logo - e continuava suas investigações, olhando determinadamente para o chão, ou para o nada, vai saber.
- E...  e que você está nas sua pesquisas do seu último livro. E que... E que todos estão muito na expectativa... E que...
- Sim, sim. Fale logo.

Claro, ele era irredutível. Não poderia fazer mais que uma pergunta. Aliás, quem faz perguntas são os filósofos. Não nós. Meros jornalistas e repetidores. Então suspirei fundo e coloquei a questão que há tempos me incomodava -  não são só a mim, mas acredito que ao mundo inteiro -, pergunta essa que tinha me dado insônia para formulá-la, que rabiscara papéis, que tentava chegar na essência da vida, da existência! Mas que, por outro lado, tinha que ser formulada de uma maneira simples e direta. Para dar mais apelo popular, claro.

-  Bem. O que o senhor acha de Deus?

E ele foi sucinto:

- Eu não acho nada.

E foi de uma ponta a outra na sala, sempre curvado e olhando pro chão. Quando ia fazer o mesmo percurso novamente, parou olhou determinadamente algo, como se tivesse descoberto algum segredo. Agachou-se. Pegou um objeto. Foi à janela, onde um feixe de sol entrava numa angulosidade oblíqua, deixando-se ver partículas suspensas de poeira. Olhou o objeto contra o sol, centralizando-o em um dos olhos e fechando o outro. Aproximava e recuava, até colocá-lo em uma distância ideal, acho. E sorriu misteriosamente.

Mas que objeto tão incrível era esse, caro irmão? Era um alfinete. Sim, o mistério estava num alfinete. Desses de fraldas de bebê! Foi então que, sem que ele me visse, saquei uma pequena câmera digital, que carregava no bolso, e tirei uma foto dele. Bela foto! Não poderia ter ficado melhor. Contemplando um insignificante (mas talvez grandioso!)  objeto contra o sol. E os raios iluminando sua face magra e longa cabeleira.

Suspendeu as calças surradas. Puxou o zipper da barriguilha pra cima e prendeu-o com o alfinete. Eu, já satisfeito, despedi-me e voltei pra São Paulo.

No dia seguinte publiquei uma grande matéria, com a entrevista e a foto na capa do jornal impresso da organização em que trabalhava. Cheguei até a receber uma ligação do dono para me cumprimentar, dizendo que eu merecia um lugar de destaque na redação. "Parabéns, você é um excelente profissional!". Quase que chorei, mas na verdade eu mereço mesmo. Mamãe sempre disse. Fora isso, fui convidado para uma série de entrevistas para dizer minha experiência com o filósofo, se tinha aprendido muito, se ele já tinha terminado o livro, se ele voltaria etc...

Foi então que recebi uma ligação. Era o informante dizendo que queria algo em troco pelo favor prestado. Combinei com ele no viaduto do Chá e dei-lhe um dinheiro. Um mês depois, ele me ligou de novo dizendo que marcaria outra entrevista e que precisava para isso de mais algum. Disse que já sabia o endereço. Ele disse que o Theófilo Ambrósio tinha se mudado e que cederia uma entrevista maior. Disse que não. Que as pessoas não estavam mais se interessando tanto assim.

Foi por esse tempo também que a família de Theófilo Ambrósio me processou por calúnia e outras coisas a mais. Dizendo que aquele não era o verdadeiro, pois o Theofilozinho deles há muito tempo já havia subido para o Reino dos Céus.