quinta-feira, 21 de junho de 2018


Bilhete na geladeira


  Pelo que se ouvia falar, a mulher de Ariovaldo nāo era a maior causa de sua excitaçāo, tanto é que adiava a chegada em casa, no final de expediente num cartório público, perambulando pela cidade do Rio. Adiando. De sua mulher nāo vamos falar. Desnecessário.  Nāo porque é uma mulher que fica no seu canto. Mas porque é um canto que fica sem mulher, pois que, já sabendo de seus atrasos, ela, Florentina, o prevenia, vez por outra, num bilhete de geladeira, assim discreto: Fui ver como está o trabalho da açāo social na Igreja. Beijos.

  Não sei se é por que ela deixara de dizer "te amo" é que a excitaçāo de Ariovaldo era maior pelos livros. O fato é que ia de um canto ao outro, percorria sebos pelo centro da cidade. Olhava tudo que se vendia pelas ruas, pelas calçadas: Carioca, Sete de Setembro, Ouvidor, Cinelândia, rua dos Inválidos, desde as livrarias mais tradicionais até o que se vendia pelo chāo, na Glória, no Catete, Largo do Machado. Tudo. Avaliava, pechinchava, lia prefácios e prefácios. Às vezes parava para um café e cigarro.  Pensando se era esse ou aquele. Qual compraria?  Os dois! - decidia-se num estalo pecuniário, culto, inteligente. A excitaçāo. Quando levava uma obra rara por descuido do vendedor o prazer era imenso. Um orgasmo só!

  Ariovaldo e Florentina eram casados há  mais ou menos trinta anos. Conheceram-se na faculdade de Direito.  Fala-se que, quando se conheceram, ele disse a ela que tinha contado todas estrelas do céu mas faltavam duas que estavam no coraçāo  e ela disse que estavam nos seus olhos. E assim começaram a namorar, casaram-se. Os filhos nāo vieram. Mas tudo bem. Havia o tempo que embalava um sonho esquecido de si.

  Iam-se como estrelas ainda, mas distantes. Anos-luz. Iam-se. Ele pela obra perfeita. Ela pela carestia. Iam-se. Ele na pretensão de ler cegamente, ela na pretensão de falar como muda. Ele tentava ler e ela tentava dizer.

  Sempre quando chegava em casa, abarrotado de livros que empilhava, nāo mais pelo quarto, mas pela sala,  pela antessala, pelo corredor, indo pra cozinha, pra área, varanda, banheiro e  eticéteras do sem fim.  Livros de exigências estupendas de conhecimento, sabedoria e humanidade. Sim, dava tempo, aos poucos ia ler tudo, é claro. Mas na verdade o que lia quando chegava em casa, estafado, cheio de peso e de tempo curto, era o bilhete de sua mulher: "Fui ver como está o trabalho da açāo social na Igreja. Beijos". E relia: "Fui ver como está o trabalho da açāo social na Igreja. Beijos". Às vezes só lia o substantivo "trabalho". Afinal, trabalhara tanto! dois apartamentos comprados, ora ora... Às vezes, o que se destacava era a locuçāo "açāo social", e folheava um compêndio de Fourier sem fazer nada. Olhava para os volumes de O Capital, de Karl Max, esperando que as folhas dos livros se levantassem numa açāo revolucionária. Mas tinha que ler primeiro! - pensava. Teve um dia que, num susto só, percebeu o verbo "Fui", no manuscrito dela. E foi em gramáticas e dicionários para ver do que se tratava tal anomalia verbal. Mas descobriu, como quem se desfaz de um susto ao sair de um pesadelo, a palavra "beijos". Porém, o significado de "Igreja" continuava um mistério, só que aqui nāo de fé,  mas de ceticismo e incertezas.

  Às vezes, caro leitor, nāo basta uma palavra para encurtar o tempo. Pelo contrário, uma palavra pode alongá-lo, pode ser aquela estrela distante, mas tão perto quando queremos achá-la. Ou a encotramos por acaso, num susto.

  De modo que Ariovaldo ficou uma semana sem comprar livros. Andava pela cidade impaciente e falando sozinho. Mas é certo! - exclamava consigo mesmo - que nāo precisava mais de livros. Nem de tantas palavras. Percebeu que aquele bilhete da geladeira era sempre o mesmo, nunca saíra de lá. A mesma caneta, a mesma caligrafia, as mesmas frases. Eram muitas: Fui ver como está o trabalho social na Igreja. Beijos.

  Excitado, foi entāo que Ariovaldo, num dia, se desfez de todos seus livros em casa quando ela havia saído. Para fazer uma surpresa, para dar um beijo como nunca tinha dado antes. - Quando ela voltar!... -  e animou-se eufórico e ansioso como nos primeiros tempos de namoro. Mas nesse dia ela demorou mais do que o costume, demorou uma eternidade.

  Impaciente, leu com mais atençāo o papel pendurado entre o imã e a geladeira: "Acho que custa entender quando tudo se perdeu, né? Adeus, Florentina". Achou se tratar de outro bilhete, mas era o mesmo, de anos.


terça-feira, 12 de junho de 2018

Engole essa

   Sentei pra comer meu cachorro quente de dois reais com quatro livros na mão.
   - Você vai ler esses livros todos?
   - Vou.
   O jovem vendedor coçou a cabeça e disse meio indignado e surpreendido:
   - Tudo isso? - ainda ficou um pra quê, mas nāo teve coragem de concluir.
   - Tudo isso - e como assumisse uma culpa que nāo tinha disse: - Sou professor.
   - De quê?
   - Português.
   - Vixe! Tinha uma professora no colégio ruim pra caramba.
   - É...
   - Era uma velha. Nóis tacava a cadeira nela e ela dava suspensāo de três... quatro dias.
   - Tinha que reclamar com a diretora - ponderei.
   O cara se coçou de novo, beliscou algum pensamento no ar - como quem corta um piolho entre o polegar e a unha - e saiu a emenda:
   - Nóis tocava o terror -  e riu achando graça do que dissera.

   Ia falar de outro professor, porém, nesse momento, passou um mendigo pedindo dinheiro. Mas deixei-lhe a outra metade do cachorro dizendo "engole essa" e fui embora, caminhando junto com a humanidade.

Ivo de Souza