sábado, 8 de abril de 2023

Baile, lençol e pérolas


Pois a estas horas da noite estico junto aos lençóis os diálogos, aliso com as mãos, mas enruga do outro lado, tento esticar ponta a ponta, mas os braços são curtos e, me arrepio, desde este dia, apenas dois, e, quanto maior o tecido, maior a cama (bem maior agora!), porém, maior que tudo, a noite, que me espera para tudo fluir, para tudo disparar, para tudo girar como um carrossel, cavalos com asas, bailarinas flutuantes, saias lançadas ao vento, ao vento pétalas, sem pouso certo, todos os lugares em um só, um entrando dentro do outro, num infinito para dentro, que cresce íntimo, espiral, redemoinho, vertigens, lembranças, cores e sons, maior a cama de casal, bem maior o mundo, uma via láctea inteira, por trás matéria escura se esconde em dimensões inimagináveis, se uma ponta do lençol cobre a outra descobre, vou do outro lado, e começa tudo de novo, numa eterna operação solitária de puxa e estica, de estica e puxa, e nessa luta embaralho vozes, diálogos interrompidos, que ficaram a meio caminho, o por ser dito mas não se disse, aliso as vozes, aplaino-as ao lençol, tento acalmá-las, fazer com que caibam em um discurso de sentido, e assim folheio páginas de dicionário como num voo aleatório, deslizando, as folhas perfilam como baralhos nos meus dedos, as palavras explodem e não há conexão, me concentro, e tento me deter em uma (era essa, essa mesma!), mas sigo para outra e para outra, esboço uma frase, encontro-a e ela se desfaz, mudo de ideia, reúno outras frases, talvez um texto, falta a coragem, deveria ter dito isso mas amanhã eu digo, sim, terei coragem, e concordo comigo mesmo dando tapinhas sobre a cama, afastando a poeira, talvez o medo, a incerteza, num gesto definitivo, acreditando me convencer, confirmando um discurso que deveria existir, hoje não mas amanhã, mais oportuno, mais certo de si, firme como um monumento de bronze, de um mártir, discursos invencíveis, eternos, grandiosos, ok, mas acalme-se, rapaz, há tempo, enquanto isso ensaio, estico as palavras de algodão e poliéster, e mesmo que possuam elástico nas bordas, fazem-se justas e inflexíveis, que relutam em deitar-se em toda sua liberdade e franqueza na cama, em alerta, resistentes, buscando a melhor forma, o melhor jeito, buscando o limite da tensão, sem ofensas, claro, mas justas demais, ao lado, sentado numa poltrona, o travesseiro rechonchudo e solitário - o outro ela levara às pressas! - aguarda toda essa minha operação, como quem observa uma discussão, palitando os dentes depois da janta, e não quer se meter, como se tomasse um partido mas não diz nada, prefere esperar o desenlace da história, dos acontecimentos, sem pressa, na poltrona, barriga estufada para cima, ombros caídos, acomodado em pensamentos de plumas, indiferente, preguiçoso e disperso demais para tomar uma atitude, só espera que uma mão o alcance e lhe dê o destino da cama, já o lençol, o das palavras, que sobraram da luta, dispersas como as contas de um cordão que se partiu e rolam na rua, umas ao meio fio, à beira do precipício, ao esgoto, outras ao asfalto, prensadas por borrachas de pneus que derretem em asfaltos, outras ao canteiro de plantas sem nomes, apenas verdes, estoicamente esperando uma enxada que as arranquem, outras para não se sabe onde, impossível reuní-las novamente, sintaxe perdida, interrompida abruptamente naquela discussão que não se disse tudo, e por isso não se tem ainda a sensação de liberdade, é preciso botar os demônios para fora, não é assim mesmo que se diz, mas como se nem tudo é certo ainda, se as premissas fazem-se sem conclusão, ou se as há, não haveria uma ditadura, uma imposição da premissa maior, todo homem é mortal, lição que aprendemos juntos na escola, mas naquela época achava-me imortal, todo jovem é imortal, imaginava como um potro que já nasce em pé, depois o amor, nosso amor é imortal, ela dizia, e eu repetia beijando-a, cheio de tesão, sim, nosso amor é imortal, se nos amamos, somos imortais, mas nada disso, falso silogismo, e nos cálculos talvez, todo homem é mortal, eu sou homem, logo sou mortal, repito agora na meia luz do quarto, abajur ao canto, uma silhueta que me vigia, recriminando-me, mas não tive culpa, na cômoda fotos que não tive coragem de tirar, alguns papéis, compromissos não cumpridos, muita coisa, confesso, a meio caminho, adiantamentos, amanhã farei, amanhã vejo isso, e o amanhã não existe mais, e, entre todas as coisas, a aliança, deixada no móvel, refulge no seu cálculo deliberado, provoca, se insinua, cega-me os olhos, mas sem conseguir desviar-me, e a luz no seu silêncio agudo, inquietante, presença de vozes não ouvidas, mas que agora reverberam, cintilam como uma estrela que sempre esteve ali, a essa hora da noite, mas não reparamos, luz única, num céu de escuridão, e me faz perder os sentidos, o desejo de pegá-la, levá-la a seus dedos, como primeiramente naquele dia, se lembra, todos emocionados, uns já não acreditavam, outros com inveja, maldiziam, mas passamos por tudo, passamos por todos, contudo agora, com que cara, onde esconder as vistas, e elas ardem, ensaiam um choro, a aliança ofusca, tento desviar num ato de desespero, num ato covarde, de quem foge para sobreviver, de quem corre para se lançar ao abismo, mundo sem chão, e travo as mandíbulas misterioso, luto comigo mesmo, luto solitário com o lençol, que resiste, que não tem braços, que me acusa, que reúne as pérolas, as palavras dispersas, colocando-as num saco, numa trouxa cara que vai embora sem dizer adeus, o fim por si mesmo, mas ainda assim não deveria ter feito aquilo, as contas do colar, não fui eu, se juras servem para alguma coisa, não fui eu que arranquei, era só tocá-la no pescoço, trazê-la para mim, num gesto impensado, rápido demais talvez, eu juro, era só evitar algo maior, de desespero insensato da parte dela, era só silenciar, mas não contava com os gestos, gestos dizem mais que palavras, e gestos não pensados arranham, foi tudo rápido, um dedo que prendeu no colar, juro, não era intenção, e as contas voaram, pessoas pararam para ver, ela gritou, não tive culpa, era apenas acalmar, trazê-la para mim, talvez falar algo aos ouvidos, e depois sim, depois diria o que tinha pra dizer de verdade, sem adiar, sem falsas promessas, era questão de tempo, mas as contas caíram, mesmo que eu as tenha dado, com meu suor, não justifica nada, sabemos disso, elas rolaram como palavras dispersas ao ar, num vendaval, que não sobra nada, tudo se desprende do chão, areias, raízes, cercados, assoalhos, paredes, casas inteiras (e o próprio verde precipita seu momento), tudo que fora construído pelo homem vai ao ar, em segundos, anos, décadas de esforços se desfazem, e passam a habitar a ruína da memória, turbilhão, calafrios, fantasmas, o brilho do anel, o ouro que ficou pra trás, fujo, fujo, olho ao lado, as pernas fatais de uma bailarina, me lembro, um único incidente, era para ninguém saber, adiaria, quem sabe esquecer, e agora aquelas pernas lisas novamente, de polimento vil, sustentadas pelos pés, numa caixa pequena, sobre o móvel, prontas para entrar em cena, no tablado das estrelas, pernas de tesouras pontiagudas, dançando para mim, estavam lá, instigando-me, mandando-me estalos secos, beijos, faíscas fatais, não resisto, pego-as suavemente nos dedos, danço com ela pelo quarto, rodopio, sustento-a sob a luz, vejo sua aura resplandescente, o fio fino, ignoro o perigo, ensaio como seria, ensaio várias vezes, para não ter erro, não ter medo na hora exata, o espetáculo é caro, não vamos decepcionar -  isso não! - , deito-me com ela, sem cerimônias, afinal, um flerte de anos a fio, e o fio da lâmina - da vida ou da morte - em excitação, espera de anos até o desenlace final, os corpos em contato, entrecortados por gemidos e palavras sem territórios, sem gramáticas que as sustentem, só pulsão, emaranhadas aos retalhos do lençol, sob o peso do amor que se diz eterno mas fugaz, abandonam-se a si mesmas, e ficamos à deriva no meio de um oceano encrespado e incerto. Deito-me com ela enquanto o horizonte costura a manhã.