Aula 3 - Coração no asfalto
O assunto da aula era o coração
Não o coração do curso de anatomia
mas coração
de carne viva
que
com seus sistemas circulatórios
complexos
como um fluxo fluvial
vermelho
e de tão vermelho
púrpuro
e de tão púrpuro
neon
circulava
de mão em mão
de tela em tela
de retina em retina
nos aparelhos circulatórios dos whatsapps
O assunto era o coração
Não o coração de Pixinguinha
Não o numeroso coração de Drummond
Não o disparado
de Adélia Prado
o fedor de vida
que às vezes deixa no ar
seu intestino grosso
Não o coração
(- Que aula chata, professor!)
de Casimiro de Abreu
de Gonçalves Dias
de Álvares de Azevedo
o terror
já não se faz mistério
nem símbolo possível
desliza
na
superfície
líquida liquida
o dia
O terror estaria na víscera
digitalizada
compartilhada
(como um verdadeiro espetáculo)
entre outros tantos memes
de gestos luminosos
de careta
de risos
de piadas
de pílulas
de tédio
de bits que
como gotas
de chuva
encharcam o parabrisa
mas que logo as palhetas do dedo limpam
e logo encharcam
e logo limpam
e logo encharcam
e logo limpam
e logo encharcam
e logo limpam
e o que se vê à frente é um lapso de
segundos
como aquilo foi
naquele fatídico dia
um co-lapso
O assunto era o coração
não de boi
ou de galinha
em algum churrasco feliz que havia naquele momento
não de aula de anatomia
ou do Sagrado Coração de Jesus
muito menos ainda
do poeta à amada.
Não cabe mais metáfora no coração
Sobretudo naquele
que ainda pulsava vivo
fora do corpo
como um polvo
sem mar
ao sol de meio dia.
Arrancado
por um parabrisa cego
resistia
heroicamente
em seu último espetáculo.
Corpo sem corpo
num balé trágico e sinistro
teve seu último momento de fama
numa câmera de celular
Dias depois, não se falava mais no assunto
Hoje mora nas nuvens
E já sem o burburinho dos alunos,
o professor pode voltar ao seu velho coração
2 comentários:
Poema absurdamente perfeito. Lirismo perfurante. Muito bom. Obrigada.
Obrigado!
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