Papel em branco
Solteirão e perto de dobrar meio século de existência (os quase 30, só de magistério, já nos faz supor que a dedicação e disciplina mais se assemelhavam, à essa altura do campeonato, a uma preguiça morna, daquelas que, há um razoável tempo, já não faz a cama nem os fios da barba, que lá e cá começavam a embranquecer, sem falar na roupa íntima... Enfim, deixa pra lá, que ninguém quer constrangimentos aqui). Bem, como ia dizendo, o professor Clodoaldo, exasperado e esbugalhando os olhos, num último rompante de força, advertiu:
- Fica quieto! Se não vou chamar a sua mãe...
O aluno, que se agarrava num ato um tanto incerto em outra, se desvencilhou e, apesar de seus verdes anos, disse com a mesma convicção do canto de um galo:
- Te garanto que, se você for falar com ela, você vai pegar ela. Ela é bonita...
- ...
No final do dia, Clodoaldo pediu para a velha Armênia, secretária do colégio, chamar a mãe do menino no dia seguinte. Queria falar "algo sério com ela". E rapidamente veio a resposta afirmativa da mãe. "Para que se desse solução ao caso."
Nosso professor não dormiu muito bem, não se descobriu por quê. Talvez tenha sonhado, quem sabe? Mas o que se sabe é que acordou suando, com o coração palpitando e com a sensação de que tinha perdido muito tempo, um longo tempo, o tempo de uma vida, uma eternidade! Mesmo assim, com a pressa de quem vai perder o último trem, fez a cama, aparou a barba, e colocou uma roupa nova (a de cima e a de baixo) que havia comprado ontem, ao sair do trabalho.
Chegou no colégio mais cedo que o de costume. Deu bom dia a todos. Sim, era ainda um professor ativo, atento às questões pedagógicas, disciplinares, educativas. Sabia perfeitamente que um colégio funciona bem quando os diversos funcionários, a família, a comunidade em torno participam ativamente no processo de aprendizagem. Lembrou-se da faculdade, do debate que tivera com uma professora um tanto retrógada, e ele já com ideias de uma escola mais moderna, mais plural, mais dinâmica. Não se intimidou com o beliscar de lembranças incômodas, como a da jovem por quem se apaixonara mas o preteriu, ficando com seu melhor amigo. Pensou até em visitá-los. Afinal, passado é passado, não é?
Sim, tinha um assunto para resolver, e tinha nesse momento a certeza de que iria dar cabo desse probleminha magistralmente. Com uma retórica fácil e maleável, com conselhos eficazes, com uma sedução elegante e discreta... Todavia, certeira.
Cumprimentou a secretária Armênia e percebeu que ela não parecia ser tão velha assim. Poderia ser. Cabelos curtos e ondulados em algum salão de beleza, com um batom rosa bem tênue; fora com certeza um pouco mais alta, mesmo assim demonstrava certo porte ainda. Maquiada com a mesma leveza dos batons, vestia um vestido um pouco mais curto que o normal, onde batia nos seus joelhos. Faltava a aliança no dedo, mas que importa, dona Armênia! - pensou sem exitar. Há tempo para tudo nessa vida... Afinal, a idade entre eles dois só se afastavam em quinze anos apenas. Perderia ser, mas não. Pensou nessa possibilidade, mas a dispensou depois. Dispensou essa ideia como quem cospe um caroço de azeitona no prato, deixando-o bem num cantinho, bem discreto dos olhares alheios. Enquanto essas faíscas de pensamentos sondavam-no, dona Armênia, profissionalmente, levava-o ao lugar do encontro.
- Por aqui, professor. Está naquela sala.
- Obrigado, a senhora, melhor, você está muito elegante hoje.
Ela riu meio sem jeito, esticando em seu tecido fino e frágil umas rugas, mas encrespando outras, como num mar revolto, em outro ponto da superfície e da alma. Talvez fizesse certo esforço para isso, para sorrir; talvez o que motivava esse esforço viesse de lembranças antigas, passadas. Quem sabe o riso espontâneo e natural já não estivesse escondido em algum baú ou gaveta de sua casa, sob a poeira do tempo amarelecido de alguma foto? Entretanto, talvez pela expectativa que o assaltava - como um gato salta numa indefesa rolinha -, Clodoaldo não percebera nada disso. Vivia a intensidade do presente com alianças no futuro.
Abriu a porta da sala. E, num canto, o familiar do aluno se levantou.
- Oi. Prazer, sou o pai do Régis. A minha esposa não pode vir. Ela é enfermeira, sabe? E teve um plantão de emergência hoje. Além disso, tem certas coisas que é melhor os homens resolverem, não acha?
E depois de um longo pigarro concluiu:
- Mas diga... O que meu filho aprontou?...
Perdidos, os olhos do professor se congelaram no dedo do homem e, enfim, titubeou:
- Bem... É que... Seu filho disse ...
Por alguns instantes o professor esqueceu o que o aluno dissera; se esqueceu até por que estava ali. Por isso, acho justo dar fim nesta história, que mal começou, logo. Antes que anoiteça e surgam outras lembranças sem início, meio e fim. Brancas.
5 comentários:
Boa Ivo...
Altamente filosofico e de uma reflexão de professor e da sala de aula , fundamental este ir e vi amei!!
Lindo!
Esta passagem, em especial, está de arrepiar: "Ela riu meio sem jeito, esticando em seu tecido fino e frágil umas rugas, mas encrespando outras, como num mar revolto, em outro ponto da superfície e da alma."
Valeu, amigxs, brigadão.
Valeu, amigos, brigadão!
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