terça-feira, 12 de maio de 2009

GRAXA


Dois degraus subidos, cinqüenta centavos na mão e cafezinho pedido. Estava duro mas bem arrumado. Meu pai sempre me disse que a gente tem que andar bem arrumado. Dá boa impressão. Bem, o destino era incerto e um café talvez me despertasse para a vida. Depois, sairia para algum lugar. Qual?... Ainda não sabia. Tinha que arrumar dinheiro. Ninguém vive só com algumas moedas no bolso! Mas o desespero tem dessas coisas: achamos que a desgraça paira só sobre nós, nunca com os outros. No centro da cidade um milhão de pessoas andavam em torno de mim, mas não via ninguém. Ou se via, achava as pessoas felizes. Preferia não ver. Recalque, é assim que as coisas funcionam. Eu era o fodido, o desesperado a ponto de me jogar do Edifício Central, como que para mostrar meu estado de decadência. Aliás, acho que todo suicida é orgulhoso, eles têm orgulho de ser vítima. Na verdade, o suicida quer mesmo é viver para observar o estado de consternação dos outros diante a sua morte. Nesse dia, acordei pensando no suicídio; vinha pensando freqüentemente nisto. O café, porém, sempre me salvava. Coisa de brasileiro, um cafezinho e um trago no cigarro sempre segura a onda.

Bem, quando ia tomar meu primeiro gole, surgiu um engraxate. Até aí tudo bem, me ofereceu para engraxar o sapato e eu disse que não, mas ele não se conteve e pediu de novo. Novamente disse que não, estou duro. Ele, então, não se deu por convencido. Tem suas razões, pois um homem bem arrumado não deveria andar sem dinheiro. Dá boa impressão, me lembro do meu pai. Abaixou-se e agarrou o meu sapato. E eu repetia: - Não, não, estou duro! E ele dizia: - Não tem problema, doutor, algumas moedas. E eu: - Mas não tenho nem essas moedas. E ele já não dava mais ouvido. Agarrou meu pé e começou o serviço; e quanto mais eu tentava tirá-lo, mais ele o puxava. Desesperava-me: - Não, não, não! E ele: - É rápido, doutor, rapidinho. Parecia que queria levar meu pé, tirar meu sapato e engraxá-lo com a língua.

Nunca mais vou me esquecer desse dia. Via aquele homem descalço, agachado, se rastejando nos meus pés com as mãos grossas, olhar arregalado, as narinas pareciam que iam botar fogo para fora, como um dragão. Suava bastante, parecia que ia derreter. Ele não parava seu trabalho com a escova. Esfregava de cima para baixo, de um lado para outro. Não era mais um dragão, era uma locomotiva, e suas ventas eram a chaminé. Direita e esquerda, sobe e desce, pra frente e pra trás. Por momentos, me senti um rei e ele era o meu criado, pronto para receber as minhas ordens. Não, na verdade, não era criado, pois pessoa não era, era pedra que a gente topa e xinga “merda”, ou melhor, era a própria merda, daquelas secas, que nem cheiro tem mais. Me senti forte, corajoso, imenso como a estátua de David. Soberano. Poderoso. Rico.

Ele continuava: em cima e em baixo, esquerda e direita, pra frente e pra trás. Maquinalmente tentava desvencilhar-me. E ele maquinalmente engraxava meu sapato. Não! Não! Não tenho dinheiro! tentava dizer. Só alguns trocados, só alguns, tentava me responder. Observava aquele corpo negro colado ao chão. Mas o chão era seco de mais, ele não. Ele suava e respirava. Suava , respirava, e parecia amar alguma coisa. Sim, ele amava algo. Dava para perceber: o seu vigor, a sua dedicação... E não desistia de engraxar o meu sapato porque amava. O amante não desiste nunca. Seu corpo emitia fluídos: uma gota de suor, uma saliva, um bafo quente. Tinha ele um bafo quente e uma mão também. Seus olhos arregalados traziam lágrimas, estavam lá prontas para descer, a qualquer momento. Ele amava, sem dúvida, e um dia iria soltar aqueles orvalhos suspensos, retidos.

Comecei a me sentir incomodado. Eu não tinha dinheiro e não podia fazer nada. Eu tinha que ter dinheiro. Uma pessoa que anda com um sapato de couro e camisa social de linho tem que ter dinheiro. Um absurdo! Mas eu era esse desgraçado. Sim senhor, um desgraçado que só tinha dinheiro para pagar aquele mísero cafezinho. E nada mais! Não podia fazer nada para ajudar aquele homem. E como ele era digno. As veias estufadas, seus cenhos concentrados, sua dedicação, seu orgulho: tudo isso fazia com que ele fosse digno. Enquanto eu continuava com minha inutilidade, sem nada poder fazer. Não conseguia nem pronunciar mais palavras. O engraxate continuava seu serviço e eu já me sentia um mísero perto dele. Agora era eu quem estava aos seus pés; eu me rastejava como um escravo pedindo perdão ao seu senhor. E cada esfregão dado no sapato era como se o meu senhor estivesse me acoitando, esfolando a minha pele, fazendo escorrer meu sangue de barata. E o engraxate continuava com a sua tortura: em cima e em baixo, de um lado para o outro. E eu não conseguia mais me redimir, só a minha expressão de arrependido já me denunciava. E minha face dizia: sim, meu senhor, tens razão, eu sou o culpado por tudo, eu sou o inútil, bata-me, bata-me até devolver minha alma ao Diabo.
O engraxate passou a mão sobre a testa dizendo: - Pronto, senhor. Está novinho em folha. Poderia me arrumar um trocado? Tentei responder que não tinha, mas era tarde. Ele já tinha saído e abordava outro homem.Tomei a rua. E com os sapatos engraxados, meio sem rumo ainda, subi até o último andar do Edifício Central e olhei para os pés. Eles brilhavam.

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