terça-feira, 31 de maio de 2011

Mãe e filha


Uma linda menina, de brilhantes cabelos negros e ondulados, brincava com a água do mar. Sua pele tinha o frescor da manhã e era leve e rosada, como a blusa que vestia, emoldurado na gola e nas mangas um bordado branco que poderíamos chamar de pequeninos flocos de nuvens, destacando-se no fino tecido de aurora que a compunha, ela, Marina, de uns nove anos de idade. Na cintura, carregava uma saia estampada que lhe cobria até os joelhos com flores. Flores de todas as cores: amarelas, azuis, verdes, vermelhas... Poder-se-ia dizer que logo abaixo do seu umbigo, na cintura, a junção das duas peças de roupa era o amoroso encontro entre a terra e o céu, entre o corpo e o espírito, formando-lhe assim um longínquo e promissor horizonte.

Brincava  com a água. Dava uns pulinhos pra frente e quando a espuma vinha, fazendo barulho de  refrigerante que acabamos  despejar no copo, voltava com uns pulinhos pra trás. E logo retornava a água, saltitava pra frente, mas os dedos d'água avançavam de novo e de novo ela fugia. E sorria e cantava e gritava gritos de alegria. E ia pra frente e ia pra trás, e ia pra frente e ia pra trás, pra frente pra trás pra frente pra trás... num eterno pique e pega. Pique e pega que não tinha vencedor nem vencido, nem desavenças, nem horas, nem preocupação, nem cansaço... Era um pique e pega livre como duas borboletas que se entrecruzam e bailam no ar.

Foi então que, naquele ínfimo instante, sobreveio uma onda maior, uma onda que ela não conseguiu fugir, uma onda que não era igual as outras, mas era igual ao mesmo tempo, uma onda que a deixou confusa, como se Marina estivesse à deriva no mar; mas soubesse que pisava em chão já conhecido e seguro, uma onda em que a afogava, e ela voltava desnorteada, como se estivesse retornado em sonho num tempo remoto. Uma onda de - quem sabe? - uma relativa curvatura no tempo,  de inebriante lucidez, que refletia raios de luz na sua memória, no seu instante. Sim! Ela teve certeza! Já tinha vivido aquele vago, mas nítido instante.

Droga! A estúpida onda lambera as flores da sua saia. Porém, aos poucos, toda essa confusão ia se passando e, ao poucos também, ela não se importava mais com o que tinha ocorrido. Lembrou-se de que sua mãe tinha dito que nem tudo no mundo dá pra saber. Sua mãe sim sabia tudo! Desistiu de sua brincadeira, contemplou o céu. Duas aves, fraternalmente, seguiam convictas para algum lugar. Depois, mergulhou seu olhar no oceano. Puxa! Como é grande! E estava ele agora calmo e tranquilo.

- Marina, vamos meu amor! Está atrasada para o colégio.

Era sua mãe que a chamava lá longe. Marina deu adeus e seguiu seu rumo correndo.

...


Pôs-se a caminhar na areia. Queria chegar ao mar. Talvez se afogar nele. Ou talvez o mar significasse para ela a plena liberdade. Mas a areia era densa e ela estava cansada. Muito cansada. E seus pés deslizavam, pior, escorregavam nos pequenos montes. Ela se afundava cada vez mais. Tornava-se difícil dar o próximo passo. As pernas agora muito pesadas. Quem sabe um regime? Entretanto, não era essa sua verdadeira preocupação.

Sim. Quarenta anos e o que tinha resolvido na vida? E esse peso todo sobre ela? Essa fadiga? Só tinha pedido um momento de atenção dele. Um momento de lazer, ao ar livre. Mas ele sempre atrasado, sempre extremamente compromissado. Era só um momento. Não precisava ter feito aquele escândalo todo. Não custava nada! Sim, talvez tivesse outra... Por isso tanto trabalho. Por isso as reuniões! Seria por isso?... Não! Não quis ver esses pensamentos. Queria o mar, era só isso naquele momento.

Mas olhou pra trás, e lá estava ele. Um homem de terno e gravata na pista da orla. Um homem de terno e gravata. Se assustou e teve medo. Um homem de terno e gravata na praia!!! Riu. Mas logo depois do riso, o choro. O riso diluiu-se no choro. Era como se um grão de areia penetrasse, arranhasse-lhe a vista no momento de maior alegria. E a água que dela, Marina, escorria tentasse repudiá-lo.

Viu-se como uma cadela, que indo à frente do seu dono, dá uma olhadela pra trás e não sabe se volta ou segue, pronta para receber um comando. Mas ela foi audaciosa. Instintivamente farejava a brisa do mar. A liberdade. Logo que soltou a mão do marido, os passos foram mais leves. Não tão quanto os da sua filha, que já brincava na beira do mar, mas eram de uma leveza inusitada, como se andasse pela primeira vez. Percebeu, entretanto, que isso era um engano, pois na equidistância da pista e do mar sentiu-se pesada. Pesada e só. Num deserto. E o que valia ali era sua sobrevivência. Pensou em voltar, mas já estava longe da segurança urbana. Então olhou pra frente. Mas ainda faltava muito. Quase desistiu e imaginou que ficaria ali para o resto de sua vida. A meio caminho! Amputada na cintura, pela metade! Suas pernas iriam se putrefar na areia e a parte superior evolar-se-ia no infinito. Enfim, seus espírito não daria mais movimento ao corpo e seu corpo não daria mais movimento ao espírito. Ambos amputados! Um do outro...

Mas nesse tormento todo, nesse tormento em que a areia não estava mais sob os pés. E sim sobre sua cabeça, como um caminhão carregado de toneladas  houvesse despejado-a em cima de si. E, Marina, com movimentos limitados, não pudesse mais respirar. E a terra não mais penetrava somente seus olhos, mas sua boca, suas narinas, seu coração...

Mas nesse cimento todo, nesse acúmulo cheio e vazio, ela, por sob o monte de areia, percebeu um orifício, de onde vinha brisa e alimento. Brisa e alimento para crescer e sair dali. Esse canal, essa ponte era um verdadeiro cordão umbilical. Uma esperança que ela não aguentava mais esperar. E viu uma ave solitária indo em direção ao mar. E suas asas eram grandes e fortes, sustentando-a naquela vastidão. Se ela pode... por que não Marina? E percebeu que, apesar de muitos, eram apenas grãos de areia. Pequenos e insignificantes. E chorou com mais vigor, com mais entusiasmo, com mais alegria. E esse acúmulo de lágrimas arrebentou aquelas paredes de dique ou talvez  placenta, e inundou a vida de vida. E deu um firme passo na areia. E depois desse passo outro, e depois desse outro outro, e depois outro, e depois outro e outro e outro... E já não podia parar mais. E os passos agora eram leves como antigamente, eram saltos que saltitavam já na areia intumescida pelo mar, onde as onda iam e vinham, deslizantemente, como se brincassem de escorrega.

Então, sobreveio uma onda um pouco mais forte que lavou seus os pés. Engraçado... Já tinha vivido aquilo, pensou. A onda, o cheiro de maresia... Era tudo igual!

Porém tratou de se esquecer dessas sensações (presentes ou remotas), quando sua filha, um pouco afastada e ao lado, chamou-a.

- Mamãe, mamãe! Olha que eu encontrei!

Ela foi rapidamente ao seu encontro.

- Que concha bonita, Marina! Ponha no ouvido que você vai ouvir o eco do mar.

Marina fez o que a mãe lhe ensinou e achou engraçado. A mãe também achou engraçado aquilo que tinha dito. Estranho e engraçado. Ela ajeitou depois a blusa da menina que já estava ficando pequena para seu corpo e deixava-lhe o umbigo aparecer. Foi quando, de súbito, uma voz as chamou de longe.

- Queridas, vamos embora! Está na hora - disse o  homem de terno e gravata, Pedro, apontando para o relógio que se orgulhava de nunca ter atrasado.

As Marinas se entreolharam e se abraçaram sorrindo. Deram adeus ao mar. E seguiram rumo.

4 comentários:

Catarina Cunha disse...

Linda a sua desenvoltura em descrever o tempo, o ambiente e o sentimento em simbiose das Marinas.

Anônimo disse...

É disto que falava-te, Ivo. Além de um poeta sui generis, você revela-se como um formidável contista. Como já era de se esperar, um abraço, Newton.

Anônimo disse...

Magnânimo amigo, felicitações pela belíssima explanação. Achei você pelas minhas navegações pelo Google. Acompanharei seu suntuoso trabalho!
Um ósculo no seu coração,bravo! Novamente parabéns!!!!

sissa disse...

querido amigo!!
um conto belissimo, de uma beleza indizivel, da cor do mar adorei sua singeleza...bjoooo,da amiga si