quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Linha Vermelha


1.

Horizontalmente as águas bocejavam
um bafo quente e helicoidal
turvo.
Enquanto uma geladeira derretia no mangue,
uma nave paralizava o azul
e seguia prodigamente seu rumo.

E eu aqui dentro
sentia dentro da gélida esterilidade do ar
o leve pulsar cardíaco dos pneus
sobre as finas e por vezes
abissais fissuras da ponte
que um  dia traçou
tais venturas neste rumo meu.


2.

Ao longe, uma romaria de luzes surgiam
beliscando as encostas das preguiçosas serras
encostadas no mar.

Nas anfractuosidades dos montes
esse conglomerado via-lácteo
da terra e real
devotava, como chamas de velas tementes, à grandeza
magnânima e implacável, indiferente do céu.


3.

Mais perto... bem mais perto...
sob o viaduto, na baixa Favela da Maré
inutilmente as janelas disfarçavam suas intimidades.

Revelavam-nas num relevo tátil e pungente:
uma cama amarrotada, vazia e desolada;
uma mão no rosto, dor, pranto e horror;
uma xícara de chá esquecida sobre a pia;
um coito interrompido porque o marido chegou;
uma geladeira antiga, adormecida na cozinha;
um arranjo de flor do mais novo amor.

Ao lado do viaduto, uma moça olhava...
Não olhava para os carros de vidros cerrados.
Não olhava para os muros já embotados.
Olhava para tudo, olhava para nada.

Talvez nem céu e chão habitassem ali.
Talvez ela olhasse para dentro de si.

Aí então, na eternidade fugaz do segundo
o mundo parou
pois seus olhos por fim
sorriram para mim
na robusta e tênue
linha do amor.

3 comentários:

Cithara disse...

O melhor retrato da linha vermelha. Mais legal do que mil imagens.

sissa disse...

nossa!!
meu amigo e querido poeta poetando os dias e as noite das,cidades sem fim lindo!!!

Catarina Cunha disse...

Retrato belíssimo!