domingo, 19 de outubro de 2014

Registro de Ocorrência

Friedrich Nietzsche vai dizer que não existem fatos, só interpretações.

Pois bem, outro dia fui à casa de um amigo. A palidez dos traços - que mais parecia uma meia lua desnutrida, já que era magro, bem magro mas com óculos grandes e olhos atentos - já revelava que era um poeta de mão cheia, ainda mais com sua meia idade. O seu versejar sempre visitava lugares sujos, podres e nefastos. Lia também Nietzsche e apreciava, principalmente, boa quantidade de bebidas. De preferência, aquelas que estivessem mais acessíveis. E, como todo apreciador de Nietzsche, poesia e bebida, a verdade sempre anda numa corda bamba, mesmo que o chão esteja ali: plano, duro e a um passo dos seus olhos. Mas há sempre um abismo entre o que se vê e o que se quer ver. Por isso mesmo, às vezes tropeçamos nesse vácuo infinitesimal; até quando estala o osso e a realidade.

Mas deixemos de entrelinhas e vamos ao que de fato nos interessa. Quando entrei, percebi um  certo mal humor; mas até aí tudo bem, pois não andava nos seus melhores dias de economia: pouco trabalho, aluguel atrasado e tudo mais. Além disso, esquivava seu rosto na meia luz da sala.  Mas era inevitável, uma enorme roxidão no olho, como se uma ferradura em brasa de má sorte ali o tivesse marcado. Denunciava-o. Se fosse tênue, poderia até fingir que eu não via nada - como tantas vezes fazemos para ser gentil com as pessoas - mas a obviedade do fato constrangia tal pudor. Poderia até ajudá-lo, conforme o caso.

- O que houve? - perguntei demonstrando um espanto meio disfarçado.
- Fui assaltado - disse trincando as palavras.
- Como? Onde?


Falou, com uma displicência que evita deslizes, que tinha parado numa árvore em Copa para urinar - urinar não, que não é palavra que  se preze pra este personagem, mas sim mijar -, mijar de madrugada, quando passou um bandido e pediu-lhe para passar a carteira. E nosso amigo, como se escorava com uma mão e com a outra calibrava a pontaria, respondeu prontamente:

- Tudo bem... Segura aqui, que vou pegar.               

Quando terminou de contar a história, sorveu um gole de cachaça, ou alguma outra coisa parecida, acendeu um cigarro, iluminando a mancha de seu rosto, e reclamou de alguma coisa que não me lembro bem o que era ...

Enfim... sobrou o silêncio. Por isso acho melhor ficarmos por aqui. Se os fatos são verídicos não sei. Talvez nem o poeta se lembre direito.



Pa
 

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