quarta-feira, 19 de julho de 2023

                                                       para Carlos Tonelli

Pois é, Carlos...


Carlos passava pela sala da professora Marta e sempre olhava no pequeno vidro da porta vários volumes de Marx, Engels, Trotsky, Lênin, Bukarin e muito mais. Tudo em cima da mesa dela. Como se descobriu com fortes convicções políticas, resolveu sair do curso de Administração de Empresas, prestar outro vestibular para História e se dedicar irrestritamente à causa operária. Afinal, não era empresário, apenas funcionário de um balcão de papelaria.

Frequentou as aulas com afinco, sempre fiel aos pensamentos da professora, permanecendo até depois para colher o máximo de informações que podia. E ela sempre dizia, em tom de confidência, que havia setores na universidade que se travestia de esquerda, mas não era esquerda nenhuma:

- São apenas, Carlos, um agrupamento que, sob o nome de defesa de mulheres, índios, negros, gays, travestis e muitos maconheiros, que apenas advogam por causa própria. As causas são até importantes e pode ter até alguns integrantes desses grupos que também defendam luta proletariada, e quando esses surgem, claro, a luta é unida, mas isso é excessão... Em geral, companheiro, há pouca luta de classe aqui, mas quem se engaja sem medo é um guerreiro - e gesticulava com os braços para o alto.

Ao término do curso tinha que apresentar um trabalho. Viu um vídeo que, dentre outros, Marta dizia ser mais importante e fez um trabalho justamente sobre a classe operária brasileira e ainda conclamando sobre a vital importância da integração de grupos identitários.

Ela olhou, olhou:

- Tá tudo muito bagunçado. Ter que organizar isso aí - e citou uma gama de teóricos que comentavam a respeito.

Carlos se convenceu. Realmente poderia melhorar. Na aula seguinte trouxe o trabalho. Ela avaliou:

- Tem muito teórico. Está confundindo a metodologia. Tira alguns nomes.

"Ela tem razão, ela tem razão", assim saiu Carlos da aula pensativo. Mas sem reclamar. Sim, sim. Teria que modificá-lo. "Viva a luta operária!" - exclamou consigo. E voltou na aula seguinte. E a professora:

- Mas esse sociólogo, apesar de ser de esquerda, já caiu por terra. Não dá mais para defender isso. Tira.

Foi para casa, dessa vez já um pouco cansado. Mas buscou energia e virou a noite na reelaboração do seu texto. No dia seguinte apresentou-o. E ela:

- É... mas não é bem assim. Tem muito grupo de minorias que defende a esquerda. Você viu o vídeo errado, tem que ver aquele outro que te falei. Não é esse não, é aquele outro. Esse sim vai na questão.

Por pouco Carlos não demonstrou certa irritabilidade na frente dela, mas como era funcionário de uma papelaria, cujo o patrão era exigente, já estava acostumado com certas coisas. Engoliu a seco, mas demorou uns dois dias para pegar o escrito de novo. Nas vésperas do término do curso, respirou fundo e foi lá. Apesar de uma recente conversão ao ateísmo, pensou recolhido: "Seja que Deus quiser!"

Ela olhou, mas mal terminou o primeiro parágrafo, disse:

- Pois é, Carlos... Está tudo errado. A esquerda agora não tem mais como pauta principal os trabalhadores, não dá mais para falar em proletários. Do jeito que era não dá. Tem que ser assim, entendeu? Melhor. E, além disso, agora as negociações são todas em tom de amistosidade com os empresários, sobretudo os estrangeiros, que estão prestes a trazer vários negócios lucrativos para o país. Estamos salvos, a economia está salva, o país está salvo. Aliás, você viu o discurso do presidente ontem?

Não se sabe a nota de Carlos. Ele sumiu. Na verdade, comenta-se que sua casa desabou numa chuva de verão e, como não tinha onde ficar, passou a morar na papelaria do patrão em troca de faxinas à noite. Uma ex-colega de curso disse que, ao encontrá-lo na rua, não estava feliz nem triste, mas que era muito grato ao seu chefe. "Um homem e tanto!"- reverenciou, segundo a moça. E que ainda emendou na despedida:

- A professora estava certa. O importante é a amistosidade...

3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o conto altamente filosófico do nosso querido poeta Ivo

Carlos Tonelli disse...

Lindo conto!!!! Estou lisonjeado pela homenagem e, mais ainda, impactado pelo conto. Caminhamos em um mundo de classes sem luta?
Belo conto!!! Grato!!!

Anônimo disse...

🌷