sábado, 29 de dezembro de 2012

Com meu amor


O que vou fazer com meu amor?
Guardá-lo (silêncio de baú),
enrolá-lo em panos amarelados,
como mudo instante que passou?

Inventariar roupas esquecidas,
brancos lençóis e grandes saias
que flutuam varais de lembranças
ao roçar a brisa adormecida?

Irei trazê-lo, embrulhado aos braços,
como aquele pão mal-dormido
na longa insistência do amanhã,
na curta existência do ocaso?

Com meu amor terei borboletas
sem destino. Mas com afinco
ao quieto sentido: vagalumes.
E topo na pedra-destino.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Amor

Contigo minha relação é de silêncio,
de sombras que transpiram no silêncio,
de sombras que se tocam no silêncio.
Do silêncio impalpável das sombras.

De silêncio insondável é feito o oceano,
que se recolhe todo na concha da mão
e se esvai no filete gotejante do tempo
pigmentando a sombra da lembrança.

O silêncio dos sonhos no céu,
o branco silêncio da rosa, das lágrimas,
das sombras das aves, dos lábios tocados,
da palavra formada e jamais alcançada.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Vênus

O amor agora é embalado a vácuo.
Sem distinção, em série, vigiado.
Enfileirado em painéis metálicos;
cravado em finos pinos fálicos.

No varejo ou no atacado o amor é belo.
No crédito ele é mais que um elo.
Mas é no débito que dá tesão,
tal propaganda de televisão.

Lubrificado artificialmente,
tem medo, tem risco e até não se sente.
É desejo contido, por um fio...

Por fina película, dividido.
Assim é nosso amor dia a dia:
comedidos versos, não contagia.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A simplicidade das coisas


Quanto tempo e páginas
já não foram desperdiçadas
para definir
a essência de uma flor?

Mas o tênue tecido
de suas pétalas
(não tenhamos medo)
nada mais exige
que uma simples palavra:
amor.



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Noite e dia


Depois da lasciva noite com bocas
loucas. Entorpecidas por mais vida.
E da latência quente das veias na úmida
cavidade do útero, da rima rouca.

Depois da lacunar noite dormente
e ausente. E da satírica união: carne
tênue e clara com tez que arde;
e explode esperma na aurora silente...

(As horas se apagam no pulsar do sono
no segredo quieto e inviolável do corpo
na lembrança esquecida do coito.)

Depois dos cus e uis da noite, pronto!
Recomposta, a face se faz metálica.
Em sua armadura sóbria, disfarça.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Antes de ficar sozinho,
eu não tinha todas as pessoas.
As tenho só agora.
Inteiramente só.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

BR 116


O sol despertava rebanhos de nuvens
leves e macias, tão macias...
que é injusto demais chamá-las assim.
Eram ovelhas como se ouve dizer por aí.
As ovelhas ou algodões
ou qualquer criação de Deus ou das crianças
bocejavam no leito azul do céu.

Ao longe,
os montes de onde se levantavam
e deixavam orvalhos de saudade
nos galhos, nas folhagens, no pasto...
No manto de veludo verde e velado.

Como sopros de meias no assoalho, deslizavam
na impalpável superfície do ar,
que tocava infinitos violinos
e com seus dedos finos e invisíveis
acariciava claras formas
e com elas se confundia
numa alquimia livre e líquida
sem corpo ou copo
que as pudesse moldar.

Seus rumos?...
A meteorologia ainda não previu.
Nem o tocador de rebanhos
(que bem o sabemos, basta-lhe sentir).

O rumo só se faz rumo
quando sem saber
já sabemos para onde ir.


Aí aconteceu que, no Km 142,
meus olhos caíram do alto,
rolaram
como rodas de plástico
na tangência fugaz do asfalto.
Rumo aos compromissos inadiáveis
que infla
e se esvai, dia a dia...

sábado, 9 de junho de 2012

Thomas Buddenbrook


"...repousamos sobre a vasta simplicidade das coisas exteriores quando estamos cansados pela confusão das íntimas."
Thomas Mann


Agora seu olhar vaga na liquidez inóspita do infinito,
vaga e já sem pressa
languidamente se dispersa como ondas de dúvida e interrogação.

O nó da gravata.
Os compromissos inadiáveis.
Os jantares sem iguais, a Sala das Paisasens, lustres e cristais,
a feição tensa e irreparável dos músculos.
A ambição e - quem diria - até a inabalável certeza do mundo: Deus.
Sim, tudo isso se perfila
(quando ter era ser)
na inócua fragilidade da vida.

Mas o ser não mais tem.
O ser é sozinho com o mundo inteiro, Tom.
O ser tem a vida que não te sustenta.
A vida do nó, dos compromissos, das Paisasens,
dos jantares, dos cristais e lustrosos músculos insondáveis
vida não era, Tom.

E agora?...
Agora a lógica da hora se liquefaz,
como se liquefaz as pedras das montanhas,
o outono no inverno,
as pétalas do tempo.

Sim, Tom, enquanto há tempo contemple-se.
E se tiver dúvidas demais
vasculhe seu íntimo amor
naquela singela monotonia
(e imensa) simplicidade do mar.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Pólen

 

A abelha do amor
poliniza seu FERRÃO
no jardim florido
(e por demais translúdico)
da flora do amor da moça dourada.

sábado, 3 de março de 2012

REDUC - RJ

Num plano vácuo
sem ar
nem esperança
verticais e silenciosas chamas
competem numa lentidão desenfreada
com o céu, sol e ar.

quinta-feira, 1 de março de 2012


Crônicas que contam


Não é tarefa fácil tratar com humor e elegância certos eventos da vida. E tais incidentes perpassam cotidianamente por toda sociedade sem ao menos notarmos. Entretanto, Catarina Cunha capta-os com lente de aumento e o banal torna-se inusitado; o dramático, irônico – o senso comum poetiza-se.

É assim com Paulinho, de Pipocas no asfalto, que “nasceu numa família como qualquer outra”. Mas atravessando “a rua destrambelhado atrás da bola fugidia” choca-se com uma carroça de pipoca. A partir daí o choque maior se dá entre crença popular e ciência, pois tornara-se “um médium acidental” enquanto estava sob os cuidados domésticos, enquanto não o regulava o controle científico.

Ela conta também o pré-julgamento social sofrido por Samuel; o conformismo de Antenor, que vê anos de trabalho desmoronarem; a metáfora do piano testemunhando um desenlace amoroso; a conciliação da forma de narrar – assindética e mecânica – com a rotina de um desempregado; o simbolismo da água inundando a profundidade do ser. E, vale citar, a bela história de Esmeraldina (Ofício dos ossos) que só tendo herdado “um cachimbo fedido de fumo de rolo e uma dívida no botequim” tem que assumir árduas tarefas.

Por isso as crônicas desse livro se transfiguram em verdadeiros contos, devido ao tratamento singular e intenso dado aos acontecimentos. E utiliza-se perfeitamente da irreverência para tirá-los de uma massa uniforme. Tal como já o fizera no festejado Deu vaca.

Confira alguns de seus textos no blog
www.gavetaverde.blogspot.com

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Pétalas, boca e amor


João ama Maria
que não ama João.
Mas ama muito Elias
que nunca tem decisão.

José ama Joana
que é fria como gelo.
É tanto medo da cama
que parece ir ao enterro.

E o tal do Wanderley
que só ama José.
Se vai querer... não sei...
Não não! Seu negócio é mulher.

Mas no meio disso tudo
há a linda Josefina.
Esta porém só ama Jesus;
este sim, verdadeira sina.

Falta o poderoso Damião
que a todas ama
com seu enorme tesão.
Mas a esposa sempre reclama.

Em meio a tantas pétalas
de bem e mal me quer,
só uma sincera mulher
desabrocha sem pudor.

É ela! A puta que engole
todo desejo de amor.

sábado, 21 de janeiro de 2012



Rua Goindira


1.

Na concreta densidade da laje
perfurada por protuberantes vergalhões corroídos
que furam o ar meio metálico e meio de mato.
Lá no alto desse pórtico
situado num inócuo ponto do vácuo
mas sólido como vigorosas vigas avermelhadas no concreto,
por certo corroído mas antes de tudo
ereto,
dois cães - não de mármore
mas com ossos, salivas e carne -
tomam guarda
daquela comum e singela casa.

E esperam boquiabertos
os ossos de domingo;
do frango assado de domingo
fiado no seu cumpade - bem ali,
logo ali na esquina.


2.

Ao sol de meio-dia
o asfalto é uma chapa de aço
saída da siderurgia
que cruza todo espaço
e curva-se empenando-se sobre as cabeças
faiscando sob o céu e sol.

Mas justamente nessa hora...
Nessa hora de metal,
quando as moscas bailam sobre as mesas
e um cão torpe e esquálido
languidamente lambe as sombras, goteja sem ilusão.

Nessa hora de total preguiça,
mas nem por isso menos irradiante,
nós vemo-los lá longe
ao dobrar da esquina
com mochilas junto às costas
e indecisos futuros à frente
os alunos das três escolas
as quais têm sítio ali.

Alunos do mundo,
alunos de Imbariê.
Alunos do futuro
e do presente viver.


3.

Quinze anos completados
sob a guarda de tais cães,
e se o nome era estrangeiro
o sobrenome dos Santos, bem brasileiro.
Mas que importa!
Esteve em Paris com Flaubert. E Bovary...
Coitada! pensou escutando trotes de pangarés.

Ultimamente um calor no corpo...
Mas não era fora, era no meio.
E o que vinha do meio moldava-lhe
em saltos altos e aos poucos.
Os seios e as faces hexagonais resolviam-se.
Mas ainda não bem sabia pra quê.
Até que uma moto cortou o mundo e seu coração.
Ah...  e ela deslizou seus braços na janela...
Era só mais um menino.
Um belo jovem - quem sabe? - de Imbariê.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Linha Vermelha


1.

Horizontalmente as águas bocejavam
um bafo quente e helicoidal
turvo.
Enquanto uma geladeira derretia no mangue,
uma nave paralizava o azul
e seguia prodigamente seu rumo.

E eu aqui dentro
sentia dentro da gélida esterilidade do ar
o leve pulsar cardíaco dos pneus
sobre as finas e por vezes
abissais fissuras da ponte
que um  dia traçou
tais venturas neste rumo meu.


2.

Ao longe, uma romaria de luzes surgiam
beliscando as encostas das preguiçosas serras
encostadas no mar.

Nas anfractuosidades dos montes
esse conglomerado via-lácteo
da terra e real
devotava, como chamas de velas tementes, à grandeza
magnânima e implacável, indiferente do céu.


3.

Mais perto... bem mais perto...
sob o viaduto, na baixa Favela da Maré
inutilmente as janelas disfarçavam suas intimidades.

Revelavam-nas num relevo tátil e pungente:
uma cama amarrotada, vazia e desolada;
uma mão no rosto, dor, pranto e horror;
uma xícara de chá esquecida sobre a pia;
um coito interrompido porque o marido chegou;
uma geladeira antiga, adormecida na cozinha;
um arranjo de flor do mais novo amor.

Ao lado do viaduto, uma moça olhava...
Não olhava para os carros de vidros cerrados.
Não olhava para os muros já embotados.
Olhava para tudo, olhava para nada.

Talvez nem céu e chão habitassem ali.
Talvez ela olhasse para dentro de si.

Aí então, na eternidade fugaz do segundo
o mundo parou
pois seus olhos por fim
sorriram para mim
na robusta e tênue
linha do amor.