quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O espetáculo e a grade


Foi naquele final de tarde, sentado no banco daquela praça, com um livro de Kafka caindo nas minhas pernas e tomando uma latinha de cerveja, que encarei obstinadamente o coreto. Ele erguia-se inútil, bem na minha frente. Mas nem tanto... Umas plantas, que nasciam no seu teto, caiam-lhe, como um caramanchão, pelas colunas que o sustentava. Vazio. Apenas uma leve brisa trazia movimento àquela solidão. O resto era desamparo, era um pequeno coliseu abandonado em seu silêncio secular. Ou não? Tomei um gole, olhei o quanto já tinha lido do livro, que nunca terminava. Na praça, um barulho de roda de bicicleta, um cachorro latindo, uma criança sorria, outra chorava, e outra não fazia nada, era apenas mais uma. De repente, uma brisa mais forte, uma ventania, e voltei ao coreto. Desafiei-o. Ele continuava lá, me olhando, mas não estava sozinho. Vi alguém no seu centro, parecia contar uma história, uma história cantada. Foram, aos poucos, surgindo outras pessoas. E, repentinamente, se transformou num coral. E instrumentos surgiram: tambores, violas, harpas, pianos, teclados, guitarras, sintetizadores e outros que ainda não havia sido inventado. E cada vez mais instrumentos. E pessoas aproximaram-se para assistir. No começo eram poucos; alguns curiosos transeuntes. Mas estes chamaram a atenção de outros, que quiseram saber o que tinha de bom neste espetáculo que os fizeram parar. E também pararam. E eu via tudo isso de camarote, juro que via. Ou não? Surgiram luzes no palco. No começo eram insignificantes e foscas, mas depois se transformaram em holofotes, canhões de luz. Soltaram fogos de artifício. Dos mais belos. E, como a praça estava cada vez mais cheia, puseram grades para proteger os Astros. Mas não adiantava, pois eventualmente alguém a pulava e se atirava no palco. Mais fogos de artifício, os canhões rasgavam o céu. E eu, no banco, com a cerveja, assistia, calmo, sem nenhum empurrão: ninguém me encostava, ninguém me olhava: ali era nada. Mas o povo estava atento ao espetáculo. Eram muitas pessoas, por isso resolveram isolar toda a praça com uma grade bem mais resistente. Agora só assistia quem tivesse a Permissão. Homens fortes, vestidos com uns ternos pretos e baratos, controlavam a entrada. E eles diziam, graves: só com a Permissão, só com a Permissão! E as pessoas imploravam, choravam, rastejavam. E os homens de ternos balançavam negativamente a cabeça: só com a Permissão, só com a Permissão! Mais fogos. Mais de artifício. Mais instrumentos. Luzes, canhões de todas as cores, feixes de raio lazer, de ultra-violeta. E o som... o som era alto, mas ninguém escutava. Quanto mais confuso, melhor: aumentavam-se os pulos, os gritos, arrancavam-se os cabelos, jogava-se, delirava-se. Aos poucos, transformou-se num delírio histérico, barulho que não era barulho: era nada. Quem estava do lado de fora empurrava a grade para entrar. E a grade parecia que não ia resistir: ela ia e vinha, como se um milhão de pessoas se pendurassem num pêndulo de um relógio. A insatisfação, porém, não era só de quem não tinha entrado: quem estava dentro, queria estar mais dentro, queria invadir, subir no o palco, entrar no corpo dos Astros. Todavia, quem conseguia romper esse pequeno cerco, o da grade menor, era banido logo pelos mesmos homens fortes de ternos pretos e vagabundos. Teve um que chegou três vezes. Na terceira, ele foi arremessado na platéia, como se acerta, numa lata de lixo distante, um papel amassado. Seu corpo, caindo na cabeça dos outros, sumiu, engolido pela multidão. As horas passavam-se. A madrugada chegou e a multidão extrapolava os espaços da praça. Apertou-se pelas ruas das redondezas, subiu pelas escadas dos edifícios que circundavam o local. Espremeu-se nos parapeitos das janelas. Suicidou-se nos terraços. Helicópteros no céu disputavam, num confronto aéreo, espaços. Cinegrafistas, fotógrafos, repórteres: nada podia ser perdido! A grade de fora cedeu. Todos atropelaram-se para frente. E os que estavam na frente sufocaram mais ainda a outra grade. Por fim, a do palco também desmoronou. Mas, antes que conseguissem chegar aos Astros, os homens fortes de terno preto e vagabundo, os cercaram e os levaram para lugar seguro. O espetáculo foi cancelado. E eu, incrivelmente, assisti a tudo, sem nenhum arranhão. Ou não? Foi num susto, enfim, que escutei o barulho de um metal se arrastando. Veio o medo: a grade cairia em cima de mim. Um pouco de concentração e alívio: era a loja ao lado que se abria, pontualmente, às seis da manhã. O sol já havia ofuscado as estrelas da noite. Olhei para frente e um mendigo catava uma lata de cerveja vazia. O livro estava caído no chão. Ainda faltavam algumas páginas, pensei.

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