quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Ser e as Palavras em Órfãos do Eldorado


Último livro de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado está entre a fronteira do romance e da novela. Em suas cento e sete páginas, Arminto conta sua história. História e vida que, aliás, insolúveis. E nisto que consiste sua semelhança, como veremos adiante, com Machado de Assis, em Dom Carsmurro.

Arminto, já velho e considerado como louco, começa narrando sua infância. Dentro desta narração existem outras histórias. Estas ele escutava dos índios. São lendas, a qual se destaca a de Eldorado. O próprio autor vai explicar no posfácio que essa lenda foi trazida pelos europeus e se consolida, com algumas mudanças, nos nativos da Amazônia, pois “era uma das versões ou variações possíveis da Cidade Encantada[...]” (HATOUM, 1998, p. 106). Ou seja, era uma variação do mito europeu da descoberta do paraíso e, indo mais distante, da Atlântida, dos gregos. Deste modo, as lendas já se cristalizaram em arquétipos. Mas Eldorado tem, por outro lado, uma significação histórica e concreta dentro do livro, uma vez que este presencia a época da ascensão econômica do Amazonas, através do extrativismo, nos seringais, da matéria prima para a produção da borracha. Esse período (primeira e segunda década do séc. XX) foi de extrema riqueza no Amazonas. Entretanto, durou pouco, pois seringueiras foram plantados na Ásia e, além disso, a primeira guerra mundial atravancou o comércio mundial. Neste sentido, Eldorado, ou melhor, o Amazonas soçobrou, desapareceu e voltou a ser “inalcançável”. Para concluir, Eldorado é a busca do inatingível. E essa busca é a busca, também, de Arminto a sua amada, Dinaura. Com ela sua felicidade poderia se consumada. Mas ela, tal como a riqueza, some, desaparece e se torna tão misteriosa quanto Atlântida o era.

É no romance de Arminto com Dinaura que encontramos comparação com o livro de Machado, Dom Casmurro; pois Dinaura é tão misteriosa quanto Capitu. Se em Machado Bentinho não conseguiu desvendar a possível traição de Capitu, aqui Arminto não consegue saber a origem e o paradeiro de Dinaura. O que se sabe é que Dinaura foi acolhida por Amando em sua casa. Mas se era tida como amante ou filha do pai de Arminto, permanece uma incógnita, pois como o próprio narrador a define como se parecesse “uma mulher de duas idades.” (HATOUM, 2008, p.28). Assim, se Dinaura fosse filha de Amando o amor era proibido e se fosse amante também o era. Hatoum somente sugere essas possibilidades, mas não dá a chave da resposta. Ora, não é difícil descobrir que Machado fazia o mesmo com Capitu. Não só, pois, a traição de Capitu é uma incógnita como também Bentinho recorda a sua vida. E essas existências estão sempre buscando o que é impossível, pois as palavras revelam, mas, ao mesmo tempo, velam. Neste sentido, as palavras passam a ter um valor ficcional, ou seja, as palavras estão a serviço de inúmeras interpretações. Elas não estão aí para dizer a verdade, mas para sugeri-la, transformando-se, assim, num verdadeiro caleidoscópio.

São as palavras que tentam dar um sentido à vida. Consequentemente, qual o sentido que há nesta, se a sua tutora não consegue guia-la? Assim vai definir Luiz Costa Lima os personagens de Machado e, a nosso ver, de Milton Hatoum: “Na esterilidade dos personagens, lemos a ruína dos heróis.” (1981, p. 73). Nesses romancistas, portanto, os heróis sofrem e têm seus defeitos e não conseguem superar o destino de suas vidas.

Destinos trágicos, aliás, que fazem lembrar Édipo. Em Órfãos do Eldorado vemos constantemente o pai lutando contra Arminto e vice e versa, já que, além de Dinaura, Arminto também teve um flerte com Florita, mulher que o criou, a pedido de Amando, depois que sua mãe morreu quando o pariu. Arminto foi expulso de casa quando Amando flagrou os dois juntos. Ao que parece ela também era mulher de Amando. Deste modo, Arminto está, inconscientemente sempre a desafiar o pai. Este, por sua vez, o repudia e o afasta de sua casa. O trágico, portanto, está sempre se anunciando e se consuma com a ruína e uma possível loucura de nosso herói. Para tirarmos uma conclusão disso, nada melhor do que essas palavras de Manuel Antônio de Castro, que compara Dom Casmurro com Édipo Rei e vem de encontro ao nosso livro: “Ora, a estória e a narração da estória buscam a verdade, o verdadeiro conhecimento, que é a procura humana fundamental. Seu fracasso é o fracasso humano.” (1977, p. 43). Eldorado, então, é a busca da verdade. Esta o narrador tenta encontrar quando narra sua história, da mesma forma que as pessoas contam as suas num consultório psicanalista. Esta regressão é tentar achar o elo perdido. É tentar achar o Eldorado da infância mas, ao se referir de uma ama que o amamentava, Arminto não se lembra “do rosto dessa ama, de nenhum. Tempo de escuridão, sem memória”. (HATOUM, 2008, p.16). O protagonista, portanto, está sempre tentando, como Bentinho, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. (ASSIS, 1999, p.14). Narrar a história para ele serve como uma catarse. Ao representar sua vida com palavras está representando a si próprio e descobrindo seu ser, e com isso sendo trágico. No final do livro o próprio Arminto desabafa: “Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga a nossa dor?”(HATOUM, 2008,p. 103). Mas há gente que é cética e nas últimas palavras diz: “Pensas que passaste horas nesta tapera ouvindo lenda?” (Idem). Com essas palavras, Arminto esfumaça a fronteira entre o real de sua vida e o fictício. E assim, talvez, nem nós dizemos o que acreditamos ser verdadeiro, pois o próprio Drummond vai dizer em seus versos:


Lutar com palavras
é a luta mais vã.
entanto lutamos
mal rompe a manhã
[...]
(1966,p. 156)


Com o que vimos, percebe-se que Eldorado no livro de Milton Hatoum tem inúmeras significações. É a riqueza perdida do Amazonas, é a busca por Dinaura, é a tentativa de encontro com o passado e, enfim, é tentar encontrar a possibilidade da verdade nas palavras. Tal como uma lenda que vai passando e se modificando de gerações em gerações, o mesmo se dá com a história de Arminto, a qual se embaça num horizonte indefinível. Como aqui, neste ensaio, tentamos dar uma significação para o livro analisado, usando outros livros; o mesmo fez Milton Hatoum, utilizando-se de lendas que percorrem os anos. As palavras, as histórias, neste sentido, vão se criando e criando outras histórias, numa intertextualidade infinita. O encontro com elas pode ser trágico como o foi para Édipo, que arrancou seus olhos com medo de se deparar com a verdade; ou para Bentinho, que perdeu o sentido da vida e nas palavras, a verdade. Mas Arminto, louco ou não, ainda acredita no que fala e perpetua suas histórias.










BIBLIOGRAFIA:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo, Ática, 1999.
CASTRO, Manuel Antônio de. Travessia Poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1977.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro Editora do Autor, 1966.
LIMA, Luís Costa. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

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