quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Quincas Borba: a autoconsciência da denúncia ou a autodenúncia da consciência


Publicado em 1891, Quincas Borba é considerado como o segundo livro da fase realista de Machado de Assis. Nesta obra Machado denúncia uma burguesia interesseira que, para conseguir ascensão social, utiliza-se de artifícios inescrupulosos e falsos. Apesar de o tema ser sério, Machado pontua sua escrita com um humor fino e sarcástico. Aliás, tal humor é frisante neste livro, o qual o próprio título tanto se refere ao personagem, que logo no inicio morre, ou ao seu cão, que passa a ter seu legado (por isso, talvez, seja mais naturalista que realista). Assim, o que Machado problematiza é a validade do cientificismo, tão divulgado na época da publicação do livro.

Mas como ele faz isso? Como pode ser realista ou naturalista, e criticar o próprio status quo? Bem, se passarmos os olhos pela trama da história, veremos que o livro se trata realmente de um realismo beirando o naturalismo. A história fala de um humilde professor de português de Barbacena, Rubião, que herdou de Quincas Borba – filósofo que morreu maluco – uma fortuna. Rubião – repare no nome, pejorativo de rubi – resolve ir para o Rio de Janeiro e se envolve com pessoas que o cercam e prometem-lhe amizade e fidelidade. Cristiano Almeida propõe-lhe uma sociedade numa casa de importação, mas para isso precisava de capital. Rubião entra com capital e Cristiano passa a administrar todos os negócios. Sofia, sua mulher, conta-lhe que Rubião a assediara. Mas Cristiano não faz nada, pois, como ele diz, “nada me abala relativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações.”Por outro lado Rubião também é procurado por Camacho, político que precisava de dinheiro para seu jornal. Rubião empresta-lhe e Camacho promete-lhe lançá-lo como deputado. Já Sofia, apesar de ser fiel ao marido, não o repudia totalmente. Nosso protagonista vai alimentando desejos de grandeza e cada vez gasta mais o que não pode. Cristiano percebendo que o dinheiro de Rubião estava acabando e seus negócios melhoravam, resolveu abrir a sociedade. Camacho não conseguiu elegê-lo. Mas, a essa altura, Rubião já começava apresentar sinais de loucura, dava jóias para Sofia, doava quantias vultuosas para uma organização de caridade que ela fundara, fazia grandes jantares, e pensava que era Napoleão. Enfim, à medida que nosso protagonista enlouquecia, as pessoas aproveitavam-se, mas, ao mesmo tempo, se afastavam dele. Rubião ao final do livro já estava pobre, sem amigos e louco, enquanto os outros que o cercaram durante toda trama tinham crescido socialmente às suas custas. Rubião termina sua jornada em Barbacena com o Quincas Borba, repetindo, já sem entender, a frase proferida pelo filósofo: “Ao vencedor as batatas”.

Como se vê a trama é naturalista. Estamos num mundo, semelhante aos livros de Zola, ou para citar um dos nossos, Aluísio de Azevedo, onde só os melhores vencem. A luta pela sobrevivência, o aperfeiçoamento humano, a evolução da espécie, preconizada por Darwin, são os atributos do homem, que aí se iguala a qualquer outro animal. Rubião, nesse sentido foi vencido pelas forças naturais, não foi apto o suficiente para subir no Rio de Janeiro, pois tinha uma alma provinciana. A concorrência numa cidade grande colocaria-o de fora. Vê-se isso até na sua inabilidade para dizer palavras bonitas à Sofia. Faltava-lhe naturalidade, as palavras eram-lhe artificiais. Tal não acontecia com José Maria, que se tornou seu inimigo por causa de Sofia. Mas José Maria casou-se com uma prima dela e teve filhos. E Rubião não se casou com ninguém e morreu sem perpetuar a espécie. Por esses motivos, Machado se encaixa numa narrativa naturalista. Mas é um naturalismo permeado de autoconsciência. Em Quincas Borba, o naturalismo fala dele mesmo, é reflexivo, metapoético.

Tal afirmação pode parecer paradoxal. Mas não o é. Em literatura, não se deve demarcar rigorosamente os estilos. O que se pode ver é ora a predominância de um, ora a predominância de outro. A sociedade molda de certa forma as características do escritor. Todavia, a genialidade deste pode superar, ou melhor, ver com mais profundidade, e aí sim superar a contemporaneidade. Machado era um desses. Em Quincas Borba, o naturalismo se desdobra, vira ao avesso e mostra, com toda ironia, a sua alma. Percebe-se isso com a filosofia do “humanitas” de Quincas Borba em que diz: “- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de umas delas, mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra.” E depois cita o exemplo de duas tribos, que têm poucas batatas para comer, e então elas necessitam guerrear para atingir outro campo, onde as encontram em abundância. Assim, segundo Quincas, a “paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é conservação”. Destruição porque não daria para as duas tribos sobreviverem só com o primeiro campo de batatas, que é insuficiente. Nesse sentido, o filósofo defende a guerra. Ela é a condição de sobrevivência dos mais fortes, e de perpetuação destes. E arremata categoricamente: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Depreende-se disso que Machado não só retratava fielmente a condição humana, como Aluísio faz em O Cortiço, mas, sobretudo, analisava-a, investigava profundamente as proposições do cientificismo vigente, relacionando-o com os labirintos da psique humana. É assim, portanto, que Machado se aproxima de Proust, cuja investigação psicológica chega a um ponto culminante. O naturalismo de nosso escritor já não é superficial, ele se desdobra, ele atinge camadas mais profundas do ser.

Pode-se dizer, então, que Quincas Borba antecipa o final de Rubião, que, por sua vez, alimenta a vida e a riqueza daqueles que estiveram ao seu lado no Rio de Janeiro. Mas esse movimento de “supressão” de umas das partes para “a condição de sobrevivência da outra” não acontece mecanicamente, de maneira fugaz e inevitável, pois Rubião num dado momento pensa em voltar para Barbacena, isola-se, não procura Sofia, e, como nos diz o próprio autor: “Se a alma dele foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era simples alma de um homem arrependido do gozo, e mal acomodado na própria riqueza.” Mas era necessário que Palha e Camacho impedissem a sua saída (a trama tinha que se desenrolar até o final), por isso, quando comunicou sua saída, “olharam um para o outro” como “um bilhete de cartão de visita trocado entre as duas consciências”, o segredo foi guardado mas “era preciso impedir que o Rubião saísse”. Deste modo o desenlace da história não acontece de maneira abrupta. Ora Rubião resiste, ora Rubião cede. Os personagens de Machado são sinuosos, redondos. Eles não vão a um destino final e inexorável. Esta característica se vê bem em Bentinho e Capitu, Dom Casmurro, onde o jogo arma-se e desarma-se no decorrer da história. Se aqui Rubião chegou a um fim trágico, este fim serviu para alimentar a vida de outros, como a morte de Quincas Borba alimentou a vida de seu cachorro (animal aqui que se humaniza) e Rubião. Coloca-se, assim, a vida como se fosse uma máquina movimentando outras. A diferença é que essas máquinas têm consciência das suas próprias condições de movimento.

Na época em que Machado escreveu seu romance, a sociedade brasileira ficava mais complexa. Já havia aparelhos burocráticos, começa a surgir uma classe média que busca ascensão social. Alguns são remanescentes de oligarquias agrícolas falidas, outros se fortalecem nas forças armadas, devido à Guerra do Paraguai, outros são comerciantes. Os filhos de fazendeiros vão estudar nas faculdades, elaboram suas teorias nacionalistas, e vão buscar empregos públicos. A vida urbana toma importância Enfim, a sociedade não se baseia somente na relação entre escravo e senhores de fazenda. Essa complexidade emergente influiu na maneira de pensar de Machado, pois ele vai denunciar a luta que as pessoas mantém para conseguirem um espaço. É essa disputa que se vê em Quincas Borba. Entretanto, essa luta não acontece somente do mundo exterior para a superficialidade do romance, ou melhor, as contradições da sociedade interferem diretamente nas contradições internas e psicológicas dos personagens, criando um grande amálgama, como vemos no capítulo LX, quando, numa cena de verdadeiro romantismo, Rubião salva um garoto que iria ser atropelado e perde seu chapéu, que lhe é restituído por outro garoto; Rubião dá-lhe então alguns níqueis, e Machado revela-nos os pensamentos: “Não o apanhou senão para ter uma parte na glória e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobres, com prazer; foi talvez a primeira idéia que lhe deram da venalidade das ações”. Como se observa, portanto, a estrutura da sociedade, cada vez mais complexa, influi diretamente na personalidade dos seus atores. Não há mais em Machado, como havia em Macedo e em Alencar, a dicotomia entre bem e o mal. Como não há mais somente duas classes distantes entre si. Seus personagens oscilam, como a estrutura social, entre um pólo e outro.

Como se depreende do que foi dito, há na literatura de Machado uma rede intricada de relações, onde as mazela do capitalismo insurgente no Brasil influi na psicologia de seus personagens, os quais lutam por uma posição segura na sociedade, mas, ao mesmo tempo tem plena autocrítica disso. Autocrítica que não foge à Rubião que, logo no primeiro capítulo, pensa que, se Quincas Borba tivesse casado com sua irmã, não teria todo aquele luxo, mas já no segundo capítulo repudiou, “vexado daquele pensamento”, e tentou se concentrar, inutilmente, numa canoa; inutilmente, porque logo adiante “o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria”. E o mesmo coração “vai dizendo que, uma vez que mana Piedade tinha que morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha...” Essa trema diz tudo, pois se viesse os filhos, Rubião perderia a herança. Ele volta à divagação da canoa e arremata com toda carga de ironia: “- O certo é que eles estão no céu!”. Rubião, nesse sentido, sofre o conflito entre agir pelos seus interesses ou pela ética. Conflito que ele não consegue resolver e acaba sucumbindo à loucura, ao desejo de grandeza incoerente. Tal desejo se vê, daí a contemporaneidade do romance, hoje em dia, quando pessoas, para manter um falso status, se endividam comprando coisas que estão fora do alcance. Machado vai demonstrar isso com Rubião, que por hora tem consciência plena, que por outras age inconscientemente, através de atos falhos. Já Quincas Borba morrerá rico, mas de nada adiantará sua riqueza, pois a riqueza segundo a filosofia de “humanitas” deverá ser transferida para a sobrevivência de outros. E tal acontece no percurso de todo romance. Quincas Borba tem autoconsciência da sociedade, mas ele é filosofo, e por isso sua verdade será explícita e irá patentear o livro. Por outro lado, em Rubião esse processo de reconhecimento se dará hora de maneira velada, hora de maneira explícita. Hora dita, hora não-dita.

Conclui-se, então, que Quincas Borba é um livro que retrata uma sociedade cada vez mais complexa, onde surge uma classe média incipiente que buscará espaços na sociedade, que buscará estabilidade e ascensão. Mas Machado não fica só no retrato de costumes, atinge assim uma profundidade maior, foge à superficialidade. Nele, não interessa somente o cientificismo do meio refletindo sobre as pessoas. O autor é dotado de uma consciência autocrítica. Esta se vê no filósofo Quincas Borba, que, com o discurso de autoridade, prevê o destino dos homens e do seu amigo, Rubião. Já este oscila entre o ser oportunista ou ético. Não tem habilidade, é provinciano, não se adapta à vida na corte, e acaba sucumbindo. A sua consciência às vezes é clara, às vezes é velada. Pendula entre a loucura e a realidade. A primeira toma-lhe por completo, pois tem sonho de grandeza mas morre pobre. Por outro lado, sua riqueza é transferida para seus “amigos” que tanto o bajularam, quando ainda rico. O naturalismo de Machado atinge o interior da realidade, atinge o âmago das pessoas, relaciona-se com a complexidade da sociedade que surgia e a complexidade da alma humana, criando assim uma rede, uma estrutura intrínseca e interna.
Por fim, é um livro ainda atual, porque todos nós passamos por isso. Estamos sempre entre o agir por altruísmo ou o agir por interesse. E quantas pessoas não se deparam um dia pensando sobre isso? E quantas pessoas não agem, como Rubião, gastando, por puro exibicionismo, o que não podem? Serve então o livro para que se tenha uma maior autoconsciência da vida e, sobretudo, dos atos.

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